Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Abrir os olhos estava cada vez mais difícil, dormiu o suficiente, tinha certeza mas abrir o olhos era outra coisa. Preguiça? Talvez. O quarto em penumbra ajudava, rolou para o lado e sentou-se na cama estreita esticou a mão para o lado e pegou um copo cheio de água e derramou algumas gotas sobre os dedos. Sorveu tudo. Ainda se sentia cansado e sabia que se quisesse poderia dormir por mais quantas horas tivesse vontade, mas simplesmente levantou. O lugar lhe parecia conhecido, mecanicamente foi até uma pequena porta, abriu-a e entrou. Tirou o pijama e colocou na máquina que tinha a porta aberta e tomou seu banho.
O túnel de secagem fez um excelente trabalho, saiu de volta para o quarto e viu roupas colocadas em cima do móvel. Vestiu-as e calçou o par de botas à sua frente.
– Luz – falou mais como se estivesse mais reclamando do que outra coisa e imediatamente todo o cômodo se iluminou. Pentearia o cabelo se tivesse algum, tentou um sorriso para si mesmo, dirigiu-se à outra porta e saiu sentindo-se completamente perdido. Duas mulheres vinham em sua direção e resolveu perguntar-lhes onde estava.
– Olá! Bom dia, senhora – disse com olhar perdido, observou que mais algumas pessoas que passavam lhe sorriam.
– Meu nome é Adamastor – falou sorrindo – Pode dizer onde estou?
A mulher loira de olhos castanhos olhou intrigada o homem à sua frente. Os olhos negros e os raros cabelos despenteados denunciavam que acabara de acordar.
– O sr. está bem? – Nadzjia perguntou ao homem à sua frente já demonstrando preocupação.
Adamastor mal a escutou. O corredor cinza claro com detalhes em brancos da mesma tonalidade, era irritantemente igual em todo o lugar, em todos os decks, o diferencial eram apenas números e letras nas paredes, que tinham como objeto facilitar a localização para os tripulantes.
Ele estava perdido, mas em seu íntimo sabia que não estava em um lugar qualquer, eram decks e não andares, assim como sabia que o que tinha nas paredes eram números e letras. Não sabia onde estava e para dizer a verdade nem mesmo tinha certeza de quem era. Estava para dizer isso à loira com que conversava quando outra mulher, uma oriental de cabelos curtos e roupas apertadas que lhe modelava o corpo parou à frente deles.
– O que está acontecendo aqui oficial?
Nadzjia reconheceria a voz da chefe da área médica em qualquer lugar.
– Nada de mais comandante Scira – disse segurando corajosamente a mão do homem à sua frente.
Scira Ishida sorriu para o homem e lhe mostrou o tablet. Ele olhou o equipamento e perguntou a ela se estava tudo em ordem, tendo um aceno de cabeça como resposta. Disse que se veriam em breve na reunião, cumprimentou Nadzjia e saiu satisfeita.
Nadzjia sorriu, pegou gentilmente o homem pelo braço e continuou andando, agora na direção para onde ele caminhava anteriormente. Iria para onde ele quisesse, pensou percebendo o olhar interessado de outros tripulantes por quem passavam no corredor.
– O senhor quer ir para onde?
Adamastor Conti acordou lentamente, sentou-se na cama e olhou em volta. À esquerda uma porta no fim de um curto corredor, e uma cadeira – que aparentava ser bastante desconfortável pelo formato – e uma espécie de mesa pequena com rodinhas embaixo, um controle de elevação com prato e copo tinham a comida coberta por filme plástico, aparentemente não mexidos. À direita viu uma série de equipamentos médicos, dos quais identificou um par e mesmo assim teve a impressão de serem muito “modernos”. Apertou os olhos e sentiu-os queimar, olhou as mãos e passou-as pelo rosto, em seguida olhou as pernas e os pés. Estava seminu, vestindo apenas uma camisola de hospital.
Começou a retirar um a um os fios que o ligam ao monitor, até ouvir o alarme, tentou firmar os pés no chão, mas as pernas dobraram e ele desabou no chão.
– O que está fazendo sr. Conti? – Perguntou um homem vestido de calça e blusa azuis que irrompera pelo quarto, perto da porta. Dois enfermeiros estavam junto a ele e entram rápido no quarto ajudando o médico, dr. Tomas Melo, a levantar o paciente.
– Pronto doutor – disse um deles após uma tentativa frustrada de deitar o paciente.
– O que está fazendo, sr. Conti? Perdeu o Juízo? Já não conversamos sobre o senhor sair desta cama? Está muito fraco – disse o médico calçando o par de sapatilhas no paciente – vou mandar alguém pegar uma cadeira de rodas.
– Obrigado doutor – Adamastor Conti sabia que já havia visto aquele rosto, aquele homem. O conhecia de algum lugar. Por instantes o som do equipamento chamou-lhe a atenção e ele se virou na direção da tela do monitor. Seis linhas retas atravessavam a tela de lado a lado. Estava morto? Claro que não, mas que idiota, pensou, apenas estava desligado do monitor.
Caminhou, sob olhos vigilantes de um enfermeiro, até o banheiro fechando a porta, precisava urinar. Ficou tonto e sentou no vaso.
– Mijando sentado. Que merda! – Comentou levemente aborrecido consigo mesmo.
Levantou, as pernas ainda trêmulas e foi até a pia vendo a imagem no espelho. Balançou negativamente a cabeça, lavou e enxugou o rosto. Abriu a porta e uma cadeira de rodas o esperava.
– O sr. tem entrevista com a dra. Leme agora – falou o médico.
A namorada, pensou. Sabia que iriam para o outro lado do complexo hospitalar. Sua mente estava muito clara hoje, a memória excelente.
Estava resolvido a aproveitar o “passeio”. Desceram três andares de elevador, fizeram um volta por corredores, atravessaram um pequeno jardim no centro do complexo, repleto de árvores, flores e um pequeno lago artificial, até entrar em outro edifício e seguir por outro corredor até um consultório amplo onde uma jovem mulher o aguardava.
– Olá Tom – disse Gricia Leme beijando o rosto do médico que acompanhava Adamastor.
– Que bom que você mesmo o trouxe.
Eles começaram a conversar e sorrir sobre algo que haviam feito no fim de semana, esquecendo momentaneamente que Adamastor estava na sala. Para ele não tinha importância, sua mente estava clara e reconhecia os dois, reconhecia o lugar e sabia o porque estava ali. Era portador da Síndrome. Para dizer a verdade, Adamastor se lembrava de tudo, inclusive do que não deveria. Sabia que aquelas lembranças não eram dele. Não podiam ser.
A síndrome, Adamastor havia pesquisado, era uma doença inicialmente observada e pesquisada pelos drs. Gordon Brett e Chow Lao, em março de 2029, trouxe à luz pacientes que pareciam viver duas vidas ao mesmo tempo em lugares e tempos diferentes. Em alguns casos estudados lembravam-se de detalhes do que haviam vivenciado. Passou a ser também conhecida como a doença das existências múltiplas. Esse tipo de doença passou a ser chamado de Síndrome de Brett e Lao ou simplesmente a Síndrome.
– Como está hoje, sr. Conti? O dr. Melo disse que tiveram dificuldades em acordá-lo hoje.
Ela sorria amigavelmente, isso era comum quando Tomas Melo estava presente.
– Não quer falar sobre os sonhos?
Nossa – pensou Adamastor – ela foi direto ao assunto. Olhou demoradamente para os dois médicos e sorriu o mais gentilmente que pode.
Ela olhava mais Tomás Melo do que o paciente e não se importava se alguém percebesse isso. Mas aquele era um caso raro. Um caso da Síndrome em estágio final e sabiam que estudá-lo era um privilégio. Quando a doença chegava em estágios avançados, os resultados inexoravelmente eram dois: estado alterado – quando o paciente enlouquecia, falava e escrevia por línguas estranhas, diferentes e quando se olhava no espelho, surtava. Ele mesmo acompanhou um caso onde a paciente arrancou os olhos, orelhas e nariz, até conseguir engolir a própria língua, e esse foi apenas um caso. Estagio alterado ocorria à maioria dos pacientes.
O outro resultado da doença era raro de ser diagnosticado, era conhecido como estado inalterado. Neste caso os pacientes costumavam se lembrar de seus outros eus, mostrar detalhes dos locais. Em um caso marcante, o paciente havia pintado diversas telas do local onde vivia seu alter ego, o caso foi um sucesso e foi estudado até a morte do paciente.
O caso Cont, ele achava também interessante, desconfiava que sua outra personalidade poderia ser de um futuro distante. Mas isso só poderia ser confirmado por sua companheira.
Todas as vezes em que o paciente era levado para sessão era a mesma coisa. Gricia fazia um monte de perguntas e o paciente usava de subterfúgios para responder, ou mesmo não responder. De início fingia não saber do que se tratava, em seguida dava respostas lacônicas até que as respondia parcialmente. Estava preparada para isso.
– Muito bem dra. Gricia – Adamastor falou – se soubesse que a presença do dr. Melo a fazia tão feliz, pediria que me acompanhasse sempre.
– Sobre os sonhos – continuou Adanastor – lembro de andar por corredores brancos e cinzas com frases e números estranhos até ser encontrado por uma loira muito bonita e ela perguntar para onde eu queria ir e eu simplesmente não sabia.
Gricia Leme fechou o sorriso, esqueceu instantaneamente da presença do namorado e da falta de educação do paciente, arrumou-se na cadeira e continuou a consulta.
– Lembra de mais alguma coisa sr. Conti.
– Dessa noite nada. Mas lembro partes de outros sonhos.
Aquele era um caso raro da Síndrome. O paciente havia sido encaminhado por uma grande multinacional de onde era um dos CEO’s. Eles haviam demorado a enviá-lo, pois pensaram que era apenas um caso de estresse devido a grande quantidade de trabalho. Mas quando Conti começou a revirar os olhos e a falar palavras e frases incompreensíveis em uma reunião de diretoria, não tiveram escolha.
– Continue sr. Conti, por favor.
– Lembro de dois homens em uma sala ampla, com uma série de números nas paredes, telas de computadores, eles estavam sentados em uma mesa oval. Pareciam ter uma espécie de insígnia diferente em cada lapela e conversavam sobre uma festa acontecida quando ainda estudavam. Eu estava muito feliz por estar com eles, e mais ainda quando chegou a quarta pessoa, uma mulher chamada Scira. Ela beijou todos nós e sentou-se do meu lado.
– Interessante lembrar nomes sr. Conti, nunca disse isso antes – Gricia anotava tudo em um pad ligado remotamente a um computador.
– Isso aconteceu há semanas, doutora. Mas interessante foi a sensação que tive antes deste episódio. Pareceu que o tempo correu, mais rápido que o normal, acelerou e desacelerou.
Olhou para os dois médicos que pareciam estupefatos com o que falava. Sentia que não esperavam ele ser tão colaborativo.
– Essas acelerações passaram a ser cada vez mais frequentes, mais demoradas. Passei a vivenciar outra realidade, reconhecer pessoas estranhas que usavam roupas diferentes.
– O senhor possui um nome neste lugar sr. Conti? – Dr. Melo estava atento na consulta.
Estava decidido a contar muitas coisas a eles, mas não tudo. Não o período de tempo, e principalmente quem era lá. Poderiam considerá-lo como louco. Isto é, se já não o consideravam assim?
– Não sei doutor, não lembro.
– Sr, Conti é muito importante o que vou falar agora. O senhor teve uma crise muito forte da última vez, os sinais no monitor passaram a ser intermitentes, chegamos a pensar que seu cérebro não desse mais sinais – falou dr. Melo.
– Ainda não é desta vez que se livrarão de mim, Dr. Melo.
Tomas Melo olhou o homem na cadeira de rodas. Sabia que a situação dele, em relação à Síndrome era das mais avançadas já vistas. Ele acompanhava o sr. Conti a mais de ano, desde quando ainda estava na residência médica.
Era impressionante como os pacientes com a síndrome regrediam tão rapidamente. Dos poucos casos reconhecidos e estudados a maior parte foi perdida, suas outras “personalidades” existiam em locais inimagináveis e tinham destinos ignorados. No final, o cérebro simplesmente parava, até o óbito.
Gricia o olhava atentamente. Estava prestes a tentar algo que nunca havia feito antes.
– Vamos levá-lo a sala de repouso e colocá-lo junto com Giorgia Roslova. Vamos ver o que vai dar.
Adamastor já tivera contato com outros pacientes do hospital nos últimos meses, mas com nenhum diagnosticado com Síndrome.
Giorgia Roslova, pensou Tomas Melo, vai ser interessante.
Tomas estava com medo daquela reunião. Não sabia o que podia acontecer. Adamastor era o contrário de Giorgia, dormia pouco e quando dormia sofria crises cada vez maiores e era provável que em breve não acordasse mais.
A outra paciente a que ele e Gricia tiveram acesso, Giorgia Roslova, passou a falar havia poucos dias. Ela foi descoberta casualmente quando um médico do grupo sem fronteiras soube dela. O marido a mantinha trancada, ele acreditava que Giorgia estava possuída pois não falava coisa com coisa, revirava os olhos constantemente e por fim o que ela pronunciava era ininteligível. Quando o resgate chegou encontraram-na trancada em um pequeno cômodo, fétido e escuro, tendo que enfrentar um grupo de aldeões alucinados. De início pareceu que ela estava na parte inicial da Síndrome, mas era ao contrário, ela estava vencendo, sua saúde melhorava a cada dia, já acordava sozinha, a única questão era a memória.
– Juro que não entendo o que ela está falando, dra. Gricia. Mas seja lá o que for parece bem antigo, arcaico – disse Adamastor Conti observando a mulher à sua frente falando. – Ela parece querer muito ser entendida.
– Já trouxemos um linguista até aqui e ele não tem ideia de nada do ela fala – Gricia respondeu cautelosa.
– Então tem que trazer um linguista melhor – Adamastor respondeu se recostando na cadeira de madeira. Simples assim. Já deram folha e papel a ela? Talvez não tenha nada, apenas confusão mental?
Tomas Melo ainda estava em pé mas deu dois passos para o lado e se sentou ao lado de Gricia na pequena sala.
– Acho que não sr. Conti, mandamos vídeos para diversos linguistas e nenhum reconheceu. Chegamos mesmo a mostrar a ela os pictogramas que o senhor desenhou, mas simplesmente nada.
– O que acontecerá a ela?
– A Síndrome não está mais ativa em Giorgia, sr. Conti. Ela irá para uma escola especial de reaprendizado. Em breve poderá até mesmo voltar para sua família. Esperamos que aconteça o mesmo com o senhor – disse Gricia com um sorriso – Agora já está ficando tarde. Nos reencontramos amanhã.
Tomas e Gricia ficaram observando enquanto os enfermeiros levavam o sr. Conti para a Ala do hospital onde estava internado.
Adamastor foi extremamente cooperativo com os enfermeiros, menos na hora do banho que insistiu para tomar sozinho, jantou a comida que serviram a ele e colocou na boca os vários comprimidos que lhe deram e os engoliu. Esperou-os sair e deitou apagando as luzes.
Sabia que no quarto de pacientes com Síndrome era proibido a presença de espelhos ou de vidros reflexivos, mesmo assim havia se olhado na lateral de uma pequena bancada de aço reluzente no banheiro e percebeu que era apenas um arremedo do que foi. Lembrou-se de sua juventude, de tudo que aproveitou na vida até adoecer. Lembrou-se de sua “outra vida”, dos tantos contrastes, línguas diferentes que agora compreendia tão bem, pessoas diferentes, lugares diferentes, lembrava-se de tudo. Mas na “outra vida” tinha alguém especial, que não saia de sua cabeça. Precisava voltar para lá, para o seu lugar. Sim, lá era o seu lugar agora e sabia disso.
A manhã do dia seguinte foi habitual para Tomas. Acordou cedo, passou na casa de Gricia para apanhá-la e vieram para o hospital. Tomaram um café rápido na lanchonete e foram para suas salas. Tomas passou na enfermaria para apanhar os prontuários dos seus pacientes, chegou em sua sala e passou a ler. Ficou quieto por longos segundos, afinal precisava decidir o que fazer.
Respirou fundo, apanhou o fone e ligou para Gricia, precisava informá-la que Adamastor Conti morrera durante a noite.
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Adamastor acordou com o ruído do chuveiro, sentou-se na cama e ficou vendo Scira Ishida sair enrolada em uma toalha e se vestir para o novo dia de trabalho. Foi até o chuveiro e se banhou rapidamente, depois vestiu-se a tempo de tomar chá com ela.
– Você está bem meu amor? – Ela perguntou – Os medicamentos fizeram o efeito que queríamos – ela falou sorridente – E seus sonhos como foram?
– O mesmo de sempre, só que dessa vez me mostraram um outro paciente. Uma mulher que falava uma língua ininteligível, mas que segundo os médicos estava curada da Síndrome.
Scira achava estranho o marido se lembrar de uma doença que remetia às existências múltiplas. Ela sabia que ele, em certo momento, se lembrou de suas duas vidas paralelas, mas o que importava é que agora ele estava muito melhor. Era só se restabelecer.
– Não quer descansar mais um dia?
Ela perguntou enquanto ele ia em direção aos elevadores do deck. Como sempre, desde a época da Academia, não obteve resposta. Adamastor entrou em um dos turbo-elevadores e desapareceu de sua vista.
A porta do elevador abriu e um ambiente com iluminação multicolorida apareceu. Um homem armado olhou rapidamente o interior e voltou ao lugar onde estava. Adamastor compreendia todos os símbolos, letras e palavras que estavam na máquina, assim como os que estavam escritos nos corredores da astronave. Ainda demorou alguns segundos para sair e nestes poucos segundos de introspecção deu-se conta que estava feliz pois sabia onde estava, sabia quem eram as pessoas naquela sala e o mais importante, sabia quem ele era.
Os quatro homens que estavam na parte superior da sala se colocaram em pé de imediato. Na parte inferior três outros olhavam o casal que acabara de sair de outro turbo-elevador e que de imediato o reconheceram.
Deu dois passos e saiu do elevador, quando o homem armado falou alto para que todos ouvissem:
– Capitão na ponte.
Um conto de Swylmar Ferreira em 01 de agosto de 2021