Fantasticontos, escritos e literários

Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror

SEM MEDO


O carro de polícia ainda vigiava o beco, ao menos a parte mais interna dele. Eu, em pé atrás de um grupo de pessoas, observo em silêncio. Havia sido alertado pelo celular sobre uma ocorrência policial perto de casa, me vesti e fui ver. Morar no centro da cidade tem suas vantagens e desvantagens. Pensei se teria algo a ver com corpos encontrados no centro nos últimos dias?

O aglomerado de pessoas se empurrava na entrada do beco para tentar ver melhor o acidente, ou fosse o que fosse, dando um trabalho extra aos dois policiais que ali se encontravam esperando o rabecão. Me aproximo e escuto os comentários:

Alguém caiu da janela lateral do prédio – disse um senhor fumando um cachimbo.

Disseram que um menino caiu e bateu a cabeça quando brincava com os amiguinhos – falou uma mulher jovem com uma criança no colo, quase ao lado do homem com cachimbo.

Algo chamou minha atenção, olhei por entre o grupo de pessoas que ali se encontravam e pude vislumbrar a parte inferior do corpo estendida no chão. O que me chamou a atenção foi que a pessoa caída tinha um dos pés calçado e o outro descalço que parecia tão limpo como se houvesse sido lavado.

Me aproximei afastando as pessoas à minha frente até ser parado por um dos policiais, olhei para ele e sorri. Ele devolveu o sorriso e disse um quase inaudível “oi chefe” permitindo que eu fosse até uns dois metros do corpo que um dia foi uma mulher. Era uma morte antiga a julgar pelo estado do corpo, mas a desova deve ter acontecido nas últimas 12 horas, afinal estamos no centro da cidade e certamente alguém teria visto. Tirei uma série de fotos no celular e mandei para o Jorge, o investigador que trabalha comigo.

Dei uma última olhada e voltei pelo beco na direção do ponto de ônibus, passando pelos policiais e o que era agora uma pequena multidão que observava as paredes “pintadas” de vermelho. Parecia sangue visto um pouco de longe. Que ideia, pensei.

Lembrei de um colega que me disse uma vez que assassinos sempre voltam à cena do crime. Então sentei no banquinho do ponto de ônibus, que ficava afastado uns cem metros da cena do crime, e esperei. Simples assim.

Primeiro os curiosos se foram, depois o “corpo” e os veículos oficiais. Centenas de pessoas passaram pela rua. Algumas ainda olhavam na direção do beco, a maioria simplesmente ignorava, tanto o lugar quanto o que havia acontecido ali. Quase no final da tarde minha paciência foi recompensada. Em meio à multidão de passantes algo me chamou a atenção nas sombras do beco. Parecia uma pessoa, mas não era.

Um calafrio percorreu meu corpo e uma onda de lembranças veio a minha cabeça. Uma “Mancha” – é assim que são chamadas – apareceu, como sempre, apenas de vislumbre.

Confesso que depois de todos os anos que se passaram desde a primeira vez que as vi ainda sinto arrepios percorrendo o corpo, como se fossem a morte.

Mas não são.

O telefone tocou pela milésima vez e resolvi atender apenas para confirmar ao delegado que estou investigando a morte da jovem. Parece que o colega de plantão e o delegado se deram por satisfeitos.

Vou atrás da Mancha. Para minha sorte essa se move mais lentamente que o esperado e percebo que posso alcançá-la com uma rápida corrida. Tenho que aproveitar a luz do dia, só assim eu consigo vê-la com mais nitidez. A sigo por três quadras enquanto ela se esgueira por entre os passantes, até que atravessa as portas envidraças de um shopping center e desaparece no meio das pessoas.

Fico irritado comigo mesmo, “displicente” – falo bem baixinho com medo de tê-la perdido. “se tivesse andado mais rápido um pouco” …

Subo as escadas rolantes para o segundo andar e fico observando as pessoas passeando e se divertindo.

Como podem não as ver? Penso mais uma vez.

– Ali.

Falo alto assustando um casal de namorados que havia encostado na mureta quase a meu lado. Eles me olham assustados, parece que vão me perguntar algo, mas eu não tenho tempo para isso. Saio rápido em direção às escadas e a entrada de uma das grandes magazines onde a tinha visto. Chego mais perto e percebo que não é a que estou procurando.

Coisa rara! Duas?

Depois de tantos anos, aprendi a diferenciá-las, esta parece menor, os movimentos são mais violentos, de onde estou me parece faminta. Mas tem algo mais, sinto na pele outro arrepio. Talvez algum Mestre esteja perto. Nunca vi um deles, não saberia distinguir de uma pessoa comum.

Uma mulher indo em direção à porta que leva ao estacionamento coberto chama a atenção da Mancha. Talvez seja a roupa ou seu jeito de andar ou ainda algo que eu não consigo captar, como o medo, ou apenas a luz das escadas internas da loja que levam ao estacionamento contra sua roupa. Eu as sigo, a mulher alcança o estacionamento e parece pressentir alguma coisa, pois olha seguidamente para trás, como se procurasse por algo que não pode enxergar. O instinto faz com que ela acelere os passos, está quase correndo, mesmo a certa distância vejo em seu rosto o pavor.

Então tudo acontece muito rápido. A mulher corre em direção ao seu carro, a Mancha desliza em direção a ela e a alcança, quase que ao mesmo tempo em que eu alcanço a Mancha. De repente, a criatura se descamufla e a mulher e eu a vemos em sua verdadeira forma. A mulher desmaia.

Aponto a lanterna de leds infravermelho sobre a criatura confundindo-a momentaneamente impedindo-a de se camuflar. É a minha chance. Alcanço o teaser na cintura e disparo contra a mancha, que está a menos de dois metros. Ela revida atirando contra mim algo parecido com espinhos enormes, que por pouco não me atingem, pois por sorte me desequilibrei e cai sentado, encostado no carro da mulher. Mesmo caído aciono o teaser de novo.

Fico olhando por alguns segundos a Mancha se desvanecer em uma névoa lilás e desaparecer no ar enquanto ajudo a mulher a se levantar. Mesmo tonta ela pediu que a ajudasse a entrar no carro, queria saber o tinha acontecido.

Vi você desmaiar – disse a ela enquanto guardava a arma de choque – vim te ajudar.

Como sempre, a imensa maioria das pessoas que sobrevivem aos ataques das manchas parecem não lembrar do episódio. Aguardei com a mulher alguns minutos até ela se refazer. Por fim, ela deu um sorriso sem graça, envergonhado, entrou no carro, deu partida e se foi.

Enquanto observo o carro sair da garagem e entrar na avenida, me vem a lembrança da primeira vez que vi as Manchas.

Eu era bem jovem, era noite e tinha acabado de sair do cinema com minha namorada e um grupo de amigos quando resolvemos ir para o estacionamento pegar os carros e ir lanchar. Na lanchonete, estávamos sentados esperando o lanche quando tudo pareceu explodir e do nada objetos, mesas e cadeiras eram lançados para todos os lados e em meio aos gritos de pavor e desespero, um dos meus amigos, o Beto, foi atirado contra a parede e em seguida arrastado porta afora por algo que não podíamos ver. Quero dizer, meus outros amigos não podiam ver.

Eu vi alguma coisa que aparecia e desaparecia conforme o ângulo que eu olhava. Tinha cabeça e tórax grandes e braços e pernas curtos. Um focinho com a boca desproporcional mostrava a ferocidade daquela criatura.

Beto já não gritava, estava em choque e parecia não ver a coisa. Me levantei com dificuldade, mas estava apavorado demais para fazer algo que o ajudasse. Quem salvou o meu amigo foi um homem sentado sozinho em um dos cantos da lanchonete. Ele se levantou rápido e foi atrás da criatura, pegando um extintor de incêndio antes de sair da lanchonete. Quando a alcançou, o descarregou nela, deixando-a aparente. Eu fui o único a ver quando ele a cobriu com alguma coisa derrubando-a ao lado do Beto, que parecia ter se recobrado pois conseguiu levantar e correr, enquanto o homem arrebentava o capot de um carro para ligar parte daquela cobertura na bateria, matando-a quase instantaneamente. A criatura simplesmente desapareceu.

Eu olhava tudo aquilo imóvel, com o rosto colado no vidro da lanchonete. Tudo foi muito rápido e enquanto esperávamos a ambulância para meu amigo e mais umas duas pessoas atingidas por mesas e cadeiras, o homem, que aparentava uns cinquenta anos, veio até onde eu estava, sentou-se ao meu lado e me olhando nos olhos disse: – eu sei que você a viu.

Conversou comigo mais um ou dois minutos fazendo perguntas que não lembro, levantou-se e foi embora como se nada tivesse acontecido.

De repente alguém tocou no meu ombro me tirando do devaneio.

– Olá, Chefe.

Quase enfartei de susto.

Porra, Jorge! Que susto!

O investigador ria escancaradamente. Não era sempre que tinha oportunidade de sacanear seu colega de trabalho mais antigo.

– Essa fica pelas inúmeras vezes em que você tirou sarro com a minha cara – falou Jorge – o delegado pediu para eu procurar o senhor. Apareceu outro corpo.

– Ele mesmo foi ver – continuou – e pareceu a ele que a pessoa morreu recentemente, mas está em piores condições, comparando com as fotos que você mandou. Ele quer o senhor no desfile.

O desfile era um evento de modas que estava acontecendo no Centro de Convenções, o espaço mais amplo da cidade e que tinha a maior capacidade de público.

Começo a pensar sobre o número de pessoas que desaparecem todos os dias. Muitas são pessoas que fogem de suas vidas, de seus relacionamentos. Outros são jovens sedentos por aventuras, ou adultos que abandonam vidas miseráveis e começam outra em lugares diferentes. Há também um outro grupo de desaparecidos, aqueles são procurados por muito tempo e quando encontrados estão mortos. Em geral são mortes cruéis, ocasionadas por psicopatas. Por último existem as que desaparecem para sempre sem deixar vestígios. Estas últimas são os que me preocupam. Sempre pensei no que realmente acontece com elas.

Passo por pessoas elegantemente vestidas, muitas extasiadas, focadas no palco onde modelos, rapazes e moças, vestem roupas de estilistas famosos, desfilando e inebriando a multidão. Chego a um local onde nenhum deles jamais irá ou mesmo saberá que existe, um local úmido no subsolo onde encontro o delegado Aguiar. Ele e o investigador Moura estão pasmos com a cena. É ainda pior do que a que vi pela manhã. O corpo destroçado, literalmente desmontado, massacrado, com pedaços parcialmente devorados, como se houvesse se defrontado com um animal muito grande, muito forte. Apenas o rosto está intacto. Um olhar sem expressão.

– Pobre garoto – falo sem pensar.

Jorge ao meu lado apenas balança a cabeça positivamente.

Será difícil esquecer esse olhar – disse.

Diversas pessoas começaram a chegar ao lugar onde estávamos. Aguiar, ao sair, para ao meu lado e toca o meu braço.

Quero que você tire esse assassino desgraçado da minha cidade, me diz.

Vejo em seus olhos um misto de raiva, medo e nojo de quem fez aquilo com o pobre rapaz. Ou seria de o que fez aquilo com ele? Balanço a cabeça afirmativamente.

Teria sido um assassino louco? Ou um Mestre como me alertaram décadas atrás. Ou os dois?

Saio do Centro de Convenções e entro direto no carro. Fico lá por alguns minutos e peço ao Jorge para me levar até o centro da cidade. Desço antes de chegar e continuo o caminho andando no meio da multidão. A delegacia é perto, apenas três quadras de onde estou. Quando chego, sento à beira do pequeno chafariz na praça em frente a delegacia e uma nova onda de lembrança me vem a mente. Sobre a segunda vez que vi o homem que salvara meu amigo. O nome dele era Barros.

Haviam-se passado mais de dez anos. Eu tinha viajado de férias para a praia com a família e voltava de avião. Minha mulher e filhos estavam na fileira a minha frente em três poltronas juntas, e eu estava na fileira de traz quando alguém pediu licença para sentar na janela onde eu estava. Na hora não o reconheci e nem dei muita atenção até que o vi pedindo alguma coisa para o comissário de bordo. Lembro de olhar para ele e dizer:

Eu conheço você.

A resposta foi um sorriso seguido de duas horas e meia de conversa animada e de um convite para um almoço “qualquer hora dessas”, segundo ele.

O almoço levou mais de ano para acontecer. Nos reencontramos em condições adversas. Fui chamado para investigar um atropelamento e quando cheguei o vi em pé, perto de um corpo no chão.

Vou precisar de você. – Disse ele com um sorriso ao me ver. Ele me pareceu muito velho naquele momento.

Barros estava triste e me disse que o homem era seu amigo. Ele, como eu, acabara de chegar e parecia inquieto, nervoso mesmo.

Preciso contar uma história meio longa – disse-me Barros. Hoje eu pago o almoço.

Durante o almoço ele me contou uma das histórias mais inverossímeis que eu já tinha escutado em minha vida. Ao menos foi o que me pareceu na época. Ele começou contando detalhes de sua vida pessoal, de como foram a sua infância e sua juventude. Tudo o que ele falava parecia a trajetória de uma pessoa normal até que ele começou a falar sobre as Manchas e também sobre uma criatura muito estranha que chamava de Mestre. O que vou te contar, é apenas para seus ouvidos – disse ele me olhando com muita seriedade.

Quando eu era jovem – começou Barros – diria que criança mesmo, minha mãe faleceu e eu e meu pai ficamos sós no mundo. Ele sempre trabalhou muito para sobrevivermos e eu acabei tendo muitos amigos na escola e onde morava. Uma de minhas professoras, a minha predileta, havia falecido estranhamente e eu fiquei arrasado com aquilo. Lembro que ela havia desaparecido por semanas e quando a encontraram, o corpo apresentava mutilações. Eu e um amigo, o homem atropelado, depois de muito procurar acreditávamos haver descoberto o responsável e começamos a persegui-lo. Seu nome era Pierre e digamos que era homem diferente, talvez por ser estrangeiro.

Um dia quando o espreitávamos ele nos descobriu. A princípio ficou ressabiado e logo falamos a ele sobre nossas desconfianças – olha a coragem dos meninos.

Lembro que Pierre nos preparou um lanche. Não é preciso explicar que estávamos completamente enganados sobre ele e foi ali que conhecemos o nosso tutor, que nos mostrou um outro ponto de vista do nosso mundo.

Passamos a encontrá-lo regularmente e nessa época o nosso treinamento começou. Pierre nos ensinou que existem mundos dentro de mundos. Nesse choque de realidades falou sobre a existência de diversos visitantes que vinham ao nosso mundo, em alguns casos estudar, outros apenas observar. Mas falou principalmente sobre certas espécies que por milênios convivem conosco. Pierre nos mostrou cadernos que ele e seu professor escreveram, mas a tradição desse repasse de conhecimento sempre foi a oral, dentro de pequenos grupos.

Hoje – continuou Barros – descobriram escritos antigos, desses que nunca virão a público pois não há o mínimo interesse de governos e principalmente dos poderosos de hoje que sejam revelados. Passamos a fazer parte de um grupo de poucos homens conhecidos como os caçadores. Grupos que existem em diversos lugares do mundo.

O que caçávamos? Você se pergunta – Barros sorria – vou te contar e preste atenção para quando você for repassar para alguém. Não invente e nem subtraia nada do que vou contar.

Há muitos milênios atrás, antes da grande inundação, os visitantes chegaram vindos das estrelas em uma “grande cidade”, que brilhava na luz do sol. Da “grande cidade” saíram muitos dos seus habitantes para viver aqui em nosso mundo. Eles eram dois tipos ou duas raças diferentes, como preferir. Uns eram chamados pelos nossos antepassados de Mestre e os outros de Manchas, pois eram muito difíceis de se ver.

De início os Mestres, daí o porquê eram chamados assim, se dedicaram a ensinar aos povos antigos tudo o que acreditavam ser importante, desde a arte de escrever e ler, até metalurgia, medicina, astronomia, engenharia e outras coisas mais, e isso aconteceu por séculos. Esse conhecimento era praticamente a moeda de troca com o homem antigo que escavava minerais, cultivava para eles, criava animais, fazia tudo que eles necessitavam para manter a “grande cidade” do céu.

Hoje – continuou Barros – sabemos que há escritos que sugerem que os Mestres faziam experiências genéticas com os povos antigos. Manipulando tanto a nossa quanto a sua própria estrutura genética, não apenas nos tornando parecidos com eles, mas o contrário foi muito mais verdadeiro. Eles estavam a cada geração mais parecidos conosco, devido às experiências e principalmente a reprodução entre espécies, embora a princípio fossem bem mais altos. A verdade é que em poucos milênios os Mestres haviam se transformado em nós.

As manchas? Elas eram a guarda dos Mestres, eram as que buscavam seu alimento predileto. Nós.

Em seu convívio conosco os Mestres as deixaram um pouco de lado, principalmente a medida que nós deixávamos de ser seu alimento predileto. Com o tempo algumas se tornaram mais selvagens, mas é claro que sempre leais a eles afinal, assim como nós, eram suas criaturas. E, ao contrário de nós, permanecem leais aos descendentes dos Mestres até hoje.

A grande questão é que o número de Mestres diminuiu e o nosso número aumentou exponencialmente, e nos tornamos a espécie mais adaptada ao nosso mundo. As Manchas passaram a viver em lugares cada vez mais afastados de nós, enquanto que os Mestres aos poucos deixaram sua “grande cidade” e passaram a viver conosco em definitivo.

A Grande cidade? Desapareceu. Porque com os milênios pousada aqui a nossa atmosfera, nosso mundo cobrou seu preço e a cidade dos céus apenas acabou, virou pó em nosso mundo.

O que o Barros falava parecia um conto de fadas, daqueles que contamos aos nossos filhos à noite, do bicho papão, para que se comportem. Confesso que não sabia se acreditava ou não, talvez sim.

Contou também que os remanescentes dos Mestres hoje estão divididos entre os que ainda acreditam que devem viver entre nós passando despercebidos e aqueles que desejam voltar ao mundo natal dos seus ancestrais, em uma tentativa vã de voltar para casa. Já as Manchas apenas continuam a fazer o que sempre fizeram, caçam e matam humanos para seus Mestres.

– Porque não voltam? Por que não vão embora? Eu perguntei em uma ocasião. A resposta foi que eles não eram mais da raça original, haviam mudado tanto que eram considerados impuros. Não pertenciam mais à raça deles.

Falou que só havia conhecido um homem que havia sobrevivido ao encontro com um dos Mestres. Foi Pierre, seu amigo e treinador.

Barros sempre dizia que a única coisa que matava um Mestre era o ouro. Depois daquele dia, sempre carreguei parte da minha munição com ao menos um pente de balas com ponta de ouro, munição especial.

Essa noite não foi a primeira que fiquei acordado pensando em um crime, ou em como pegar um criminoso, mas foi a primeira em que procurei lembrar de fatos há muito acontecidos que talvez pudessem me ajudar a resolver estes crimes.

Chego finalmente no prédio onde moro, estou sem dormir há mais de um dia. Entro no saguão, dou boa noite ao porteiro e vou na direção do elevador. Subo até o 20º andar, saio e olho na direção de onde fica o meu apartamento. Como sempre aguardo alguns segundos para confirmar se tudo está bem, a distância parece tão longa que fico desanimado em pensar que eu tenho que cobrir aqueles quase cinquenta metros. Começo a andar observando as pinturas nas paredes feitas por artistas que moram no prédio e que acabaram fazendo dele uma espécie de galeria de arte. Entro no apartamento, tranco a porta e vou direto para o banheiro tomar um banho. Saio do chuveiro e deito na cama. Apaguei.

Acordo com o celular tocando loucamente. Era Jorge, avisando que estava na entrada do prédio me esperando. Mal tenho tempo de lavar o rosto. Beber café… nem pensar. Que houve? – perguntei ao entrar no carro.

Más notícias, chefe. Outra mulher foi encontrada. Igual ao rapaz de ontem. – ele me olha desconfiado e repuxa os lábios em sinal de dúvida

São quatro até agora, mas o delegado acha que são muitos mais. Ele nos mandou rever as mortes dos últimos seis meses.

Estava torcendo para que fossem crimes comuns, mas a presença das Manchas na cidade e aquelas mortes horríveis apenas confirmavam o que eu mais temia: havia um Mestre aqui, um enlouquecido.

Aguiar não estava bem-humorado, percebia-se que ele não estava nada contente com a situação. Principalmente com a imprensa pegando no pé dele.

Quero falar com você e o Moura – disse abrindo a sala para nós entrarmos.

Fiz menção de falar alguma coisa, mas ele levantou a mão e me encarou sério. Aguiar passou as mãos na barba e encarou Moura que continuava em silêncio. Então voltou seu olhar para mim.

– Você é o único aqui com mente aberta o suficiente para pegar esse cara – disse Aguiar – Monte uma equipe especial e leve o Moura também, preciso que resolva isso logo.

Na conversa acertamos que os outros policiais ficariam de olho no resto da cidade enquanto eu e o Moura ficaríamos na região que consideramos ser a área de caça dele. Dividimos o centro-norte em duas partes e se avistássemos alguma coisa informaríamos uns aos outros e alertaríamos toda a equipe especial. Pelo menos essa era a ideia.

Mas as coisas nunca são simples. Passaram-se vários dias até que uma pista nova pudesse surgir, já que as que tínhamos não levaram a nada. Começou a mudar quando um grupo de adolescentes que passeava no parque, nas margens do rio que corta a cidade, informou o desaparecimento de um dos rapazes.

Quando os policiais chegaram ao local foram informados que, enquanto os garotos estavam sentados na mureta da margem do rio, um deles caiu no gramado e foi arrastado para a área de mata mais fechada do parque. Dois deles chegaram a entrar na mata para procurar, mas urros intimidantes de algum animal fez com que voltassem para perto dos outros jovens e esperassem a chegada dos policiais.

Eu estava em casa, tentando dormir, quando recebi o alerta da equipe especial. Sentei na cama e fiquei pensando no que fazer por alguns segundos.

– Urros? Ali não deve nem ter ratos – pensei alto enquanto me vestia.

Mesmo sendo madrugada fui para lá, afinal de contas não ia conseguir dormir mesmo e o lugar, o tal parque, ficava a uns dez minutos, a pé, de casa.

Pego minha mochila, saio do edifício, desço a alameda até chegar as margens do rio e caminho até entrar no parque. Dois carros de polícia estão estacionados. Procuro ao redor e os encontro ainda sentados na mureta. Pergunto aos dois policiais que estão ali com os jovens qual a situação. Fico sabendo que um dos policiais entrou no parque sozinho tentando achar o rapaz.

Para meu azar fui o primeiro a chegar. Tenho que decidir se espero os outros membros da equipe ou se vou procurá-los. Peço aos policiais para tirarem os jovens dali e acompanhá-los até a delegacia.

Entro no parque e uma luz estranha no alto de um dos edifícios na outra margem do rio, me chama atenção. Achei que fosse a sinalização de alguma antena e volto meu foco para a procura, mas sinto um calafrio me percorrer a espinha. Penso seriamente em esperar pela equipe, porém algo no fundo da minha mente, diz que tenho que continuar. Instintivamente apalpo a pistola, pego a lanterna e deixo o teaser a mão.

Tenho que procurar o jovem e o “policial corajoso” – falo alto, agora sozinho em uma das trilhas do parque.

A luz estranha cada vez mais próxima volta a me incomodar e agora parece que há um leve zumbido. Ilumino toda a minha volta com a lanterna e nada vejo até que o facho de luz ilumina um grupo de árvores à minha frente. Está a uns duzentos metros e instintivamente vou para lá.

Vou andando pela trilha e a cada momento tenho a certeza que se acontecer alguma coisa a equipe especial jamais chegará a tempo para me ajudar. Ouço gritos e apresso meu passo na direção das árvores e de súbito ouço estampidos, três, quatro, cinco tiros disparados. O zumbido aumentou e sumiu de repente.

O policial havia disparado sua pistola. Mil coisas me passam pela cabeça e começo a correr até que o vejo. Ele está ajoelhado com as duas mãos no abdome e vai escorregando até deitar no chão, se encolhendo. Ilumino seu rosto e me ajoelho ao lado dele segurando sua mão e seu olhar parecia de perplexidade, como aqueles que fazemos quando deparamos com algo inacreditável, balbuciou algo parecido com luz, depois algo como filha. Segurei sua mão com mais firmeza, ele ainda respirou algumas vezes até parar.

Meu estômago dava voltas sem parar, eu estava com muita raiva naquele momento. Olhei o policial e um pensamento me veio a cabeça, “como podiam ser tão jovens?”

Deixo de lado o teaser e saco a pistola. Automaticamente troco os pentes colocando o da munição especial. Preciso achar o jovem. Ando mais uns cem metros, troco a luz da lanterna para infravermelho e vice-versa, viro rápido para a esquerda a tempo de ver a Mancha, ela estava indo muito rápido na direção de alguém que estava parado. De longe e à noite o vulto me pareceu ser uma mulher que levantou o braço direito e dele saiu uma luz amarela que desintegrou a Mancha. Então, tudo escureceu.

Continuo andando até praticamente tropeçar no corpo destroçado do rapaz e em um homem a seu lado. Um Mestre, eu tinha certeza. Ilumino a cena da melhor maneira que posso. Ele parecia um homem comum, apesar de alto, exceto pelos cabelos alaranjados, daqueles que os jovens gostam de usar e que naquele momento me parecia artificial. Os olhos dele pareciam mudar de cor, começaram com um tom avermelhado, passando a alaranjados, depois amarelos.

Outro facho de luz surgiu e dessa vez iluminou tudo e eu pude encarar o Mestre, olhar em seus olhos. Saquei a pistola e fiquei com ela na mão encarando-o, mas algo no olhar dele parecia me pedir que eu soltasse minha arma, depois parecia determinar que eu o fizesse.

Ouvi passos quase a meu lado e olhei. Era a criatura que desintegrou a Mancha. Instintivamente a encarei e tive a certeza que era uma mulher, mas não daqui, não do nosso mundo. Imediatamente liguei os pontos, luz estranha me seguindo, zumbido. Ela estava vestida com uma armadura preta com pequenas luzes esbranquiçadas na região do tórax, braços e pernas. Tinha também um capacete acinzentado com diversas luzes coloridas fazendo 360º e ligado por diversos tubos aos ombros.

Com dificuldade conseguir desviar o olhar dela e encarar novamente o homem que depois de alguns segundos voltou-se para mim. Algo em meu cérebro dizia para eu ficar de olho nas mãos dele, e em uma delas havia um bastão pequeno, do tamanho do meu antebraço com luzes coloridas e na outra o que parecia ser um dos órgãos do rapaz. Percebi que eu e a mulher havíamos interrompido seu jantar e ele não estava nada feliz.

Levantei a pistola enquanto ele levantava o bastão e acionava a luz do bastão contra mim, quase ao mesmo tempo em que disparei a pistola contra ele. Ambos caímos, senti uma dor terrível no braço esquerdo e a lanterna rodopiou no ar antes de cair. Disparamos de novo, ele errou e eu também, atirei e acertei de novo e de novo. Dos tiros, três atingiram o homem. Errei um.

O Mestre também estava morto, o acertei duas vezes no peito. Mesmo assim não consegui tirar os olhos dele. Apoio o braço esquerdo no chão e tenho dificuldade para levantar.

Merda de idade – falei quase rindo

O que foi isso?

A luz estava em cima de mim, mas eu estava curioso sobre o bastão. Vou até o estranho objeto e o pego. Examino rapidamente e apesar de belo, nenhuma das luzes coloridas apareceu mais. Desligado, pensei.

Me aproximo do Mestre e de sua vítima quando o facho de luz fica totalmente branca e faz um círculo perfeito com uns cinco metros de diâmetro mais ou menos. Agora tenho certeza que alguma coisa está em cima de mim. Fico olhando por alguns segundos, me dou conta que a mulher ainda estava lá. O braço esquerdo dela agora apontava para mim e reparei que tinha o mesmo padrão de luzes do bastão acendendo e apagando. Era uma arma.

Dei um passo de lado e estiquei o braço com o bastão para que a criatura o apanhasse. Ela abaixou o braço e veio em minha direção, o pegou colocando-o imediatamente ao lado da perna que pareceu incorporar o bastão na armadura, olhou para os dois mortos e balançou negativamente a cabeça. Vi que olhava com interesse para minha pistola, agora na minha cintura, e depois para meu rosto. Estávamos muito perto um do outro, face a face, poderia dizer.

Ela se aproximou ainda mais e quando sua mão tocou meu braço esquerdo uma luz amarela fria fez acabar a dor da ferida, ficando apenas o local ensanguentado. Ela foi até o Mestre e desintegrou o corpo, deu dois passos para trás e desapareceu dentro do facho de luz. Ainda fiquei tentando ver se tinha algo acima de mim, mas desviei o olhar quando ouvi barulho de carros buzinando. Olhei para cima de novo e a luz havia desaparecido. Apenas os corpos do rapaz e do policial estavam ali. Do Mestre, apenas o sangue. Da Mancha, nada.

A dor no braço incomodava, peguei a bolsa e fui me encontrar com os colegas que acabavam de chegar.

Que luz foi aquela? – Perguntou Jorge?

Não sei – respondi segurando o braço.

Rapidamente me levaram para o hospital. Passei um par de dias pensando no que havia visto e se colocava ou não no relatório. Quando voltei a trabalhar passei na sala do Aguiar, bati à porta e abri. Ele me olhou, sorriu levemente e continuou o que estava fazendo. Peguei o elevador, desci e entrei no carro. Aguardei Jorge chegar e sentar atrás do volante.

Pra onde chefe?

Dentro do carro percebo que estou muito velho para isso. Olho para ele por alguns momentos e uma ideia me vem a mente.

Jorge, vou precisar de você. Vou te pagar o almoço hoje – falei e ele sorriu – tenho uma história meio longa para te contar.

Fim

Um conto de Swylmar dos Santos Ferreira em 06 de junho de 2021.

Imagem meramente ilustrativa retirada de br.pinterest.com/pin/120471358771661183/

Um comentário em “SEM MEDO

  1. Sabrina
    21 de dezembro de 2021

    Amei o conto de ficção e suspense.

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Publicado em 20 de junho de 2021 por em Contos, Contos de Ficção Científica.

A saga de um andarilho pelas estrelas

DIVULGAÇÃO A pedido do autor Dan Balan. Sinopse do livro. Utopia pós-moderna, “A saga de um andarilho pelas estrelas” conta a história de um homem que abandona a Terra e viaja pelas estrelas, onde conhece civilizações extraordinárias. Mas o universo guarda infinitas surpresas e alguns planetas podem ser muito perigosos. O enredo é repleto de momentos cômicos e desconcertantes que acabam por inspirar reflexões sobre a vida e a existência. O livro é escrito em prosa em dez capítulos. Oito sonetos também acompanham a narrativa. (Editora Multifoco) Disponível no site da Livraria Cultura, Livraria da Travessa, Editora Multifoco. Andarilho da estrela cintilante Por onde vai sozinho em pensamento, Fugindo dessa terra de tormento, Sem paradeiro certo, triste errante? E procurar o que no firmamento, Que aqui não encontrou sonho distante Nenhum outro arrojado viajante? Volta! Nada se perde com o tempo... “Felicidade quis, sim, encontrar Nesse vasto universo, de numerosas, Infinitas estrelas, não hei de errar! Mas ilusão desfez-se em nebulosas, Tão longe descobri tarde demais: Meu amor deste lugar partiu jamais!”

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Bom dia.
Aproveito este espaço para divulgar o livro da escritora Melissa Tobias: A Realidade de Madhu.

- Sinopse -

Neste surpreendente romance de ficção científica, Madhu é abduzida por uma nave intergaláctica. A bordo da colossal nave alienígena fará amizade com uma bizarra híbrida, conhecerá um androide que vai abalar seu coração e aprenderá lições que mudará sua vida para sempre.
Madhu é uma Semente Estelar e terá que semear a Terra para gerar uma Nova Realidade que substituirá a ilusória realidade criada por Lúcifer. Porém, a missão não será fácil, já que Marduk, a personificação de Lúcifer na Via Láctea, com a ajuda de seus fiéis sentinelas reptilianos, farão de tudo para não deixar a Nova Realidade florescer.
Madhu terá que tomar uma difícil decisão. E aprenderá a usar seu poder sombrio em benefício da Luz.

Novo Desafio EntreContos

Oi pessoal, o site EntreContos - Literatura Fantástica - promove novos desafios, com tema variados sendo uma excelente oportunidade de leitura. Boa sorte e boa leitura.

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Convidamos você que gosta de escrever contos e mini contos dos gêneros de ficção científica, literatura fantástica e terror a nos enviar seus trabalhos para serem publicados neste site, com os créditos ao autor, é claro.
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Prezados leitores e colegas. Faço uso do post para divulgar os trabalhos de nosso colega Luiz Amato no site Wattpad.

Literatura fantástica, ficção cientifica, terror

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