Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Conto produzido por Walter Crick do site www.minusculasmanivelas.blogspot.com
Caminhava cá, sozinho e desolado no meio da grama verde no campo de papoulas. Ao meu redor, campinas secas compunham uma funesta cena, com galhos nus dançando um réquiem fluido sobre a luz escassa da lua incidindo sobre eles; causando sombras assustadoramente enormes, batendo em minha cabeça e reverberando sobre os blocos de concreto, jorrando terror em meus olhos cansados.
Andei até chegar a uma clareira sóbria, com um fracassado clarão ao meio, estagnado sobre um dos retângulos sólidos cravados no chão.
Olhei a lama intercalada às folhas selvagens que insistiam em crescer no solo adubado naturalmente. Subi o olhar, que encontrou uma placa metálica talhada com escritos oxidados pela ação do tempo.
“A MORTE É SOMENTE MAIS UMA PASSAGEM NO CAMINHO DA VIDA. MORRER É FÁCIL. DIFÍCIL É AGUENTAR O PESO DE VIVER.”
Condolências foram dadas aos nomes que eu nem ao menos conhecia, até que me postei de pé lentamente, com olhos marejados de lágrimas contidas e sofridas. Uma dor silenciosa afagava-me a alma, e lentamente sorri perante a temerosa situação.
Mais alguns passos difusos entre os túmulos descascados, pisando em pedras estáticas e dispersas, enterradas pelo coveiro para compor um caminho entre as sepulturas. O rosto frio e bem barbeado estava lambido em águas salgadas, cheias de saudade.
Sussurrei à pedra imóvel à minha frente.
-Ah! Quanta saudade que me irrompe do coração! – Olhei aos céus e fundei uma linha direta entre mim e os que me aguardavam lá em cima. –Dores que me ferem com fervor.
Deixei que rolassem lágrimas a meu corpo já quente perante as emoções que sentira.
-Bob? – Assustei-me e pulei em resposta, com a cabeça atravessada no córtex temporal e as gotas secas cravando as garras em meu rosto pálido e assustado.
Virei-me de súbito.
Nada além da luz do luar sobre os mausoléus centenários. Por que deveras eu estava em um cemitério à essa hora da noite?
-Bob? – Chamou-me novamente uma voz, vinda de trás de meu corpo agasalhado, tremendo de medo.
Corri o olhar pela relva rala abraçando-me os pés.
Subiu-me lentamente às narinas um cheiro áspero e constrangedor, contando os nervos olfativos e fustigando lhes a humanidade. Um gosto azedo de movimentos antiperistálticos veio à boca, oriundo de um esôfago incomodado. Tapei com as mãos o mal das palavras, evitando o escapar do conteúdo ácido.
O criquetear dos grilos ao redor foi arrebentado pela voz masculina, sequestrando o silêncio para si.
-Bob? – Desta vez pude distinguir a origem do som. Recolhi-me ao interior do envoltório carnal que eu chamava corpo. Surrado pela vida.
Reconheci após alguns segundos o dono daquele timbre inconfundível, meu tão amado amigo Charl, que não só foi inseparável, mas também tornou-se quase um irmão para mim.
-Bob? – Chamou-me novamente, e pude responder ao chamado.
-Charl? – Um silêncio suicidou-me de angústia, até o momento em que pude vê-lo com meus olhos desnudos.
-Bob! – Chamou-me meu velho amigo, com um sorriso sarcástico e emblemático gravado no rosto. Seu corpo branco arquejava com volúpia, e as vestes impecavelmente postas no corpo deixavam-no com a pompa e a circunstância de um antigo lorde inglês.
O smoking negro agarrava-se a seu corpo definido, exatamente da forma como o vira da última vez. Era seu casamento. A gravata borboleta estava torta, absolutamente fora do prumo. Diverti-me com a visão do velho amigo à minha frente, mesmo que a alguns pequenos metros se estendendo por entre os blocos de concreto.
-Quanto tempo… – Estendi os braços para recebe-lo com afeto.
Sem respostas.
Um passo curto à frente. Ele respondeu com um passo longo passa trás. Dois adiantados, dois atrasados. Uma pequena disparada. Ele tropeçou ao relento, e levantou-se de soslaio.
Abriu-se em minha mente um leque de raciocínios, deixando-me perplexo. Prefiro não comentar.
Tentei somente conversar com ele. Não deu.
-Charl, por onde esteves?
Ele desceu os olhos por meu corpo preocupado, percorrendo-o com a visão de cima a baixo. Virou as costas lentamente, puxando-me instintivamente junto a ele. Mantive distância, já que era isso que ele queria, pelo jeito.
Cautelosamente, fomos nos dirigindo novamente ao espaço que estávamos antes, desta vez um pouco mais ao fundo. Duas quadras à frente, uma à esquerda, duas à frente, três à direita e mais uma para trás. Charl parou, olhando ao chão.
Nada, somente lama.
Virou o rosto a mim. Uma lágrima fluida escorria de seu rosto. Virou-se ao chão, certificando-se se que eu o estava seguindo com o olhar. Percebi a capela ao fundo, atrás do homem de smoking negro.
Ajoelhei-me praticamente a seus pés, os olhos ainda vidrados no chão. Vi algo brilhar na escuridão, e mergulhei as mãos na lama gelada, indo de encontro a uma superfície sólida. Arrastei a mistura natural de terra e água para uma vala funda a cerca de um metro, isto tudo com minhas próprias mãos ásperas.
Apareceu lentamente um conjunto de signos impressos na pedra. Levei a mão à boca, sugando o ar frio a meu redor, alarmado. Talhadas na lápide suja e enterrada no chão, pude ler as palavras que me cortaram como uma faca afiada.
CHARL CHIP JOHNSON
“A MORTE ESPERA ANSIOSA PELO FIM DA VIDA”
NASCIDO EM: 03/10/1989
DATA DO FALECIMENTO: 04/04/2014
Arquejei e caí para trás. Virei minha cabeça, branca e pálida como neve, para a porta da capela escancarada na escuridão. As tábuas amadeiradas do chão do tempo rangiam, sufocando o silêncio.
E meu coração não tardou a falhar, visto que já o fizera três outras vezes. A dor veio primeiro. Pus a mão no peito e urrei. Depois, tudo ficou turvo, embaçado, e inúmeros pontos brancos tomaram conta de minha visão, deixando-me lentamente paralisado.
Titubeei…
E sob a confusão que se passava em meu campo de visão, eis que reaparece à porta da igrejinha o amigo morto.
Fui levantar-me às pressas, tentar correr, porém a lama escorregadia levou-me junto com o coração moribundo à cova ao lado. Bati as costas no chão duro e molhado, não antes de mergulhar em uma pocilga fétida de lama e corpos em decomposição. Gemi, com a mente em chamas. Engoli uma água enlameada, barrenta, que havia se acumulado por ali.
Gosto de morte…
Lembrei-me dos versos de Augusto dos Anjos. “Acostuma-te com a lama que te espera.”
[E sob a mesma luz que cheguei,
parti.
Rumo a meu destino
Digerindo a morte! ]
Sabor amargo…
Imagem meramente ilustrativa obtida no site http://raqueltaraborelli.com/portugues