Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
O ônibus lotado no engarrafamento foi a gota d’água, colaborando de forma única para terminar um dia difícil. Gabriel não suportava mais o trânsito da cidade. Todos os dias pegava dois ônibus para ir ao trabalho, depois mais dois para voltar para casa. Melhor que até dois anos atrás, quando ainda estudava matemática na faculdade, eram três para voltar.
Não aguentando mais, resolveu saltar da condução e ir a pé até o trabalho da namorada, depois quem sabe tomar um chope, bater um papo e mais tarde, com o trânsito mais tranquilo e menos pessoas nas ruas, voltar com certa tranquilidade para casa.
Achou melhor ligar, ela poderia estar em reunião na empresa. Ligou no celular, deixando tocar por cinco vezes e desligou. Normalmente ela ligava de volta, mas hoje ela não retornou a ligação. Cinco minutos depois ligou outra vez e dessa vez deixou tocar até a operadora avisar que o telefone estava desligado ou fora da área de cobertura. Como uma última tentativa ligou no telefone do trabalho e outra mulher atendeu avisando que ela não estava e complementou dizendo: “ela deu uma saidinha depois do almoço e não volta mais hoje”. O dia de Gabriel estava completamente arruinado.
– Vou para o “Bar do Azeitona” – disse decidido, em um tom de voz mais alto que o normal fazendo com que os passantes o olhassem desconfiados.
Era um bar no centro da cidade onde em geral, às quintas-feiras e sextas-feiras, tinha um happy hour legal depois das dezessete horas. Gabriel resolveu ir andando as poucas quadras que o separavam do lugar.
Parou em uma pequena lanchonete, comeu um pastel e tomou um caldo de cana, depois ficou pensando se a bebida iria bem com os chopes que pretendia tomar.
Ao sair da lanchonete, uma placa na frente do Museu de Artes Orientais da cidade chamou sua atenção. No segundo andar havia uma exposição de arte medieval japonesa pertencente a um colecionador particular. Na placa estava escrito: entrada R$ 20,00.
Porque não – pensou – afinal tinha que fazer o tempo passar por pelo menos duas horas até o trânsito melhorar. Resolveu perder o amor a vinte reais e entrar no museu. Fazia anos que ele passava todos os dias em frente e só havia entrado uma ou duas vezes.
A exposição era muito bonita e mostrava desde textos escritos, passando por mostras de roupas antigas até armaduras e armas, tudo muito colorido e bem distribuído nas salas e galerias do museu. Andou por diversos cômodos e salas de exposição apreciando as muitas peças expostas.
Uma das salas tinha a porta semi-fechada e poucas pessoas entravam lá, o que chamou sua atenção. Gabriel ficou curioso e resolveu ver as obras de arte daquele salão, onde estavam expostas espadas muito antigas – katanas – protegidas por cúpulas de vidro. Belas armas, algumas guardadas embainhadas enquanto outras, desembainhadas, mostravam lâmina e bainha. Quatro pessoas estavam na sala cuidando e guardando as raridades.
Uma das espadas chamou sua atenção. Estava em um canto da sala separada das outras e tinha uma iluminação especial. Atrás daquela espada estavam três homens, dois mais jovens em pé e um terceiro que aparentava idade muito avançada, pelos oitenta anos, sentado em uma cadeira de madeira.
Gabriel aproximou-se do local e olhou demoradamente a peça de arte. Teve a sensação de conhecer aquela lâmina, tinha certeza que já a tinha visto outras vezes. Aproximou-se devagar e se curvou para ver melhor. Não era bela como as outras, ao contrário, tinha uma série de arranhões na lâmina e a empunhadura era feita de uma madeira muito antiga, com manchas escuras que podiam ser de algum tipo de óleo ou até mesmo de sangue. Além disso, a empunhadura estava rachada.
Sem perceber, Gabriel colocou a mão no vidro. Um dos homens deu um passo à frente e colocou a mão sobre a dele, falando alguma coisa que ele não entendeu. Tomado de surpresa, retirou a mão. Foi quando uma moça jovem se aproximou e disse-lhe rispidamente que não era permitido tocar no vidro.
Gabriel se desculpou imediatamente. Estava sem graça e por um momento ele olhou diretamente nos olhos do ancião, que lhe retribuiu o olhar. Foram alguns segundos e Gabriel pareceu reconhecer o homem. Ao menos aquele olhar. Olhou outra vez a moça que o olhava insatisfeita, afinal ele nem tomou conhecimento de sua existência.
– Desculpe – falou a ela. Olhou outra vez o ancião que, já em pé, o olhava diretamente nos olhos, como se procurasse algo familiar. Gabriel agora tinha certeza que o conhecia.
Não era possível! Nunca havia saído nem de sua cidade quanto mais do país, pensou. Então o homem idoso falou alguma coisa em tom de voz muito baixo com o homem que tocara a mão de Gabriel e olhou também para a moça. O homem fez uma mesura para o velho e olhou para Gabriel, falou alguma coisa e se curvou demoradamente para ele. A moça com os olhos voltados para o chão traduziu para ele.
– O senhor Hakigawa pede que o senhor perdoe seus maus modos e disse que o mestre, seu avô, acha que ele passou muito tempo com pessoas mal-educadas.
Gabriel estava confuso com aquilo tudo.
– Diga ao senhor Hakigawa que eu é que peço desculpas.
E quase que instintivamente também se curvou em resposta ao homem. O velho deu um pequeno sorriso, quase imperceptível, e olhou novamente em seus olhos. Olhou para os dois homens e falou novamente. Eles desligaram a proteção eletrônica, abriram a proteção de vidro e o velho muito cerimoniosamente retirou a katana com as duas mãos e a estendeu para Gabriel.
Nenhum pensamento veio em sua mente naquele momento. Olhava a lâmina perplexo, ela o atraia como a luz atrai pequenos insetos. Ainda acanhado apanhou a espada antiga em suas mãos. Imediatamente algo aconteceu, um calafrio percorreu seu corpo, seus olhos cruzaram mais uma vez com os do ancião e sentiu que por uma fração de segundo a lâmina brilhou intensamente. Sentiu-se tonto e tudo escureceu à sua frente enquanto desmaiava.
*****
Gabriel estava ofuscado pelo estranho brilho. Ainda tonto, enjoado e com muita dor de cabeça não sabia mais onde estava. Havia enlouquecido ou realmente estava vendo à sua frente um samurai autêntico? Estava lá ou não estava? Tudo era muito confuso, ele parecia um fantasma, observando o que se passava, ouvindo os pensamentos do samurai, vendo suas lembranças.
Bem a sua frente, o homem vestido como um samurai – daqueles vistos em filmes de ação de Kurosawa – estava de cócoras encostado no canto da espaçosa sala sem móveis. Era ele.
Gabriel sabia que ele e o homem eram a mesma pessoa, ou ao menos a mesma alma. Aos poucos se sentiu desaparecer, como se estivesse sendo sugado para dentro do homem, de suas lembranças, de sua vida, se integrando a ele.
Do lado de fora do cômodo ao menos vinte samurais, servos do Daimiô local, aguardavam sentados cerimoniosamente no chão. Gabriel saiu e deu poucos passos no corredor, sob as vistas dos samurais. Ele conhecia bem aquele tipo de olhar: respeito e temor. Ainda confuso com o que acontecera, ele era o homem agora chamado Isao Hirogami e tentava colocar seus pensamentos em ordem.
Era necessário lembrar cuidadosamente do acontecido nos últimos dias, caso necessitasse explicar a alguém ou narrar as lembranças do ocorrido. Começou a rememorar.
A vida de Isao Hirogami estava virada de cabeça para baixo. Reconhecia, em parte, a culpa como sua. Não dera importância aos valorosos conselhos e opiniões de sua única irmã mais velha e agora pagava por isso. Viu tudo o que seu avô e seu pai construíram com muito trabalho, dedicação e sangue se perder em apenas um momento, uma escolha errada.
Ele era o Daimiô de uma pequena faixa de terra em uma região montanhosa e fizera a escolha errada de aliados, perdendo tudo.
Lembrava que nem ao menos o seu pedido de fazer sepukko fora aceito. Nos dois últimos anos viveu como prisioneiro do Daimiô Katsuo Noritomo. Por sua culpa, o clã Hirogami acabou, mas não foi exterminado. Seu sobrinho de dois anos foi levado a tempo para a casa do avô paterno e lá estaria protegido.
Recordou-se naquele momento de como o marido de sua irmã morrera lutando ao seu lado. Ele foi atingido na cabeça por trás e antes de tudo se apagar viu o cunhado ser abatido. Lembrou-se também como foram os derradeiros momentos de sua irmã. Haviam sido capturados juntos. Ela banhou-se para se purificar, vestiu uma roupa totalmente branca, tomou uma xícara de saquê e, na frente dele, escreveu um poema de despedida. Quando o terminou, pediu permissão ao Daimiô para que Isao se aproximasse e entregou-lhe o pergaminho. Disse-lhe uma frase como um sussurro, olhando em seus olhos e com um sorriso nos lábios se despediu. Ela não mostrou medo ou dor. Morreu como samurai.
Um mal estar apoderou-se dele por instantes. Continuou andando pelo enorme corredor com dificuldade e parou em uma das inúmeras janelas. De lá podia respirar melhor e ver o jardim repleto de cerejeiras com um pequeno e lindo lago no seu interior. Respirou fundo sentindo o ar fresco da manhã. Sentia-se fraco, não sabia a quanto tempo não comia direito. Apoiou-se no parapeito, precisava recordar o que acontecera.
Caminhou até a porta da sala principal onde Noritomo o aguardava. Os samurais que aguardavam sentados, ao vê-lo, imediatamente se curvaram em sinal de respeito. Ele percebeu algo diferente nos olhos deles: admiração.
Com a espada mortal exposta na mão, havia perdido sua bainha, dirigiu-se ao capitão dos homens e pediu que lhe trouxesse água.
Todos olhavam para ele e a espada com misto de medo e admiração e Isao Hirogami sabia disso. Foi até o centro da sala, ajoelhou-se e se sentou sobre as pernas, com a lâmina postada ao seu lado esquerdo, nua, brilhosa. Lembrou-se de seu jardim, era o dobro daquele, embora a morada fosse bem menor.
Voltou a rememorar os dias passados.
Estava na prisão há dois anos, quando, um dia, Noritomo mandou chamá-lo. Os samurais da guarda o colocaram em uma carroça, amarrado como um criminoso comum, um bandido, e o levaram até a casa, ficando do lado de fora enquanto aguardava o Daimiô. Notou que alguma coisa estava errada. Viu muita inquietação, homens e mulheres correndo de um lado para o outro, samurais, serviçais. Viu a mulher, Kasumi Acheda, que por algum tempo fora prometida para ser sua esposa. Mas, mesmo antes que ele caísse em desgraça, a família dela rompeu o compromisso e ela casou-se com outro homem. Suas mãos tremeram e ele respirou fundo por duas vezes e se concentrou.
Quais haviam sido os motivos que ele se aliara ao inimigo do Daimiô mais poderoso da região? Lembrou-se de novo de sua irmã e de uma frase que ela certa vez usou: despeito e ciúmes serão sua desgraça.
Isao Hirogami viu quando o Daimiô Katsuo Noritomo saiu apressado, de dentro da casa. Tinha envelhecido nos dois últimos anos, não que fosse jovem antes. Kasumi era sua terceira esposa. Ele tinha perdido seu primeiro filho combatendo outro Daimiô. O jovem de mais ou menos dezoito anos que o seguia bravamente era Kudo Noritomo, seu segundo filho. Os serviçais haviam preparado às pressas uma tenda com as laterais abertas para que o seu senhor e sua dama conversassem com o homem estranho.
O Daimio Katsuo Noritomo não fez rodeio. Estava sentado em uma posição mais alta, com Kasumi um pouco atrás a sua esquerda e o garoto na mesma posição que ela à direita. Havia seis samurais sentados, postados de cada lado.
Na última vez em que estiveram juntos ele não o havia convidado para sentar-se. Hoje era diferente, o que seria? Pensava febrilmente. Seria uma proposta? Alguém o tinha convencido a oferecer algo a ele?
Noritomo contou que sua filha de quatro anos havia sido levada da fortificação dias atrás por um grupo de cinco homens. Levaram-na para as montanhas, para um templo chamado Casa das Sombras. Ele queria que Hirogami fosse buscar a menina. Disse que seu general o recomendara. Se obtivesse sucesso, a oferta era o reconhecimento dos direitos de Hirogami à terra, desde que submisso a ele, e a restituição dos direitos de samurai. Mas ele teria que decidir naquele momento.
Hirogami estava confuso, pareceu ter algo errado na proposta. Por outro lado era uma oportunidade única.
Lembrou-se das últimas palavras de sua irmã no fatídico dia de sua morte, curvou-se e agradeceu ao Daimiô Noritomo. Aceitou a oferta e perguntou com muito cuidado se poderia fazer alguns questionamentos e pedir um favor. Percebeu uma troca de olhares entre Kudo e Kasumi.
Ele queria saber o que havia acontecido e o favor era simples, se ele não sobrevivesse e conseguisse salvar a criança, que seu sobrinho fosse reconhecido como seu herdeiro e dono das terras.
Noritomo se mexeu inquieto e concordou. Quase imperceptivelmente apertou os lábios e olhou para um dos homens sentados na lateral, que Hirogami reconheceu imediatamente. Era Goro Acheda, irmão de Kasumi, um homem que ele odiava e desprezava. Cerrou os olhos e respirou fundo outra vez. O Daimiô disse que nenhum de seus homens poderia participar do resgate. Colocou Goro como seu homem de segurança para dar todas as informações e os homens necessários dentre os Ronins que estavam ali para serem contratados. O Daimiô se levantou, fez sinal para sua mulher e filho que o acompanharam para dentro da casa. Kasumi olhou demoradamente em seus olhos antes de sair.
O rosto e os olhos de Hirogami não demonstraram nenhuma expressão, sentimentos, nada. Goro sentou-se a sua frente e esperou as perguntas. Hirogami pediu que contasse como havia sido o sequestro e quantos homens perderam na primeira tentativa de resgate. Fechou os olhos e aguardou a resposta.
Goro era o quinto filho do Daimiô Acheda, o mais poderoso da região, e era também o principal general de Noritomo. Nunca gostou de Hirogami, mas reconhecia que ele tinha sido o principal motivo da guerra nas montanhas ter durado um ano a mais. Quase sorriu com as perguntas, Hirogami sem dúvidas havia sido um grande Daimiô. Durante as lutas nas montanhas nunca tinha visto um grupo de homens tão bem treinado e com tanta lealdade ao seu Daimiô como os dele.
Goro contou que os cinco homens entraram nos domínios e no castelo durante o dia e levaram a menina, tendo apenas uma vítima, a ama. Um grupo de resgate formado por dez grupos de cem homens foram enviados para as montanhas, comandados pelo próprio Noritomo.
Chegaram sem problemas até o sopé das montanhas quando coisas estranhas começaram a acontecer. Primeiro foi um tremor de terra, dezenas de pedras desceram da montanha matando mais de duzentos homens de uma vez.
– Uma tragédia, pensamos inicialmente – disse Goro Acheda – mas não nos demos por vencidos e no dia seguinte continuamos a subir. Enfrentamos uma chuva terrível que nos retardou. O lugar tinha portões de ferro, que estavam fechados. No final da tarde e durante a noite escalamos os muros do templo denominado Casa das Sombras.
– Mais de cem homens entraram. Nenhum deles saiu, foram mortos, sem explicações. O Irmão de Noritomo que comandou o resgate foi um deles.
– Eu conversei com os que ficaram do lado de fora dos muros do templo e voltaram pela manhã e eles disseram que ouviam os gritos, inicialmente de batalha e depois de horror – falou Goro Acheda sem nenhuma expressão.
Hirogami ficou em silencio por alguns segundos. Olhava nos olhos de Goro, que retribuía o olhar. Perguntou se ele tinha participado da tentativa de resgate e teve como resposta apenas um leve menear negativo com a cabeça.
Hirogami começou a lembrar das histórias que seu avô lhe contava sobre o lugar. O velho sempre falava que lá era a moradia de um homem possuído por um kami ruim, que matava quem ousasse entrar no lugar. Lembrou-se de um dia quando o irmão do avô tinha vindo visitá-lo. Eles haviam tomado mais saquê do que deveriam pela idade e comentaram sobre o templo. O velho contou que uma criança da família deles havia sido levada por homens possuídos por espíritos malignos que serviam a uma criatura que ele chamou de Capturador de almas.
Essa criatura mantinha as crianças prisioneiras e se alimentava de sua energia. Seu avô falou que alguns homens tinham ido resgatar a pobre criança, mas nenhum deles jamais foi visto outra vez. Lembrou-se disso porque aquelas palavras foram os motivos de seus pesadelos mais horríveis quando era um garoto e mesmo depois, quando adolescente.
Isao Hirogami e Goro Acheda ainda sustentavam o olhar.
– O seu Daimiô disse que você irá comigo, falou Hirogami olhando o outro homem. Não conheço os samurais, peço que você escolha quatro deles, mas que sejam homens bons e valorosos. Um deles deve ser arqueiro. Nós iremos para o templo amanhã pela manhã. Deixe que se despeçam de suas famílias.
Goro Acheda estava inquieto. Queria perguntar se iriam apenas os seis, o porquê disto se mais de cem homens entraram no lugar e não saíram, mas Hirogami estava imerso em seus pensamentos. Quando se levantou escutou um pedido em voz muito baixa. Olhou para Hirogami e assentiu com a cabeça.
Quando estavam para sair no início da manhã, para surpresa dos seis homens, Katsuo Noritomo saiu da casa trazendo na mão uma espada que Goro e Hirogami conheciam. Era a espada ancestral da casa Hirogami, que estava em sua família há mais de dez gerações e que havia sido tomada no final da guerra. Noritomo disse em voz alta que estava lhe dando a espada para que pudesse usá-la no socorro de sua filha e que se a trouxesse de volta seria novamente de Hirogami. Os dois homens se olharam nos olhos enquanto Noritomo estendia a katana para Hirogami que a pegou com a mão esquerda e com a direita puxou apenas alguns centímetros da lâmina. Todos observaram um brilho na katana que durou uma fração de segundo antes que Hirogami a embainhasse novamente.
No meio da tarde do dia seguinte chegaram perto da Casa das Sombras. Haviam deixado os cavalos no sopé da montanha e subido os quase mil metros de distância o mais rápido que podiam. Além do General Goro Acheda e do Daimiô Isao Hirogami, faziam parte do grupo quatro ronins que vinham do norte do país. Seus nomes eram Takada, Noguchi, Matsuo e Yamazaki. Quando viram Hirogami pela primeira vez banhado, barbeado e com as roupas e armadura vermelhas encarnadas, os homens imediatamente souberam de quem se tratava e o cumprimentaram ritualisticamente.
O templo ficava em uma posição privilegiada no meio da montanha. Hirogami disse que não poderiam perder tempo e mandou que os homens providenciassem dois archotes cada para que pudessem levar no resgate e o menor peso possível. Disse a eles que não queria heróis, queria samurais. Os quatro gritaram seu nome. Mandou que o arqueiro Noguchi subisse em uma árvore que ficava na parte da montanha que continuava em uma subida, pois de lá ele teria uma visão privilegiada do pátio do templo e de suas varandas no andar de cima da construção. Deveria permanecer na posição até que os demais saíssem da Casa das Sombras.
Se prepararam, escalaram o muro e pularam para o interior do templo. No pátio colocaram três archotes a 10 metros de distância um do outro, os acenderam e penetraram no interior da Casa das Sombras. Isao Hirogami olhou no rosto de todos os homens e percebeu que no fundo estavam com medo. Chegaram até as escadas internas e Goro sugeriu que se separassem. Goro e Matsuo procurariam no andar de baixo enquanto Hirogami, Takada e Yamazaki procurariam no andar de cima. Todos concordaram.
Goro e Matsuo já haviam olhado quase todo o andar inferior quando escutaram um grito e imediatamente correram para as escadas. Quando subiram, viraram à direita para uma sala grande. Viram que Yamazaki jazia no chão partido em dois, olhos abertos demonstrando um misto de surpresa e medo. Mais a frente Takada lutava com dois homens, um vestido de branco, que usava duas espadas, e o outro vestido com as cores do clã Noritomo. Matsuo e Goro correram para ajudar Takada.
Na varanda Hirogami lutava com outros dois homens, também vestidos com as cores de Norimoto. Hirogami recuava a cada ataque desferido pelos homens até chegar no ponto visível onde um deles podia ser alvejado por Noguchi. O primeiro homem saltou em direção a Hirogami, que conteve o golpe com a espada e o empurrou até o parapeito, onde uma flecha atravessou o seu pescoço, mas não surtiu efeito. Ele continuou a desferir golpes com a espada, lutando em conjunto com o outro que tentou acertar a perna de Hirogami. Por um segundo o Daimiô não teve sua perna decepada. Ele puxou a perna e percebeu que as mãos do homem ficaram ao alcance de sua espada. Deu um passo a frente e empurrou o braço esquerdo contra o corpo do homem com a flecha no pescoço, derrubando-o. Imediatamente o outro raptor o atacou. Já tinha visto aquela técnica. Virou, deu um passo rápido para a direita e cortou as mãos do homem fora, jogando-as longe junto com a espada. O homem olhou para seus braços, agora sem mãos, e esboçou um sorriso maléfico que foi destruído quando a lâmina de Hirogami separou sua cabeça do resto do corpo, na altura da boca.
Hirogami viu o homem com a flecha no pescoço saltar para dentro do templo e ia atrás dele, mas se conteve quando ouviu os gritos de batalha e o tinir das espadas de chocando. Entrou na sala a tempo de ver Goro decepar a cabeça de um dos raptores e chutá-la para longe. No canto da sala viu que Matsuo tinha uma wakizashi atravessada no peito.
Goro pulara em cima do outro raptor que lutava com Takada e cortou sua perna esquerda, quase a decepando, mas o homem continuou lutando. Deu um soco no rosto de Goro que surpreso caiu no chão, ao mesmo tempo em que empurrou Takada contra a parede. Takada conseguiu se desviar do golpe fatal e atravessou sua tantô no pescoço do homem, passando pela boca até sair em cima na cabeça. O raptor recuou e levantou a wakizashi para posição de batalha dando um passo a frente, mas o corte profundo na perna o desequilibrou e ele abaixou sua guarda o suficiente para que Takada completasse o serviço.
Hirogami foi até Matsuo, que tentava desesperadamente buscar algo dentro do kimono. Quando conseguiu tocar no objeto, sorriu e morreu. Hirogami observou um crucifixo na mão do samurai.
– Perdemos dois homens e eliminamos três falou Goro com sua habitual falta de senso.
Este era um dos motivos que Hirogami não gostava dele, excelente espadachim e excelente com a língua também.
Procuraram em todo o andar de cima, mas não tinha mais nada. A noite caiu rápido e os archotes acesos ajudaram a iluminar os corredores e cômodos do templo. Quando começaram a descer a escada o homem com a flecha no pescoço os atacou, atingindo Goro na barriga. Takada saltou sobre o raptor e o derrubou fazendo com que rolasse escada abaixo. O próprio Goro, que descia correndo junto com Hirogami, decepou-lhe a cabeça. Era o único jeito de pará-los. Goro sangrava bastante.
Continuaram procurando a menina, Goro uns dois passos atrás de Hirogami e Takada dois à sua frente. Então, quando virou para entrar em um cômodo grande que ficava quase no fim do corredor, Takada foi atingido por uma flecha que lhe atravessou o peito no lado direito. Deu um passo atrás surpreso e gritou com raiva. Começou a correr em direção ao arqueiro quando foi atingido uma segunda vez. Hirogami deu dois passos a frente para acompanhar o samurai e sacou sua segunda espada a tempo de ver Takada ser atingido por uma flecha no olho direito e ficar pregado na parede do corredor. Hirogami chegou até a porta e abaixou-se a tempo de perceber que mais uma flecha atingiu o corpo de Takada, só que desta vez ele atirou a sua wakizashi com toda a força contra o arqueiro que não conseguiu se esquivar.
A lâmina fez apenas uma volta no ar e atravessou o homem direto no coração, partindo também sua espinha. O desequilíbrio e a queda fizeram com que o arco caísse no chão. Mesmo assim Hirogami se arrastou para a porta em uma velocidade impressionante e entrou em uma sala que parecia ter sido, em tempos antigos, um lugar de oração.
Goro segurava um archote em cada mão. Correu pela porta que ligava os dois ambientes e jogou seu archote ao chão, Hirogami fez o mesmo com o dele. Na sala estava o samurai raptor ferido, ainda se arrastando, a menina deitada no chão, encostada na parede e um homem velho que não se vestia como samurai, mas como um homem comum.
Apesar da pouca luminosidade Hirogami e Goro perceberam que, apesar de parecer, o homem velho não era um ser humano. Não tinha olhos, apenas buracos negros e de sua boca sem dentes e murcha saia uma gosma vermelha. Hirogami imediatamente soube o que ele era.
O velho abaixou-se e colocou as duas mãos sobre o samurai caído. Vociferou algumas palavras que eles não conseguiram entender e imediatamente o samurai se levantou, retirou a espada do peito e foi na direção deles, arrastando os pés no chão. O velho apanhou dois tantôs que estavam em cima de uma mesa e também avançou contra eles. Hirogami olhou para Goro e em seguida para a criança e imediatamente Goro soube o que fazer.
O samurai atacou com um golpe desajeitado, mas rápido e mortal, como ele nunca tinha visto. Escapou no reflexo, somente por dar um passo curto à esquerda. Deu outro passo à frente e chutou o adversário na barriga, virando-se para se defender do velho, que o atacou com o tantô da mão esquerda. Hirogami atacou com a katana no alto e em seguida em descendente, fazendo uma curva perfeita no ar, na direção do velho, que se defendeu com o tantô da mão direita. Aquela técnica de luta era da família de sua mãe.
Goro já havia conseguido apanhar a menina e passar correndo com ela pela porta. Hirogami foi logo atrás. Chegaram correndo no pátio quase juntos, mas ainda precisavam pular os muros.
Quando se aproximaram, os muros se inflamaram como se estivessem vivos, e os dois homens ficaram boquiabertos.
– Foi aquela coisa, não foi? – disse Goro, respirando com dificuldade.
–Vamos ter que abrir o portão – continuou falando enquanto dirigia-se para lá ainda com a garota nos braços. Ficou observando por alguns segundos o portão.
O samurai raptor investiu contra Goro, que se defendeu com apenas uma mão segurando a katana. Foi o seu erro. O samurai escorregou a lâmina e cortou seu braço esquerdo na altura do cotovelo, Ergueu de novo a lâmina, para desferir o golpe fatal, quando uma flecha atravessou sua cabeça. O samurai ficou aturdido, mas levantou a lâmina outra vez. Nesse intervalo mais duas flecha atingiram sua cabeça. Ele ficou parado por alguns segundos, o suficiente para Goro colocar a criança no chão, ao mesmo tempo em que desembainhava sua wakizashi para, com um só golpe, arrancar-lhe a cabeça, que ficou piscando descontroladamente para Goro, como se quisesse falar alguma coisa.
Nesse instante o capturador de almas lutava abertamente contra Hirogami, golpes e contragolpes estudados, até que ele conseguiu desequilibrar Hirogami com um chute na perna esquerda. Com o samurai desequilibrado a criatura enfiou o tantô embaixo das costelas esquerdas de Hirogami.
Noguchi, que observava a luta de cima da árvore, atingiu o capturador de almas com uma flecha na cabeça. A criatura parou e levantou os tantôs a altura dos olhos como proteção apenas para receber mais uma flecha, agora no peito, mas ele havia visto onde estava o arqueiro e apontou a mão em sua direção fazendo com que a árvore se incendiasse.
Noguchi se afastou um pouco do tronco para saltar da árvore ao solo, mas era tarde demais. O capturador de almas já havia jogado o tantô da mão esquerda em sua direção atingindo-o no peito, matando-o na hora. A ação durou poucos segundos.
Mesmo com a tantô atravessada em seu corpo Hirogami conseguiu se equilibrar o suficiente, se posicionar o melhor possível e decepar a cabeça do capturador de almas. Por fim arrancou a lâmina do próprio corpo.
A coisa mais estranha que Hirogami tinha visto em sua vida aconteceu naquele instante. O capturador de almas andou em direção a cabeça que gritava sem parar. Hirogami chutou a cabeça na direção do portão que se abriu.
Goro, que estava em pé segurando a menina, chutou novamente a cabeça para fora do portão. O fogo que saia de cima dos muros se intensificou e eles notaram que algo parecido com uma sombra saiu da cabeça, mais precisamente dos buracos onde deveriam ficar os olhos e subiu em direção ao topo da montanha.
Goro e Hirogami saíram do templo, viram que misteriosamente como havia surgido o fogo nos muros desapareceu, ficando apenas a iluminação dos archotes que eles haviam deixado no pátio.
Antes que pudesse falar alguma coisa, Hirogami sentiu uma brisa vinda do templo e parou. Estava entorpecido com a visão de centenas de sombras que se aproximavam cruzando os portões agora escancarados do lugar conhecido como Casa das Sombras. Eram as almas iluminadas dos homens que haviam sido capturadas. Passavam por ele livres, algumas sorriam, outras inclinavam as cabeças e iam em direção ao caminho mal iluminado, desaparecendo para sempre na eternidade.
Hirogami estava estarrecido com a cena e se virou. Goro estava em pé ao seu lado, era a primeira vez que o via sorrir. Abriu a boca para perguntar o porquê do sorriso, mas tinha alguém caído no chão ao seu lado.
O corpo do General Goro Acheda estava caído no chão, tinha a menina dormindo em seu peito. Hirogami virou a cabeça em direção da estrada e ainda conseguiu ver sua alma desaparecer na noite.
*******
Hirogami levantou-se com dificuldade quando Noritomo e Kasumi entraram na sala. Inclinou-se em saudação e sentou-se. O Daimiô viu o sangue seco no uniforme vermelho de Hirogami e gritou com seus samurais para que trouxessem imediatamente seus médicos.
Depois de alguns segundos estes entraram correndo. Kasumi sentou-se ao lado de Hirogami e segurou seus braços, ajudando-o a se deitar para ser examinado pelos médicos do marido. Eles abriram o quimono e todos viram o ferimento que o atravessara. Não havia nada a ser feito, era um milagre ainda estar vivo.
– Senhor Hirogami – disse Kasumi – agradeço por trazer minha filha de volta.
Hirogami olhou para Noritomo e falou da espada, se ele poderia devolvê-la.
– A espada era e será sempre sua – disse Noritomo.
No fundo sabia que em minutos o Daimiô rival estaria morto. Noritomo mandou que todos se afastassem, ficando apenas ele e Kasumi perto de Hirogami. Inclinou-se perguntou em voz muito baixa:
– O que a sua irmã disse em seus últimos momentos?
Hirogami sorriu, olhou para Kasumi e respondeu:
– Honre sua família e morra como samurai.
*******
Gabriel acordou em um quarto de hospital, olhou em volta e viu a mulher do museu sentada a beira de sua cama.
– O que aconteceu, perguntou, tentando se sentar. Como vim parar aqui?
– Você desmaiou no museu ontem a tarde e nós o trouxemos para cá – disse a moça.
Gabriel se levantou da cama, estava com uma calça do hospital, descalço e sem camisa. Tonto e com gosto de sola de sapato na boca sorriu levemente para a mulher à sua frente. O médico plantonista apareceu e disse que ele estava bem e que poderia ir embora. Era manhã, significava que tinha passado a noite desacordado.
Todas aquelas lembranças, todo o acontecido. Seria um pesadelo? Passou as mãos no rosto e esfregou. Era como se tivesse acontecido ontem, pensou.
A Casa das Sombras, as batalhas, Acheda? Não, não seria tão simples assim. E o capturador de almas?
A moça o olhava de modo diferente, com certa desconfiança, mas ao contrário de quando se falaram no museu, o respeito em sua voz era evidente. Ela tocou em seu braço para chamar a atenção.
– Mesmo desacordado você resmungou muito durante toda a noite. Meu tio bisavô e eu não saímos de seu lado. Ele estava muito preocupado com você. – Falou a mulher.
– Meu tio-bisavô me pediu para dizer duas coisas e lhe devolver esta caixa.
– Primeiro quero que saiba que ele é um homem muito religioso e acredita em coisas que os cristãos não acreditam. Ele não está aqui agora, pois precisou embarcar cedo com a coleção para a terra ancestral. Ele crê que em uma vida passada foi um dos senhores mais importantes da nossa região e disse que você também foi um Daimiô de lá. Ele o reconheceu pelo olhar quando suas almas se tocaram – disse a moça sorrindo meio sem jeito.
Parou e olhou nos olhos de Gabriel antes de continuar.
– Ele pediu para lhe dizer que você honrou sua irmã. E que após sua morte ele instituiu seu sobrinho como herdeiro e dono das suas terras – falou que o senhor entenderia.
Ela sorriu e olhou novamente Gabriel que estava sério e de cabeça baixa.
Pegou a caixa comprida e fina e estendeu-a para ele.
– Ele disse também que lhe devolvia a Katana. Ela está na caixa. Falou que a guardou para você, mas pediu que eu lhe dissesse que ela sempre foi sua.
Gabriel pegou a caixa e sorriu para a moça.
– Esta espada tem um valor incalculável – disse a moça, olhando a caixa nas mãos de Gabriel – mas sempre soubemos que não era nossa. Nós começamos mal ontem, não foi?
Ele assentiu com a cabeça.
– Meu nome é Cristina Hakigawa – disse sorrindo e estendeu a mão.
Gabriel apertou a mão da moça e respondeu também sorrindo
– Hirogami – desculpe – falou ainda segurando a mão dela e olhando-a nos olhos – Gabriel Neves.
FIM
Conto de Swylmar dos Santos Ferreira em 31/03/2012. Revisado para publicação no site em 20/04/2023.
Imagem meramente ilustrativa retirada de: https://www.deviantart.com/iancjw/art/Ghost-of-Tsushima-Pagoda-720985349