Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Tristan Martins acordou num sobressalto. Não que isso fosse incomum nos últimos meses, pois lembrava muito pouco dos últimos acontecimentos. Levantou-se da pequena cama, deu três passos e se olhou no espelho acima de uma pia de esmalte branco, na parede imediatamente à sua frente. Abriu a torneira e a pouca água que saiu serviu para lavar o rosto. Olhou-se novamente, ajeitou o cabelo, mas mesmo assim a imagem o desagradava profundamente.
O cômodo de dois por três metros onde o haviam colocado tinha três sólidas paredes de lado e no fundo, e também uma espécie de vidro ou plástico incolor na frente. Estranhamente, ele não via nada, pois nada havia para ver, se considerarmos que a escuridão absoluta não conta.
Resolveu novamente rememorar os fatos que o levaram àquela estranha prisão. Estava indo para uma reunião com diversos amigos, seria apenas um motivo a mais para que no final fossem para um barzinho beber cerveja e comer fatias de queijo provolone e salame, quando sentiu uma forte pressão na nuca. Teve tempo de parar o carro, mas não se lembra de ter aberto a porta, quanto mais se machucou alguém.
Estranhou o fato de acordar na prisão e, que em todo o tempo, estava só. Havia visto quatro pessoas, sendo uma delas, um homem jovem de aproximadamente vinte anos que a seu ver era o carcereiro, pois lhe levava comida uma vez ao dia. Mas isso também era suposição, porque não podia ver o sol de onde estava e suas reclamações de nada adiantaram.
A segunda pessoa, um homem que se apresentou como o seu advogado de defesa, chegou a entrar no cubículo, conversaram longamente e lhe disse que em breve aconteceria o julgamento.
— Mas de que me acusam? – Perguntou desesperado. A comoção quase fez com que o advogado se emocionasse também, mas como todo homem preparado para aquele tipo de tarefa, apenas olhou nos olhos do réu.
— O seu crime foi gigantesco meu caro senhor, para lhe dizer a verdade é um julgamento de crimes de guerra. Seus crimes foram considerados crimes contra a humanidade. Não importa o fato de que você tenha vencido na época, mas sim das milhões de mortes que causou.
O relato do advogado o havia deixado consternado. Tinha 32 anos de idade e nunca havia liderado nada em sua vida. Para dizer a verdade evitava falar em público, desde que percebera que conseguia convencer pessoas com muita facilidade. Não era militar, nem político, portanto haviam errado de pessoa.
— Não pode ter sido eu, pois não sou político, nem militar, e nem mesmo existe uma guerra acontecendo que poderia gerar tantas mortes assim. Existem pequenos conflitos, mas nada que possa ter a magnitude do que sou acusado. Vocês cometeram um erro.
O homem o olhou demoradamente, levantou-se e pousou a mão em seu ombro. Dirigiu-se para a parede de vidro, passou por ela como se nada estivesse lá e simplesmente desapareceu. Voltou mais duas vezes, fez perguntas sobre seus familiares e amigos, sobre sua maneira de pensar, onde estudara e os lugares onde trabalhou, se recusando a responder as perguntas dele.
A terceira pessoa a visitá-lo, outro homem, era muito interessante, um tipo muito falante já entrando em seus cinquenta e poucos anos. Talvez fosse um jornalista, fez muitas perguntas. Conversou com ele por várias horas e isso o distraiu, pois a solidão da prisão o deixava abatido. O homem deixara escapar ser uma espécie de escritor ou historiador. Quando foi embora disse que estaria no julgamento e também uma estranha frase final:
— Você não é aquilo que eu pensava.
A quarta pessoa, uma mulher, também idosa, foi decerto a mais estranha. Estava sentado na cama perdido em pensamentos quando escutou passos vindos em sua direção. Como sempre com o jovem carcereiro acompanhando. Ela se aproximou, mas apenas o olhou por alguns poucos segundos e foi embora. Era uma mulher asiática de mais de 60 anos e alguma coisa em seu olhar encheu-o de medo.
Sentado, aguardava a chegada do advogado para que juntos fossem ao tribunal, afinal hoje seria o grande dia, o dia de seu julgamento.
Foi a primeira vez que saiu da cela. Foi incrível! Quando o advogado e ele saíram da cela, não deram mais do que alguns passos e pararam. Repentinamente viu-se em uma ampla sala cuja iluminação estava centrada em uma cadeira que ficava no ponto mais alto a sua frente. De ambos os lados, tribunas repletas de pessoas em completo silêncio. Ele e o advogado estavam em pé no centro da sala e quando as luzes se acenderam por completo, viu duas cadeiras posicionadas atrás deles, sendo que a maior para o advogado e uma menor à esquerda desta, para ele. Estava observando a sala com atenção quando uma batida seca de martelo na madeira chamou-lhe a atenção para a figura de uma mulher sentada na cadeira alta. Era a mesma senhora que havia visto anteriormente, só que desta vez ela vestia uma toga negra e ele percebeu que ela era o juiz.
Repentinamente todos se sentaram e após alguns instantes ouviu a voz da mulher.
— No tribunal da verdade, da luz e da perfeição será julgado Tristan Martins por crimes de guerra contra a humanidade – disse a mulher em voz grave.
– Ao senhor – falou ela olhando-o – é facultado o direito a um protetor, que é o seu advogado e que após as acusações que formularei falará por você. Só poderá se pronunciar após a acusação e a defesa terem terminado, entendeu, senhor Martins?
Ele fez um sinal positivo com a cabeça, então a velha senhora começou a explanar uma série de acontecimentos relevantes ao tribunal, que ele não conseguiu entender. Talvez por não prestar a atenção devida, pois era como se não fosse ele que estivesse ali.
— O réu é acusado de manipular povos de diversos países, enquanto líder mundial de grande prestigio e envolver toda a humanidade na mais terrível guerra já acontecida. É acusado também pela morte de mais de 650 milhões de seres humanos. De ordenar a criação de armas com força de desintegração de seres vivos e bens materiais. De desenvolver máquinas de destruição que abalaram para sempre a humanidade. Também é acusado de, mesmo após a vitória, promover tribunais de exceção contra líderes dos povos derrotados, exigir reparações de guerra e de governar como um tirano.
Tristan escutara as acusações feitas pela própria juíza, que agora ele reconhecia como acusadora e júri, pois ficava claro a todo instante que as pessoas nas tribunas eram meros espectadores.
O advogado então se levantou e prestou seus respeitos à juíza, cumprimentou as tribunas iniciou seu discurso:
— Os crimes pelos quais meu protegido é acusado aconteceram há mais de trezentos anos e mancharam a história da humanidade com sangue e pavor. Na época, não poderia saber que suas atitudes levariam à maior guerra da humanidade, mas não estou aqui para questionar e sim para elucidar esses motivos e para garantir à senhora magistrada deste consagrado tribunal de justiça e da revelação, que meu protegido é merecedor de uma nova oportunidade, o que poderia ser a vontade deste tribunal.
A mulher que escutara as palavras do advogado protetor, durante alguns instantes olhou para o acusado e para as pessoas nas tribunas:
— Que os fatos ocorridos sejam apresentados para que todos tenham ciência por meio da luz da verdade.
No meio da sala, entre a assento da juíza e do réu surgiu uma luz que foi do piso ao teto e então imagens tridimensionais apareceram. No princípio, como passagens normais do dia a dia, mas depois como imagens de grupos de pessoas que pareciam combinar ações, imagens de eleições, conflitos pequenos, novas reuniões, discursos para os povos vizinhos.
Então finalmente tudo começou a fazer sentido, ele era o grande manipulador, tinha o dom da palavra e o usara em proveito próprio, buscara o poder e o conseguira. Tinha colocado Estado contra Estado, cidade contra cidade, irmão contra irmão.
As imagens continuavam por horas seguidas, continham cenas de guerras com armas fantásticas que tornaram obsoletas as armas nucleares, jatos que usavam motores com tecnologia capaz de levá-los a sair da órbita do planeta. Salas escuras com pessoas sendo julgadas e executadas sumariamente e por fim, a figura de um homem velho e amargo sentado em uma cadeira de rodas, odiado, desprezado e temido por todos, tendo por companhia apenas o medo que espalhou e o terror que gerou em décadas de destruição.
— Em quatro décadas o senhor trouxe à humanidade apenas o medo – disse a magistrada — suas construções e avanços tecnológicos levaram o homem às estrelas nos séculos seguintes, tivemos contato com novas raças, novas civilizações e nunca mais tivemos uma guerra, interna ou externa. Mas não podemos nos dar ao luxo de deixar de julgá-lo agora que temos a oportunidade.
Tristan estava apático, não podia acreditar no que acontecia, viu os seus olhos naquele homem sem expressão, não existia compaixão, nem remorso, apenas o ódio profundo contra si mesmo.
Entendeu então que ninguém o desprezaria mais do que ele mesmo. Transformara-se naquilo que mais combatera em sua vida. Lágrimas de desespero saíam de seus olhos, mas manteve-se em silêncio, conforme determinado.
O advogado protetor levantou-se e com um olhar sério dirigido à magistrada e aos ouvintes presentes começou a dirigir suas considerações.
— Em primeiro lugar senhoras e senhores, não se esqueçam de que o acusado não cometeu ainda nenhum crime. Não podemos alterar a linha do tempo de maneira tão radical, como retirar um ser vivo que teve presença marcante ou não naquela linha. Ademais, se lembrem que para tudo sempre existem motivos, os quais foram mostrados. Aqui não julgamos se o réu é inocente ou culpado pelos crimes que serão cometidos, mas sim se merece uma oportunidade de consertar o que foi feito de errado. A Senhora magistrada, melhor do que ninguém nesta sala, sabe o que se passa e o que passou com este homem, já que a cadeira da verdade permite que veja o que há em sua mente. Viu que apenas a vergonha e a humilhação estão presentes e que o desprezo que sente por si mesmo no momento é maior do que o que nós mesmos sentiremos.
— Portanto, continuou o protetor, peço-lhe que tome a decisão correta para este caso e que sua decisão de à palavra Justiça o significado que ela merece. Muito obrigado.
— Suas palavras pedindo justiça, senhor protetor, poderiam ser usadas pelos milhões que morreram – disse a velha senhora com grande amargura, olhando para o advogado protetor.
— Mas nos acontecimentos passados ou futuros, conforme o ponto de vista, devemos nos ater aos detalhes dos acontecimentos.
— Estou aqui para tomar decisão e é o que farei. Portanto, após vermos os acontecimentos previstos é minha decisão que o réu seja devolvido à sua época, no exato instante que foi retirado para que não haja lapso. Decido também que suas memórias sejam parcialmente mantidas para que se lembre do que está por vir e saiba que o futuro depende apenas de decisões simples que todos tomam diariamente. Quero que conste dos autos que estou consciente das mudanças que irão ocorrer nesta linha do tempo e que talvez mude radicalmente o futuro da civilização. Que se levante o réu e que retorne imediatamente ao momento da captura.
Tristan, repentinamente, estava outra vez no volante de seu carro, com um casal do lado de fora, perguntando se ele estava bem. Afirmou positivamente e agradeceu-lhes, coisa que não tinha o costume de fazer. Percebeu que aquele seria o momento de tomar a decisão, seguir para aquele encontro ou voltar para casa.
Quarenta anos depois estava sentado em uma casa pequena, olhando seus netos brincando na pequena piscina. Nunca soube realmente se foi um sonho ou se foi verdade, mas decidiu que queria uma vida tranquila e durante anos dirigiu sua vida para isso.
Nunca houve guerras mundiais, apenas avanços científicos. Seguiu sua vida, até o fim.
Um conto de Swylmar Ferreira
Imagem meramente ilustrativa retirada de search images internet.