Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Pode o homem ser mais do que um homem? Esta pergunta sempre esteve em minha mente.
Hoje mesmo a questão me veio por diversas vezes. Estava cansado de dirigir o Focus vermelho, quase vinho, pela estrada litorânea por tantas horas seguidas. Ansiava parar e esticar as pernas. Quem sabe, se achasse uma barraca à beira mar perto de alguma cidadezinha, poderia parar comprar um coco e beber a maravilhosa água adocicada. Tirei o pé do acelerador e arrisquei uma olhadela em direção ao azul que cobria desde a praia até o limiar do horizonte onde os olhos podiam alcançar.
O ziguezaguear, as subidas e as descidas constantes da estrada mostravam paisagens litorâneas que poucos teriam o privilégio de enxergar. Decidi parar.
A estrada naquele ponto era margeada por uma área de escape de terra de largura e comprimento razoáveis. Saltei do carro e estiquei as pernas e os braços, sentindo certo alivio. Caminhei até a beira da área onde um guard rail velho e alquebrado fingia proteger a vida de motoristas que ousavam por ali. Passei pelo metal retorcido e em alguns passos cheguei à beira do precipício. Olhei demoradamente para baixo, onde o mar e a terra se enfrentavam em um barulho alto e inebriante. Sorri ao sentir o vento morno do fim de tarde de verão em meu rosto. Olhei de novo, a altura era razoável, vinte metros ou pouco mais.
Duas coisas chamaram-me a atenção. A primeira era a bola vermelha no céu se aproximando cada vez mais do mar e que em breve penetraria a linha do horizonte. Ri alto ao lembrar das revistas em quadrinhos que lia em minha meninice.
– Bem vindo a Kripton – falei alto.
A segunda foi uma SUV que acabara de estacionar mais a frente na área de escape. Fiquei observando enquanto duas mulheres saltavam do carro, conversando alegremente sobre alguma coisa. Abriram o porta-malas e tiraram uma garrafa com conteúdo colorido, um suco talvez, enquanto riam e matraqueavam sem parar.
Percebi uma das portas de trás do carro semiaberta, mas não dei importância. Estiquei mais uma vez as costas, levantando os braços ao alto como se quisesse alcançar os céus. Voltei para o carro, abri a porta e me preparava para entrar quando ouvi gritos.
Olhei ao meu redor a tempo de ver uma menina pequena atravessar correndo a barreira retorcida e inútil e ir em direção ao precipício.
Novos gritos das mulheres chamando um nome feminino. Desespero. A criança subitamente desapareceu no entardecer.
Um misto de desespero e horror tomou conta das duas. Olhei no olhos da que estava mais próxima e ouvi súplicas por ajuda.
– Salve minha filha – gritava ela enquanto afundava os dedos trêmulos em meu braço.
Por um mínimo instante o medo tomou conta de meu coração. Veio em minha cabeça a consciência da diferença de altura entre o barranco e o mar, da agitação que tomava conta das ondas e da pouca chance de sobrevivência se tentasse socorrer a menina. O medo parecia tomar conta do meu ser, cheguei a pensar em entrar em meu carro e sumir dali.
Aquela situação inusitada era como um filme passando em câmera lenta. Então, sem pensar mais, comecei a correr em direção ao barranco. Olhei outra vez a mulher, que ao largar o meu braço se desequilibrou, caindo sentada na terra dura.
Um passo, dois, e o salto.
Voei!
Como os pássaros, senti o vento frio e veloz que vinha do mar em meu rosto. Experimentei a leveza e o prazer que Dédalo e Ícaro sentiram em tempos imemoriais ao desafiar os céus, conheci a verdadeira liberdade. O homem nasceu para voar.
Percebi que voava?
Tinha que focar o pensamento. A criança ainda não afundara no oceano, ela se debatia como uma boneca lançada sem direção pelas poderosas ondas. Mergulhei. O forte impacto me tonteou por segundos. Olhei para cima e a vi. Voei em sua direção e a peguei ao tempo que uma onda cobria nossas cabeças.
Uma sensação de prazer me sobreio. Lembrei que o início da existência humana é em uma bolsa repleta de líquido amniótico, nadando, voando naquele mar. Os braços da menina apertaram meu pescoço e seus lindos olhos negros olhavam dentro dos meus em uma infinitude indescritível. Ela precisava viver.
Não podíamos mais ficar ali. Voei em direção ao céu, em direção à linha que separava o nada da faixa de terra, onde as mulheres nos olhavam ainda em desespero.
Elas olhavam para mim, estupefatas. Uma tomou a criança chorosa de meus braços, a abraçou e caiu de joelhos em prantos. A outra deu um passo em minha direção, boquiaberta, me olhando sem entender. Acompanhou-me até o carro, tocou minha mão quando entrei, balançando a cabeça. Nada precisava ser dito.
Liguei o Focus e saí da área de escape entrando acelerado na estrada. Me veio outra vez na mente a pergunta:
Pode o homem ser mais do que um homem?
Conto de Swylmar Ferreira em 07 de outubro de 2014.
Imagem meramente ilustrativa retirada do site: http://lacapannadellozioblog.wordpress.com/2012/05/07/dedalo-ed-icaro/