Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
O jantar, bastante agradável, foi uma pequena aula para Ludmilla, que conheceu
mais sobre o excelente trabalho de Stéphany, na área da Química. Após comerem,
Stéphany apanhou uma caneta e papel e, a pedido da princesa, explicou-lhe seu projeto
ganhador do prêmio Nobel de Química (e que tinha posto em prática em South).
– Por favor, meu anjo, pegue caneta e papel pra mamãe – pediu a mulher à sua
filha, que foi imediatamente buscar. – O que eu construi, Ludmilla, foi…
Meia hora depois, o esboço com toda a explicação do fantástico projeto de
Stéphany estava apresentado na mesa de jantar. Contudo, para poupar a paciência de
nossos leitores e leitoras sem paciência para as minúcias da Química, evitamos nos
delongar com este detalhe que não interfere no curso dos eventos.
– Bem, voilà, eis a minha contribuição para a humanidade e, para a minha
pequena Daiera – disse ela, por fim, descansando a caneta e sorrindo para a filha, que
continuava a comer e ria sonsamente, com os lábios sujos de molho. Enfim, foi
inevitável que todos aplaudissem a cientista e a parabenizassem, mais uma vez, por sua
fantástica ideia.
Quando a linda e pequena Daiera começou a bocejar de sono, Ludmilla sentiu
que era hora de despregar de sua brilhante amiga e ir para seu apartamento. Stéphany
insistiu que ela ficasse e dormisse no prédio dela, assim como Juliern e seu marido, que
aceitaram o convite de pronto. Ludmilla, ainda tímida, não cedeu a nenhum dos
diversos pedidos de Stéphany, Karl e Daiera, para que posasse ali uma noite apenas, na
casa da amiga. Por fim, conseguiu desvencilhar dos amáveis anfitriões. Seu desejo era
poder curtir sozinha sua recém-conquistada liberdade total. Sua solidão voluntária era
muito bem-vinda. Se despedindo de todos e agradecendo de coração pela hospitalidade,
Ludmilla voltou satisfeita para seu quarto, em seu prédio.
Posídon já voltara para o quarto de Hypólito e o encontrara-o em pé, olhando
fixamente pela janela. Lá fora, uma tempestade se aproximava.
– Filho, você precisa sair daqui agora! – disse o deus grego em tom de urgência.
– O que aconteceu, meu pai? – perguntou o rapaz, saindo do seu devaneio.
– Está decidido o fim de South para o nascer do Sol.
– Como você pôde! Eu achei que era um blefe. Inclusive nas assembleias, todos
se questionam se isso não seria mesmo um…
– Você não entende…!
– Eu… Bem, eu não posso ir, pai! – Hypólito disse de uma vez a resolução que
remoía em seus devaneios. Para Hypólito, Posídon desistiria da absurda ideia de destruir
o seatead, ainda na quinta-feira. Jamais pensara que o pai levaria a cabo todas as
ameaças. O que ele ganharia com a destruição de South? Hypólito não sabia. E ele se
sentia mal ao saber que todos os habitantes de South, seus vizinhos, seus colegas de
estudo, professores, todos pereceriam. Todavia, seu estômago realmente deu uma
cambalhota ao lembrar-se que, entre os contados para morrer estava Ludmilla. Mais que por
todos, ele sentia por ela um forte sentimento de proteção e de resguardo; ele não
permitiria jamais que o mar devorasse a vida daqueles lábios, que agora pensava lhe
pertencer. Ele não permitiria isso. Não mesmo!
– Como? O que disse? – perguntou Posídon, sem entender.
Num ímpeto, Hypólito, tão forte e corajoso, caiu de joelhos ali mesmo, entre a
janela e os pés de Posídon, para implorar ao deus, pela vida da princesa, pelo menos.
Posídon sentia-se ultrajado por ver seu filho apaixonado pela protegida de uma deusa
rival. Pensou em jogar o filho ao mar, pensou em sequestrá-lo a força, mas se rendeu,
enfim, às lágrimas de sincero amor, que este derramava por esta garota que sequer sabia
que Hypólito era filho de Posídon. Por fim, impôs as condições do resgate:
– Como você sabe, você herdou a minha proteção e meus dons sobre o mar.
Portanto, onde você estiver não será tocado pela tempestade, nem pelo mar. Logo,
mantenha-a perto de você até acabar tudo isso. Assim ela também será poupada. Se
você não conseguir mantê-la perto de você, cessará minha responsabilidade sobre o que
quer que aconteça. Dito isso, o deus grego desapareceu. Lá fora, a chuva caia fina sobre
a Colônia Três.
De volta ao seu quarto, Ludmilla ligou seu aparelho MP3 player e colocou uma
canção suave. Olhou pela janela e viu nuvens escuras cobrindo o céu; e uma chuva fina
já caía lá fora. A Lua já estava toda coberta pelo negrume da cumulus-nimbus, que
vinha ameaçadora. Ela ficou alguns minutos fitando o céu, até que a chuva, já bastante
forte, começou a invadir seu quarto. Fechou rapidamente a janela, pegou um pouco de
água da torneira e colocou numa espécie de chaleira elétrica. Sessenta segundos depois,
a chaleira já apitava com o vapor da água quente. A princesa colocou um pouco de água
numa caneca, inseriu um saquinho de chá e deixou-o imerso, por alguns momentos,
enquanto trocava de roupa. A princesa prendeu o cabelo num simples rabo-de-cavalo,
com uma piranha, vestiu uma camisa branca larga e sem estampa e, apenas de calcinha
e camiseta, desfilou pelo apartamento, procurando açúcar ou adoçante.
Sentada na poltrona, Ludmilla saboreava seu chá de camomila, enquanto
relembrava do agradável jantar que acabara de ter, das conversas, dos risos, das piadas,
do intercâmbio de cultura e conhecimento. Ela deixara a representante da nação South e
seu marido na casa da vizinha e voltara para seu apartamento, do outro lado da estreita
rua. Apesar dos pedidos para que pousasse lá, ela, Ludmilla não quis deixar de
experimentar, por pouco que fosse, o seu tempo de verdadeira liberdade que agora tinha
em South. Sem guardas, sem damas de companhia, sem vigilância, sem decoro, sem
protocolos para seguir, sem paparazzi, sem formalidades, sem nada. Há milhares de
quilômetros do seu palácio, Ludmilla estava livre e, finalmente, se sentia apenas uma
garota, ou melhor, uma mulher. Uma mulher anarquista, que não devia nada para
ninguém; nem mesmo satisfações. Deixando de lado o chazinho de camomila, Luiza
saltou da poltrona e assaltou o pote de sorvete de baunilha, que deixaram para ela, no
refrigerador; uma simples traquinagem que em seu palácio não seria facilemente
permitido sem que antes metade do castelo já não tomasse conhecimento.
Ainda estava com a colher cheia de sorvete na boca, quando bateram na porta.
Ludmilla levantou-se e foi atendê-la, esquecendo-se que estava seminua e totalmente à
vontade. Ao abrir a porta, ela assustou-se em ver Hypólito de pé, completamente
enxarcado na sua porta, sobre o tapete de “bem-vindo”.
Ludmilla não sabia onde enfiar a cara, tamanha vergonha. Agora, só agora, ela
se dera conta de que estava seminua, descalça, desarrumada. E estava de frente de um
dos homens mais lindos que ela já vira; seus cabelos negros estavam ensopados,
escorrendo água em seu rosto liso e perfeitamente simétrico. Seu sorriso perfeito refletia
a luz do seu quarto; seus músculos rijos e esculpidos debaixo da camiseta molhada
estavam mais visíveis e bem marcados. Hypólito disse-lhe um contente e agradável boa-
noite, que Ludmilla não soube imitar com realismo.
Não era pra menos; desde que conhecera tal rapaz, Ludmilla não fora mais a
mulher educada e inteligente que aprendera a ser; agora ela era mais mocinha
desajeitada e ingênua. Ela não se sentia mais como uma princesa, mas como uma
deslocada, sem recato ou elegância típica da realeza. Ludmilla, ainda sem jeito, viu que
não havia outro remédio agora, que convidar o garotão para entrar e se secar. O que
daria tempo dela se vestir respeitosamente. Hypólito – que praticamente voara na sua
lancha em direção a Colônia Um, em meio àquela chuva, só para encontrar sua amada a
tempo estar com ela durante os piores acontecimentos –, entrou sem demora e, tomando
a maçaneta de suas delicadas mãos, trancou a porta por dentro, dando duas voltas na
Naquela noite o semideus e a princesa fariam amor pela primeira vez, enquanto
que, lá fora, o mar encapelava-se, como que preparando o abalo das estruturas das três
plataformas marinhas.
Ludmilla abriu os olhos e se viu deitada ao lado de Hypólito. Uma satisfação
enorme, advinda da noite anterior, refulgia em sua mente. Ludmilla levantou-se, como
que em sonho, sentindo-se a mais feliz das mulheres. Ela dançava na cozinha e,
voltando ao quarto, para certificar-se que não era um sonho, chegou a se beliscar e a dar
pulinhos de alegria. Ludmilla, que era virgem, agora tinha perdido a sua virgindade, não
com um dos príncipes europeus insossos, mas com o homem mais bonito, gentil,
atencioso e misterioso que jamais conhecera. E ela sentia algo bastante especial pelo
garotão. Ainda se congratulando, Ludmilla abriu a porta e saiu para a chuva, a fim de
dançar e pular e comemorar com mais liberdade.
Lá fora chovia forte, mas Ludmilla já não se importava com os pingos da chuva
parecendo bolas de gude; ela tivera a melhor noite da sua “vidinha” sem graça e sem
emoção. Andando como que em sonho, em direção ao monumento de vidro dos
primeiros moradores de South, Ludmilla escorregou e torcera o pé esquerdo. A dor foi
um alarme para a realidade: ela estava sozinha, na tempestade. Ventos fortes
balançavam tudo ao seu redor. Ao longe, Ludmilla viu o mar encapelado subir e lavar a
torre Barroca, jogando ao mar diversos animais e plantas em mar aberto. Alguns deles,
como macacos e cobras, eram levados junto com os galhos das árvores em que se
apoiavam, pelas fortes ondas enfurecidas. Ludmilla, ainda estirada no chão, tentou pedir
por socorro, por ajuda, mas o barulho da chuva no metal do chão e dos prédios a
impedia de ser ouvida. Será que ninguém a ouvia? Onde estaria todo mundo? Então,
num único instante, o monumento de vidro oscilou e caiu sobre a princesa, ferindo-a
gravemente.
Mortalmente ferida, Ludmilla percebeu o chão debaixo de si, tremia e se
desfazia, engolindo tudo; os minijardins, os prédios, os patinetes, os monumentos, os
carbonários em desespero… Tudo era lançado e devorado pelo mar bravio. Ludmilla
sabia que ela e toda a plataforma, afundavam no Mar Oceano, assim como outra mítica
civilização…
Por volta das nove horas da manhã, Hypólito acordou. O sol já estava alto no
céu. O garotão olhou ao redor e viu que a estrutura do apartamento da sua princesa
estava intacta. Com um sorriso no rosto, Hypólito espreguiçou-se e, ao chamar a
princesa pelo nome, não obteve resposta. Hypólito achou que ela estivesse no banheiro
e, decidiu levantar-se para ver o que havia para o café. Dando alguns passos, ele viu que
a porta, que ele mesmo trancara, estava agora escancarada. No seu coração, tomava
forma um palpite tão tenebroso, que Hypólito não ousou sequer pensar nele nem por um
minuto. No fundo do seu coração, Hypólito sabia que Ludmilla não estava mais com
ele. Certamente ela havia saído do quarto e estava longe da segurança do apartamento,
longe da segurança dos seus braços: o único lugar seguro em todo o Atlântico, naquela
noite, quando South sucumbira.
Surpreendentemnte, a partir do tapete de “Bem-Vindo”, já não havia mais South.
Todo o vestigio da existência daquela nação estava nos destroços espalhados por
quilômetros de água salgada. Tudo havia sido tragado, submergido. Inclusive Ludmilla.
Um grito de dor rasgou-lhe o peito e ecoou em águas internacionais. Lágrimas
salgadas, choro, angústia sem fim, sob o sol de nove horas, num céu de azul claríssimo.
Ele não saberia viver sem sua amada a partir de então. Angustiado de coração com a
pior das tragédias e perturbado com tamanha dor, Hypólito sentiu-se sem chão (apesar
de estar sobre a única coluna que resistia em pé). Sentado no abismo que o separava da
sua amada, ele não sabia o que fazer ou a quem recorrer. Quem, no panteão dos deuses
poderia agora aliviar sua dor? Onde buscar Ludmilla em meio a tantos destroços? O que
fazer com este amor que ele descobriu (tarde demais) sentir por ela, Ludmilla? Talvez
ela estivesse nas nuvens. Mas não havia nuvens no céu, não é? Não importa! E
Hypólito, ainda sentado na beira da única placa de aço que resistia sobre o mar, cantou
um triste e fúnebre canto:
♦♣♥♠
“São tão confortáveis as nuvens,
Não é?
Parece algodão de esperança!
Não é?
Por favor, confirme o que te digo!
Por que eu não posso te ouvir?
São as nuvens, eu sei.
Terminado o mergulho, vamos passear,
Não é?
Se eu perder o cadarço ou o juízo,
Você vem me buscar de manhã,
Não é?
Por que você insiste em ficar com a boca
Fechada. Calada. Morta.
Se eu preciso tanto de você?
Por favor, diga-me que amanhã fará bom tempo,
Que as nuvens não vão esconder tudo.
São tão confortáveis, as nuvens…!
Tão confortáveis, as nuvens…!
Tão confortáveis…!
Mas elas me escondem seu sorriso!”
♥♠♦♣
Não suportando mais tanta dor, tanta tristeza e desespero, Hypólito, em prantos,
partiu heroicamente, tal como Ismália, pelo caminho no qual sua nobre amada se
embrenhara, em busca da princesa de sua alma.
FIM.