Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
É interessante como o calor no inicio da manhã pode ser massacrante, mesmo após uma ducha fria a sensação térmica é desconfortável. Passo pela mesa de computador no canto da sala e aperto uma das teclas, a imagem da cachoeira aparece na tela assim como o horário e a data. Vou me vestir e paro ainda no segundo passo, voltando minha atenção outra vez para a data na tela, dois de setembro.
– Mas ontem foi dia dois – falo para mim mesmo – essa merda tá dando problema outra vez.
Termino de me vestir, tomo um café e vou para o carro, tentando me preparar psicologicamente para o trânsito até o trabalho. Em certos dias faço o trajeto casa-trabalho em dez minutos, em outros como hoje, segunda-feira, mais de hora.
– Bom dia, autoridade!
Olhei diretamente na direção de onde vinha a voz conhecida e sorri ao ver um dos guardadores de carros que nos últimos anos tomava conta do estacionamento em frente ao prédio de escritórios onde trabalho. Depois de um trânsito estressante é sempre bom encontrar alguém de alto astral.
– Oi, autoridade – respondo – como foi o final de semana?
– Ótimo – respondeu mostrando o sorriso desdentado – a patroa fez carne de panela ontem e eu comi até.
– Beleza, mais tarde passa uma água no meu…
Súbito um estampido me chama a atenção, seguido de um grito. Autoridade e eu ficamos paralisados. De relance vi uma jovem ser retirada à força de um dos carros que ainda procuravam por vaga e ser jogada ao chão. Um homem entrou no veículo e saiu em disparada pelo estacionamento.
Corri em direção à pobre moça que tentava se levantar. Ajudei-a e ficamos entre dois veículos vendo o carro ir em direção à saída do estacionamento. Não foi longe, um caminhão estava entrando no local por onde o bandido pretendia sair.
Autoridade parecia alheio à situação, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Ou não? Não seria apenas um mecanismo de autodefesa? Reparei na mão que segurava uma flanela amarela, tremia compulsivamente, como as mãos da moça que gritava em pânico do meu lado.
Nervoso, o assaltante tentou sair de ré, em velocidade, mas acabou batendo em um dos carros que estavam parados e abandonados devido à situação e acabou atingindo Autoridade que ficou no chão desacordado. Cheguei a ver o cara abandonar o carro e sair correndo dali, mas minha atenção assim como a de outras pessoas que acompanhavam o desenrolar do caso era com o guardador de carros.
Aguardei a chegada da policia e da ambulância do SAMU que atenderam às diversas chamadas dos que ali estavam. Quando se foram, fui para o escritório.
Quando cheguei a minha sala, Larissa, minha assistente, informou que mais cedo um homem me procurou e que retornaria mais tarde. Olhei o cartão, muito bonito por sinal: Josep Lichestein da Silva – doutor em física. Em seguida o nome da empresa – Paradox Corporation.
– Tem certeza que é para mim, Larissa?
– Tenho sim, Vitor. Era um cara muito educado, charmoso mesmo – deu um sorrisinho maroto – ficou de voltar mais tarde e falou que vocês se conheciam.
Esse nome não me era estranho – pensei – claro que o conhecia de algum lugar. De onde?
Como sempre, fui à copa e peguei minha caneca no armário, coloquei pela metade de café. Voltei para frente da tela do computador e casualmente comecei a procurar no programa de buscas o nome da empresa. Para minha surpresa existiam dezenas de sites com esse nome. Quando achei o site com a logomarca idêntica a do cartão, descobri que era um daqueles sites com a mensagem “em construção”. Depois procurei pelo nome que constava do cartão e não achei nada. Voltei, então, ao site da empresa.
– Larissa, você reconhece este site?
Ela passou rápido para trás de minha cadeira e olhou para a tela. Virou a cabeça uma ou duas vezes, como de hábito e mexeu a boca.
– Sim… não me é estranho. Não vimos ontem? É da empresa do cara que te procurou pela manhã?
-É. Também me parece familiar, mas não é de nenhum de nossos clientes e aqui na empresa não tem registro.
Larissa passou a mão pelo meu ombro direito e sorriu.
– Estão te chamando no recursos humanos – ela me olhava nos olhos – não deixa eles demitirem a gente, tá. Te vejo depois do almoço.
No relógio de pulso eram quase onze horas. Fiquei olhando Larissa se afastar rebolando pelo corredor, peguei minhas coisas e fui para a reunião.
Acabei ficando sem almoço, como ontem. Para falar a verdade não consegui me lembrar de quando almocei nos últimos dias. Ainda estava remoendo o que havia sido conversado na fatídica reunião e pensei nas palavras da minha assistente. Como ela podia saber?
Gostava muito de Larissa. Mais do que deveria, eu sei. Dois anos trabalhando juntos e nunca tive coragem de chamá-la para almoçar ou mesmo ter uma conversa mais séria, apesar da atenção que ela me dispensava. A timidez atrapalhava.
Uma voz me trouxe a realidade.
– Oi, Vitor!
O homem vestido com um blazer verde me olhava curioso.
– Como está hoje?
Eu o conhecia? Reconhecia? Sim, já o tinha visto antes, só não sabia onde, nem quando.
– Olá Sr. …
– Lichestein – ele se apressou e apertou minha mão – Dr. Josep Lichestein da Silva.
Sorriu educadamente e agradeceu quando apontei a cadeira à frente de minha mesa.
– Está me reconhecendo? – Perguntou. – Lembra-se de mim?
Minha cabeça parecia em brasa, tinha a sensação de mal estar, tontura, talvez fosse a fome. Larissa entrou na sala com duas pastas de documentos nas mãos. Estava séria.
– Oi, Larissa – disse Lichestein – como foi o almoço?
– Uma porcaria – disse sem pensar – detesto almoçar sozinha.
Larissa nos olhou, pediu desculpas e saiu. Lichestein ficou olhando e quando se voltou para mim, seu rosto apesar de inexpressivo, mostrava cansaço.
– Nós já tivemos essa conversa mais de uma vez e você sabe disso Vitor.
Sabia que ele estava certo. Interiormente queria me livrar daquele momento, da situação, do homem.
– Refresque minha memória, Dr. Lichestein. Sei que o conheço e que já tivemos essa conversa, mas para mim tudo é muito estranho. O que, afinal de contas, está acontecendo?
Ele esticou a mão e pegou um pacote grande que havia colocado junto à mala na cadeira ao lado.
– Dessa vez não vamos comer na lanchonete – disse e me passou um sanduiche – pasta de atum, como você gosta. Ah, e suco de laranja.
– Quando comemos juntos? – perguntei mais para mim que a ele.
– Ontem. Ou hoje. Outro dia qualquer. Todos os dias. Não sei.
Lichestein estava sério e mastigava um pedaço do seu sanduiche enquanto me encarava. Parecia pensar em como falar comigo.
– Posso falar abertamente?
Não esperou minha resposta.
– Você está se perguntando se eu sou algum tipo de louco e ao mesmo tempo tem certeza que tudo o que fez hoje, ao menos até agora, é o que fez ontem. Não é? Deja vu.
Apenas meneei a cabeça positivamente enquanto comia meu sanduíche.
– Pois bem – continuou – ontem só tivemos essa conversa no final da tarde, mas isso não importa. Vivemos uma histerese crônica, Vitor.
Parou de falar e ficou me olhando.
– Apesar de não conhecer base científica, acredito que estamos presos em um looping temporal.
O breve silêncio foi constrangedor.
– Ótimo! Ontem riu de mim e pediu que me retirasse. Estou, digo, estamos nesse pesadelo há algum tempo. Normalmente, até onde consegui estudar, apenas os responsáveis pelo looping saberiam que está acontecendo ou teriam a sensação de deja vu. E você meu caro me disse diversas vezes que tem essa sensação.
Não sabia o porquê, mas resolvi falar com ele.
– Eu realmente tenho a sensação de deja vu. Mas para mim isso é muito difícil de acreditar. Nos livros que li e filmes de ficção que vi era necessária uma grande quantidade de energia, máquinas e tecnologias. E além do mais Dr. Lichestein, por que eu?
– Porque nós, Vitor? Perguntou Lichestein.
– Ontem levamos tempo demais conversando sobre este fato e acabou custando a vida de Larissa.
– O que? – Perguntei atônito. – O que você disse?
– Vamos Vitor, tente se lembrar – Lichestein me olhava nos olhos.
Olhei na direção de Larissa, ela conversava alegremente com alguém ao telefone. Fechei os olhos e procurei lembrar. Veio-me à mente algumas imagens: ela me pedindo para descer e ir encontrar alguém no saguão do prédio, em seguida, tiros. O bandido da manhã voltou e passou em uma motocicleta, descarregando uma pistola na direção da portaria, justamente na hora da saída dos funcionários. Dentre os mortos estava Larissa.
– Então, Vitor?
– Não estou enlouquecendo, não é doutor? Mas como isso pode estar acontecendo?
Lichestein se inclinou para mais perto.
– Não sei. Talvez, e apenas talvez, a explicação esteja na evolução da raça humana. Sabe-se que de tempos em tempos alguns poucos indivíduos de nossa espécie dão um salto evolutivo, isso já aconteceu diversas vezes: mãos melhores, andar sobre dois pés, instintos diferenciados. Quem sabe se neste momento, certo grupo tenha desenvolvido percepção extra-sensorial. Algum outro possa enxergar espectros de cores diferentes, ou se alguns, ainda mais raros, quando juntos consigam perceber essa distorção temporal e mudar alguma situação para que tudo volte ao normal.
Não podia acreditar que estava tendo aquela conversa. Comecei a acreditar que eu era o lunático. Uma leve batida na porta e Larissa entra desconfiada, olhando para Lichestein.
– Minha prima ligou e perguntou se posso descer e pegar uma encomenda para minha mãe. Subo rapidinho, tá?
– Não posso explicar agora, mas preciso que fique aqui comigo, na sala. Ligue para sua prima e peça que venha amanhã.
Larissa estava surpresa. Levantei e peguei em suas mãos.
– Quero que fique aqui comigo, certo?
– Algo vai acontecer, não vai? Tenho uma sensação estranha – Larissa tremia.
– Sim.
Esperamos por alguns minutos, virei para Lichestein e sugeri mudarmos ainda mais o dia anterior. Peguei o telefone e liguei para a segurança na portaria. Avisei sobre um cara de moto com uma arma na mão.
Mesmo a presença da segurança armada e de um carro da policia no estacionamento, não serviu para afugentar o bandido que acabou preso.
Depois, Lichestein e eu conversamos com dois investigadores e explicamos ter visto o cara de moto sacar a pistola e apontar para o prédio duas vezes, como se estivesse ensaiando. E depois de preso diversas pessoas o reconheceram como o assaltante da manhã. Passava das oito da noite quando me despedi de Lichestein.
– Se conseguimos consertar o paradoxo, provavelmente não me lembrarei de nada e não o procurarei de manhã – disse ele.
– Tomara que não nos encontremos mais – sorri e apertei-lhe as mãos – obrigado.
Tudo estava mudado dali em diante, sentia que tudo era novo. Venci minha timidez e convidei Larissa para jantar, depois fomos para minha casa, começamos a assistir um filme e ficamos juntos toda a noite.
****
O calor, mesmo no inicio daquela manhã, estava massacrante. Levantei e olhei para Larissa que dormia vestida apenas com uma camiseta. Fiquei apreciando suas belas nádegas por alguns instantes. Tomei uma ducha fria e depois preparei o café enquanto ela dormia.
Como todos os dias, fui à mesa de computador e apertei uma das teclas, a imagem de Larissa apareceu na tela, assim como o horário e a data. Vesti-me e esperei enquanto ela se aprontava. Tomamos café e fomos para a garagem. O trânsito estava terrível.
Estacionei o carro em uma das últimas vagas, saltei e procurei meu guardador predileto, até ouvir sua voz poucos metros para trás.
– Bom dia, Autoridade – falou e sorriu com o mesmo sorriso desdentado.
– Bom dia.
Só então me dei conta que ele conversava com outro homem, trajando blazer verde e com uma pasta de couro velha nas mãos.
– Oi, Vitor, meu caro.
Fim
Um conto de Swylmar Ferreira
Figura meramente ilustrativa do site: www.treknologic.com