Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Eu sempre gostei da noite, de caminhar por entre ela, viver dentro dela, sempre achei que tinha um perfume diferente, tornando as pessoas mais belas. Nela eu podia praticamente tudo, desde trabalhar até praticar o meu esporte predileto, caçar.
Mas é claro que não poderia viver apenas em minhas horas prediletas. Tenho também minhas obrigações, afinal a vida não é apenas diversão. Não sou uma pessoa totalmente rígida, por exemplo, um colega precisou de trocar de turno por uma semana e eu claro, fui voluntário e trabalhei de dia. Nem preciso dizer que tinha interesses, digamos escusos, a tratar. Um novo amor.
O fato é que sentado aqui na rua, na escuridão da madrugada, estou tentando lembrar o que aconteceu. Não agora, neste momento em que alguma coisa me atravessou o tórax, mas nas últimas quarenta e oito horas. Talvez um pouco mais.
O que deu errado?
Confesso ser estranho ver meu sangue na calçada, logo eu que vi o de tantas pessoas se perdendo no solo, em asfaltos de ruas tão distantes, bueiros, ou mesmo sendo sugado na madrugada e consumido por criaturas da noite. Bem, vamos ao que interessa. Meu penúltimo amor.
Seus amigos a chamavam Sue, era morena, alta e bem forte. Meu tipo, digamos assim. A estava observando havia alguns meses, primeiro em um restaurante com o namorado, onde a vi pela primeira vez, depois nos restaurantes perto de onde trabalhava e, por fim, na última semana, diariamente no metro ou onde quer que eu quisesse, que tivesse interesse. Sue já estava marcada, seria minha.
Tinha que aproveitar aquele momento, a mídia havia me esquecido, outro caçador havia aparecido na cidade, um muito mais perigoso que degolava suas vítimas e desaparecia com as cabeças. Além disso, a polícia desistiu de me perseguir há tempos, exceção de um investigador, Brunão, que continuava empenhado em me descobrir. Gosto do cara. Persistente.
O interessante é que jamais chegaram perto de mim de verdade, em momento algum desconfiaram de quem eu poderia ser e embora, em dado momento a “caçada” por mim aumentasse de modo espetacular, nunca acharam nada concreto. Denominaram-me assassino da zero hora.
Segundo os principais jornais eu havia matado seis belas moças na capital, mas a verdade é que foram mais, muitas mais.
Voltemos ao que interessa. Antes de ontem a noite algo me chamou a atenção. Sue acabava de chegar em casa com o namorado para uma deliciosa noite de amor – ela morava no terceiro andar do edifício Mistral – e, claro, como todo voyer ficaria de olho nas janelas do seu apartamento que davam para a avenida.
Em meu esconderijo, uma porta lateral de um bar que arrombei, estava disposto a verificar se o namorado ficaria a noite toda, sonhava com a possibilidade de entrar no apartamento enquanto faziam amor e, então…
Foi quando vi uma figura estranha caminhando pela calçada furtivamente, procurando por sombras para se movimentar. Passou perto do lugar onde eu estava de vigília.
Que pessoa mais estranha, pensei, o jeito de andar rebolativo, jogando os ombros, mas, ao mesmo tempo, sombrio. Ri baixinho comigo mesmo ao observar melhor. Seria o batmam? O personagem em quadrinhos? Me contive para não cair na gargalhada. Só não tinha a capa, mas as roupas eram negras e coladas ao corpo e tinha uma espécie de máscara que sobressaia em sua cabeça.
Uma mulher, a criatura era uma mulher. Ela atravessou a rua em direção ao edifício em frente onde, a essa altura, Sue fazia amor com o namorado, e simplesmente subiu pelas paredes. Parou no andar equivalente ao da minha escolhida e ficou olhando por uns minutos na direção onde estavam. Mesmo longe contei na máscara oito pontos luminosos, quatro de cada lado do rosto. O que seriam aquilo?
Naquele instante pintou a dúvida. A mulher parecia uma barata subindo a parede. Tinha algum super-herói de quadrinhos que era uma mulher barata? Não. Claro que não. Quando terminei meu devaneio, havia sumido.
Será que o X-tudo que havia comido tinha me feito mal a esse ponto? Pensando bem, foi tudo tão rápido. Em vez de me intimidar, como sempre, deu-se o contrário, estava mais focado em tornar Sue mais um item de minha coleção.
Olhei para o relógio. Uma e meia da manhã. Saí da porta lentamente e a encostei no batente com o menor ruido que pude fazer e voltei quase correndo para onde estava a moto que havia escondido para uma saída, digamos, rápida. Foi quando a vi de novo, estava a uns cinquenta metros à minha frente e se preparava para entrar em uma ruela na área de comércio. Parou embaixo de uma lâmpada fraca, mesmo assim pude confirmar que era uma mulher, muito bela e ao mesmo tempo estranha por sinal.
Como sei que era bela? Ela simplesmente retirou a máscara, seu bobo. E em um ou dois segundos de observação eu estava apaixonado outra vez. Mas você vai perguntar: e a Sue?
Quem? Seria minha resposta definitiva. Que coisa estranha e rápida era o amor, pensei.
Larguei a motocicleta onde estava, para dizer a verdade nem a liguei, e fiquei vendo para onde a bela iria. Confesso que era estranho pois ela usava as paredes e o alto dos edifícios para se movimentar e eu corria pelas calçadas na madrugada, a essa altura vidrado naquela personagem. Olhei o relógio, quase duas e meia. Pensei em abandonar a perseguição e ir embora, mas algo dentro de mim, curiosidade ou cobiça, não permitiu.
Duas quadras depois ela entrou em uma viela escura, eu cheguei quase ao mesmo tempo de vê-la desaparecer por entre duas paredes. Ia seguir o meu novo prêmio quando o instinto falou mais alto. Peguei o celular e liguei a lanterna apontando para o local onde ela entrou. Nada. A luz simplesmente sumia ali. Um arrepio correu por minhas costas causando breve apreensão.
Me enchi de coragem e fui aproximando, até entrar em um corredor completamente escuro. Confesso não ter contado os passos que dava na escuridão, não que importasse naquele momento, o que mais incomodava era o silêncio sepulcral do lugar, os cheiros fortes de químicos, fumaças estranhas passavam por minhas pernas, senti um breve tremor no solo e parei apreensivo. Então as paredes começaram a se alargar e uma luz tênue surgiu à minha frente. Quando percebi estava em um enorme galpão.
– Olá! – Disse a mulher, ainda com máscara à minha frente – vejo que consegui chamar sua atenção.
Fiquei gelado ao vê-la tão perto, imóvel mesmo, aquilo nunca havia acontecido antes. Ser descoberto assim, tão facilmente… ela sorria enquanto tirava as luvas e mostrava a mão e antebraços parte metálicos e parte plástico. Me olhava com muito interesse, se aproximando de mim quase até nossos corpos colarem, ai deu uma volta completa ao meu redor me tocando o pescoço com um dos dedos gelados de metal.
Senti algo diferente de tudo o que havia sentido antes, um misto de medo, excitação, desejo. Ela, que havia se afastado um passo, aproximou-se de novo e me cheirou, como um predador cheira sua presa, como eu havia feito inúmeras vezes enquanto caçava as minhas garotas. Tive uma ereção naquele instante e ela percebeu, aproximou seu nariz da minha boca, do meu rosto e vi seus olhos pela primeira vez, frente a frente. Eram totalmente brancos, as íris e pupilas eram artificiais, implantes biomecânicos. Ela me apalpou.
– Seu nome é João, não é? Venha comigo, precisamos conversar.
Andamos alguns metros e começaram a surgir do chão diversas paredes, dez, doze, de modo assimétrico, nunca se tocando, com diversos objetos que não conseguia reconhecer, exceção de uma mesa. Já havia visto uma mesa como aquela, não tão bem elaborada, anos atrás, em filmes de televisão, daquelas que assassinos em série usam para torturar e matar suas vítimas. Era isso que a mulher era, uma caçadora, como eu. O que poderia querer comigo, fiquei imaginando.
A essa altura já havia conseguido controlar o meu medo/tesão e estiquei minha mão para tocá-la. Não consegui. Diversos móveis modulares saíram ao mesmo tempo do chão, ela apontou para um totalmente branco.
– Coloque seus pertences e facas ali em cima, inclusive a pequena que carrega no bolso.
Fiquei muito em dúvida se obedecia ou não, mas tirei as duas facas de bainha horizontais da cintura e as coloquei no móvel, assim como celular, relógio e pulseira. Peguei a faca de bolso e estranhamente senti o calor que sempre sentia quando a usava. Olhei para ela que sorria e decidi entregar as facas que ela pediu.
Em um piscar de olhos ela venceu o par de metros que nos separava e me agarrou por trás (que velocidade fantástica, pensei), senti uma estranha dor no pescoço e sua língua quente em minha orelha.
Ouvi seu sorriso malicioso. Senti seu cheiro.
– Você nunca se aproveitou de suas vítimas não é, João? Sempre o que quis era ver o medo, ver os olhos apavorados de quem sabia que iria morrer, não é? E agora? Como se sente sendo você a caça?
Mas eu não sentia nada a não ser o corpo dela colado ao meu, seus braços e mãos me agarrando, sentia um tesão incrível e queria possuí-la de qualquer jeito. Joguei a faca no móvel branco, como se fossem minhas roupas. Ela me soltou e me olhou. Andou até uma das paredes, apanhou algo brilhante e apontou para mim. Tudo ficou escuro, quente, gostoso. Como eu estava feliz.
Acordei com um gosto estranho na boca, gosto de ferro, sentei na cama metálica gelada até meus sentidos voltarem ao normal e perceber que uma discussão feroz acontecia do outro lado da parede e resolvi ir até lá, afinal uma das vozes era dela. Ainda cambaleante tropecei no móvel onde estavam minhas facas e em um outro com pequenas peças eletrônicas, jogando tudo ao chão.
A voz metálica e rude se calou por instantes e depois continuou.
– Você foi avisada sobre a proibição de trazer essas “coisas” para nossa dimensão. Ninguém a impede de terminá-las no lugar onde existem. Aqui não – dizia a voz cada vez mais alterada – sabe das consequências.
– Cuidado! Este é o meu parlac. Mesmo sendo um dos vigilantes, aqui tudo funciona conforme minha vontade, não como a sua. Além disso eu não o trouxe para cá, nem mesmo o convidei ou atraí. Ele veio porque quis.
– Pobre inocente – a voz parecia ainda mais ameaçadora – apenas deixou o portal aberto.
Dei mais alguns passos, e me vi perto dos interlocutores. Ele era bem maior que eu ou ela, muito mais máquina que homem, das pernas e ombros saiam máquinas, engrenagens que até agora não sei para que serviam, mas que ficavam se movimentando todo o tempo como tentáculos procurando por algo que jamais encontrariam, na face tinha três olhos multicoloridos e mais nada. Havia objetos que pensei serem armas em todas as partes do corpo. Ela também estava diferente, estava com a máscara outra vez e suas pernas agora eram um misto de metal e carne humana.
Eles pararam quando me viram. Quando pisquei os olhos ele estava à minha frente, tinha quase duas vezes o meu tamanho. Só percebi que tinha quatro braços, quando um deles me agarrou pelo ombro. Uma luz amarela saiu do terceiro olho e percorreu meu corpo, ele me soltou e voltou onde ela estava.
– Foi avisada – ele falou e então ficou translúcido e sumiu.
Duas coisas me deixaram preocupado, ou mesmo com medo eu diria. Primeiro o desaparecimento daquela coisa gigantesca e em seguida ver o braço metálico da minha amada se transformando de um tipo de arma em um braço normal. Ela olhou a mão até ficar satisfeita com o formato final.
Eu ainda estava zonzo com toda a situação, até outra coisa me chamar a atenção. Uma enorme claridade vinha de algum lugar a frente e fui até lá, caminhando sob o olhar atento de minha anfitriã, atravessei uma enorme janela e saí para uma varanda grande, onde pude contemplar o lugar. Uma cidade tão grande que se perdia de vista, esfumaçada como se a poluição houvesse tomado conta de tudo e não se podia ver o sol. Prédios enormes, tubulações e máquinas caóticas e estranhas se movimentando por todos os lados e ainda abaixo e acima do prédio onde estávamos. Máquinas e criaturas improváveis, e tudo correndo em uma dimensão paralela à minha, mesmos dias, anos, séculos, milênios, tudo igual e ao mesmo tempo tão diferente.
Eu estava perplexo com o caos, a minha frente um dirigível passou carregando alguma coisa translúcida, mais acima algo parecido com uma aeronave sem asas voava recolhendo com braços metálicos partes e peças mecânicas já sem uso espalhadas pela cidade. Fiquei observando o todo por longos momentos, até sentir as mãos da minha nova amada em meu braço e ouvir sua voz me chamando para entrar.
Perguntei o era “parlac”, ela me olhou por alguns segundos antes de responder que naquela dimensão, os seus habitantes a haviam dividido em microdimensões chamadas “parlacs”. Estas microdimensões eram tão próximas e tão mínimas que podiam ser vistas umas às outras. O mais interessante segundo ela é que na dimensão principal todos podiam se movimentar livremente e que haviam regras para todos. Era aonde estávamos.
– Nós estamos aqui por um motivo, não quero me afeiçoar a uma presa. E para mim você é apenas isso.
Fiz questão de procurar seus olhos e pensei em lhe falar que eramos muito diferentes, pois eu jamais caçaria uma estranha, jamais caçaria se não houvesse paixão, amor. Queria dizer que sem isso, sem sentimentos, jamais haveria prazer. Mas simplesmente calei. Ela queria o prazer da caça. E eu, naquele instante, decidi lhe dar prazer.
Ela me apontou um corredor e me deu um tempo para que eu atravessasse e procurasse me esconder. Perguntei pelas lâminas e ela disse que me daria a chance que eu dava as minhas meninas. Olhei outra vez em seus olhos brancos e sai rapidamente de lá, atravessei o longo corredor que levava a minha dimensão e corri o mais rápido que pude para chegar ao abrigo. Afinal eram apenas duas, três quadras talvez.
Enquanto corria e arfava, tinha a impressão de ser observado cada vez mais de perto, de ser caçado e aquilo estranhamente me excitava.
Parei a pouco mais de uma centena de metros do local onde eu costumava observar Sue e o namorado, olhei em direção ao apartamento e uma escuridão velada tomava conta do prédio. Deve ser agora, pensei naquele momento, se fosse ela tentaria me pegar enquanto procurava chegar no esconderijo, antes de me trancar.
Comecei a corrida a toda velocidade, três, quatro passos, quando houve o choque. Pude vê-la se levantando a poucos metros de mim, com uma rapidez incrível. Droga, como ela fez aquilo? Questionei-me.
Próteses, idiota, não lembra da discussão com o grandão? Ela tinha próteses nas pernas e braços.
Levantei a tempo de sentir ela me levantar e jogar contra a parede e em seguida me segurar. Agarrei suas duas mãos e consegui, por alguns instantes, impedi-la de fazer algo pior. Vi sua mão metálica se dobrando e agarrando a minha, ao tempo que algo translúcido como plástico saia do braço e entrava lentamente entre minhas costelas, enquanto sua outra mão já solta prendia meu pescoço e voltava a me firmar contra a parede. Percebi seu sorriso alegre enquanto o ar saia de meus pulmões.
– E então meu amor, o que acha disso? – Falou ela retirando rapidamente a máscara.
Duas coisas aconteceram praticamente no mesmo segundo, a primeira foi sentir seu hálito doce e respirá-lo profundamente. A segunda, lembrar que havia entregue as lâminas que ela pediu, não uma que me era especial e ficava na fivela de meu cinto. Era uma faca pequena, de madeira, servia apenas como perfurante, para ocasiões especiais.
Ela estava tão perto que não resisti e beijei seus lábios enquanto ela tirava e enfiava a arma estranha no meu tórax outra vez. Meu amor era cada vez maior, foi a primeira mulher que meus lábios tocaram.
Agi, então.
Ela parou repentinamente e se afastou de mim. Deu alguns passos para trás e me olhou sem acreditar, colocou as mãos no pescoço, sentindo que a estocada havia lacerado profundamente e o sangue saia veloz a cada batida do coração. Virou-se a passos lentos e desapareceu na escuridão. Espero não tê-la decepcionado.
Sozinho, olho para o céu e vejo as estrelas que a luz da cidade permite ver, e me sinto em paz até escutar passos pesados e zunidos estranhos de pequenas máquinas, sei que alguém grande se aproxima. Aposto que sei quem é. Um feixe de luz amarelo aponta em minha direção e percorre meu corpo, como fosse uma luz que permeia a escuridão que habita em meu interior. Brinco com meu sangue na calçada até o fim.
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Abro os olhos, as luzes saídas de um foco central parecem querer me cegar, sinto o corpo leve e tento me levantar mas não consigo, estou preso. Aos poucos acostumo com a claridade, ergo os braços e os vejo, assim como minhas mãos. São engrenagens mecânicas com dezenas de pequenas máquinas trabalhando.
Percebo que de um modo ou de outro, morri.
Imagem meramente ilustrativa retirada de http://futurehumanevolution.com/future-image-gallery-portfolio/future-human-art-gallery/nggallery/page/2.