Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Mais um dia inicia e, como sempre, me dirijo às janelas de minha moradia secular. Como sempre, vou apreciar o inevitável surgimento do astro-rei no horizonte. Meus passos ainda são firmes quando subo os três degraus que separam a sala interna da varanda coberta. A temperatura está amena e aproveito a presença dos raros ventos do planalto que veem do continente, passando pelo meu rosto e fazendo os cabelos que ainda possuo, dançarem inquietos em minha cabeça. Involuntariamente sorrio de satisfação e estendo as mãos em uma tentativa vã de segurar os sopros de Éolo.
Vejo-o surgir inexoravelmente no horizonte e atravessar a linha imaginária da terra. Faz parte de minha rotina há tanto tempo que não sei mais com exatidão desde quando acontece.
Confesso que parei de contar os dias, meses e anos quando a era dos homens terminou, restando a mim apenas o silêncio. Sempre que lembro isso surge um amargo terrível em minha boca.
Está na hora de ir ao outro extremo de minha casa, atravesso o grande salão e me dirijo à escadaria que pode me levar à atalaia para observar a vastidão continental, ou ao declive de onde um dia o mar recuou.
Desço.
A passarela de pedras escovadas termina e afundo os pés nas areias vermelhas rumo ao nada. Respiro fundo e arranco de minhas memórias a imagem do oceano batendo nas areias, os coqueiros, árvores e arbustos balançando ao sabor dos ventos.
Não sinto mais conforto nas lembranças. Não sinto mais nada, às vezes parece que tudo que poderiam tirar de mim, tiraram. Restou apenas a saudade.
Onde moro, além de mim, não há mais vida. Apenas a casa milenar que, um dia como tudo o que existiu, também desaparecerá.
Me protejo atrás de uma elevação e permito que a imaginação me pregue uma pequena peça: tenho com a sensação que um pequeno animal, um roedor talvez, se movimenta perto de mim. Devo ter medo? Então meus lábios esboçam o arremedo de um sorriso.
Há muito vivo de monólogos.
– Lembra de quando os homens partiram? De como os que ficaram para trás sofreram?
– Lembra da praga? – falo comigo mesmo.
Agacho e encho a mão com a areia vermelha fina e observo enquanto ela cai, centenas de grãos por vez, até não ficar um.
– Claro que sim – respondo – a gripe de Perseus.
Recosto na elevação, bato as mãos em uma tentativa de limpá-las, e me lembro.
O Perseus, uma das mais modernas astronaves que o homem construiu, um misto de nave de pesquisas e de carga, possuía centenas de tripulantes.
Certo dia ela regressou ao espaço-porto lunar com alguns tripulantes doentes. O que de início pareceu uma simples gripe que seria resolvida por desinfecção e quarentena, mostrou-se o caos. Pouco tempo depois a doença pareceu eliminada, pois não aparecia mais nas sondas médicas, na realidade era o contrário, ela retornava e retornava, vezes a fio, sempre muito mais violenta.
Levou à morte, centenas de milhões de pessoas em seus dois estágios iniciais. Mas o pior foi o terceiro estágio da doença, que era em nível de nano-vírus, disseminando por todas as espécies vivas da terra.
Como nossos cientistas não conseguiram reverter a situação, aconteceu uma corrida para a salvação das espécies. Transferimos uma mínima parte da população para as colônias existentes e outras formadas às pressas. Apenas uma tentativa vã de sobreviver, de salvar nossa espécie.
Talvez o problema tenha terminado para os que se foram, tentando sobreviver em novos mundos. Pensando bem, acabou também para os que ficaram. Foi o fim.
Por séculos aquele foi o grande medo do Homem. O juízo final que tantas grandes civilizações temiam.
Uma lufada de Vento mais forte me traz a realidade, olho ao redor e vejo apenas a imensidão.
– O amargo na boca voltou – falo olhando minha sombra nas areias – é melhor voltar.
A escadaria pareceu-me mais ingrime enquanto subia. É assim todos os dias, ao menos naqueles em que resolvo caminhar mais para longe.
Já houve tempo em que caminhei por dias e dias a fio em uma só direção. Para nada.
Posso considerar minha longa vida como castigo? Não sei.
Tal como Ahasverus vi a evolução do homem pelos séculos afora, mas como Klaatu renascido, vivenciei e compreendi a inadequação de nossa raça, nosso despreparo levou-nos ao fim. Mal lembro como aconteceu. Não importa. Eu fiquei.
Atravesso a passagem que leva ao salão principal da moradia e caminho em direção aos sofás de granito. As pernas doem e preciso descansar. Sirvo água de uma jarra em um copo e bebo um gole. Raridade.
– Castigo… sim – Falo comigo mesmo enquanto observo o grande salão descolorido.
Castigo para um homem que um dia tentou driblar a morte. Hoje sei que os motivos, mesmo nobres não justificavam a ousadia. Objetivava melhorar a saúde do povo e, talvez, até mesmo conseguir mais dias para o homem, que em tempos terríveis, pereciam aos milhões.
– Castigo, sim foi castigo.
Era jovem e havia sido convidado por um dos professores para trabalhar em um projeto, e o fiz com entusiasmo. Passava todo o meu tempo dedicado às pesquisas genéticas com gases medicamentais e a recuperação genética de tecidos. A medida que o tempo passava eu me interessava cada vez mais, chegando a dormir vários dias e semanas no laboratório. Os outros colegas que de início riam-se de mim, passaram a mostrar preocupação. A dedicação fez com que aprofundasse mais e mais nas pesquisas e, o inevitável aconteceu. Em um acidente tolo, fui exposto a uma das experiências mais avançadas.
Disseram que fiquei anos em coma. Toda a dedicação, o trabalho, tudo para nada, quando acordei, aquele tipo de pesquisa foi proibida. Passou a ser inapropriado, incorreta.
É estranho lembrar justamente agora. Os primeiros meses e anos foram muito divertidos, ainda colhi os louros da experiência, todos queriam saber como havia conseguido a sequência correta dos gases medicamentais que alteraram uma mínima parte do meu DNA. Concordei com a maior parte dos estudos que se propuseram e ajudei a aumentar o período de vida útil da humanidade em mais de cinquenta por cento, mas isso não foi o suficiente. Muitos me culpavam quando seus entes queridos morriam, amaldiçoavam-me por não envelhecer um só dia.
Saio do devaneio… das lembranças. Vou às janelas, olho a noite fria e vislumbro o que me restou.
Sento outra vez e recordo o dia que tomei a decisão de me afastar da cidade onde vivia e “desaparecer”. Fui para outros continentes onde passei por muitas vidas, pelos séculos que lá fiquei. Quando retornei à minha terra, ninguém sabia de mim, dali em diante vivi nas sombras, sem que soubessem quem era ou quem fui.
Mas eu sabia. Sabia o que perdi. Perdi os amigos que fiz por todo o mundo, os amores que tive, as cidades amadas e, principalmente, o ser humano e a vida que se foram.
Há milênios parei de contar o tempo, parei de me torturar. Procuro acostumar com o castigo que é envelhecer lentamente.
Sinto-me como a serpente, quando expulsa do paraíso.
Acordo e o sol está alto. Devo me preparar. Todos os dias tenho a esperança de ter permissão do Criador para seguir os homens.
Sei que envelheço mais rápido agora e mesmo assim quero deixar um legado do que foi minha espécie. Vou diariamente à sala, onde guardei todo o saber que consegui adquirir da humanidade, nossa história e nosso extraordinário conhecimento para outra raça que eventualmente nosso planeta possa produzir, ou ainda para outras, vindas de outros mundos, que aqui possam chegar.
Agora, após outro dia, olho para as estrelas. Meu corpo treme com o frio, mas procuro um lugar específico, quase escondido: a constelação de Ofiúco. Lembro da lenda grega sobre sua criação, ela fala sobre um tempo onde deuses e homens caminhavam juntos, fala sobre traição, ciúmes e vingança.
Sinto-me como Asclépio que usou da medicina e da suas habilidades mágicas para ressuscitar os mortos, recebendo por isso um castigo. O meu castigo, ao contrário do personagem lendário, é a vida.
Outra lenda me vem a mente: Adão, Eva e a serpente. A tentação. A expulsão do Paraíso. Castigo eterno para a serpente, para o homem.
O amargor vem à minha boca novamente, observo nuvens escuras tomando conta dos céus, raios começam a atravessá-lo por todos os lados fazendo uma dança, um espetáculo grandioso para meus olhos cansados. Todas as noites, espero ser fulminado por um raio ou algo parecido, para enfim fazer parte das estrelas…
Mas que bobagem… agora… não há serpentes no céu.
Fim
Um conto de Swylmar Ferreira. Imagem meramente ilustrativa retirada de feeling small by wandervision.