Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Um presente para Sharah
O vento frio de junho, mesmo ao meio dia, provoca um breve arrepio. O Shopping Center está razoavelmente cheio, centenas de pessoas andam alvoroçadas – lembram formigas no jardim – passando de um lado ao outro no corredor onde estou sentado. Aprecio suas breves companhias. De uma loja de perfumes sai uma jovem mulher, loira de cabelos curtos, levando pela mão um menino vestindo fantasia de Batman. Duas coisas chamaram minha atenção na cena: a primeira foram as pernas desnudas da mulher, mal cobertas por um vestido tomara que caia, que encobria apenas a metade das coxas, a segunda foi a mão solta do menino, esmagando uma barra de chocolate semi derretido. Ele estava me olhando com um sorriso chocolatado.
– Crianças.
A voz do segurança parado ao meu lado, encerra meu devaneio.
– Oi, seu Marcus – disse sorrindo o jovem – veio comprar o remedinho?
Sorri de volta. Já o conhecia de outras visitas ao meu “lugar predileto”.
– Não! Vim entregar um presente – continuei sorrindo.
Ele se afastou quando chegou outro segurança andando em um segway[1] branco fazendo um barulho engraçado, provavelmente causado por falta de manutenção.
Eles começam a conversar, eu volto minha atenção para o menino, agora sentado no piso do shopping, pintando-o com o que resta da barra de chocolate para horror da mulher responsável pela limpeza que observava a cena. Volto minha atenção e casualmente observo os seguranças enquanto faço uma breve leitura labial.
– O velho babão chegou mais cedo hoje – disse o homem no segway – cheguei às sete da manhã e ele já estava aqui.
O outro riu gostosamente. Logo depois respondeu.
– Não tem mais o que fazer em casa. Ele trabalhava aqui quando fui contratado. Aposentou-se a seis ou sete anos e ainda vem aqui todos os dias, acredita? É apenas mais um velho que a família não faz questão de ter por perto – riram outra vez – mas tu viu as pernas da loira … muito gostosa. Se eu pego a danada…
– Imbecis! Não importa o quanto evolua a humanidade, nem em qual universo esteja, sempre haverá imbecis – falo em um sopro de voz que apenas eu posso escutar.
Retorno minha atenção à criança que naquele instante estava nos braços da mãe que ia em direção à escada rolante.
Concentro-me, vendo as diversas pessoas que descem até achar o rosto que procurava. Exatamente ao meio dia, de acordo com um dos relógios eletrônicos do shopping, ela desce as escadas rolantes vinda do curso de inglês. Sharah aniversaria hoje, faz quinze anos. Ela me disse, dias atrás, que haverá uma festa e que seus amigos irão. Percebo como está radiante, como seu sorriso parece diferente. Mais feliz, eu diria.
– Oi vovô – fala com um grande sorriso – trouxe meu presente?
– Sim.
Ela me olha impaciente, enquanto procura com os olhos por um pacote qualquer.
– Como está seu pai? – Pergunto verdadeiramente interessado.
– Muito bem, cada vez mais parecido com você – diz ela – lamento não ter te convidado para a festa, mas é para jovens. Você entende, não é?
– Sim … entendo. Sei que não me convidar para a festa não foi idéia sua – falo enquanto seguro breve e levemente suas mãos.
Olho em seus olhos e percebo a tristeza.
– Trouxe dois presentes para você. O primeiro é este.
Coloco a mão no bolso e retiro uma caixa com um anel.
– Nossa! Vovô que legal – diz enquanto coloca no dedo – tá meio grande, mas é super diferente. Tá faltando uma parte?
– Ele foi meu por quarenta anos e tem um significado muito especial. O segundo presente é uma história.
Ela me olha de lado.
– Eu estou com fome vovô. Vamos comer um sanduíche enquanto você fala? Conte uma história bem legal, aquela da pescaria você contou umas mil vezes.
Pego dinheiro no bolso e entrego a ela. Não é muito, apenas o suficiente para o lanche. Depois ela volta e começa a comer. Aproveito enquanto está lanchando para falar.
O que é um dia na vida de alguém? Nada provavelmente. Ou tudo?
Apesar de não saber naquele momento, ontem foi o dia para o qual me preparei por toda a vida – Sharah sorriu e franziu os olhos questionando. Ergui a mão pedindo que tivesse paciência. – Permita que me explique melhor.
Na minha cidade, quando era jovem, existia um jogo muito interessante que no início era jogado apenas virtualmente por crianças e adultos, mas depois com o boom da nanotecnologia, tornou-se real. Esse jogo, chamado infiltrated madness, consistia em um dispositivo gigantesco – era uma cidade praticamente – que criava uma ponte entre os múltiplos universos paralelos, ou multiversos, para que os jogadores pudessem jogar nas diversas realidades.
Esses jogos podiam ser sobre qualquer coisa, desde que o usuário pudesse pagar. Os jogadores participavam desde aventuras românticas até guerras, passando por assassinatos, roubos, investigações, episódios históricos, dentre outros, não importando sobre as mudanças ocasionadas na linha temporal, pois tudo estava em outro universo onde o nosso regime legal não poderia alcançá-los. É claro que era necessário tomar cuidado com realidades mais avançadas e também com os nativos dos diversos locais. Se fossem apanhados, dependendo do jogo ou da missão, o jogador estava morto. Isso aconteceu muitas vezes.
Em certa época, a moralidade do jogo passou a ser questionada pela maioria da nossa sociedade e é claro que a elite política atendeu às solicitações daquela maioria e o jogo foi proibido.
Mas era tarde demais. Diversos grupos, inclusive governamentais, haviam conseguido tecnologias mais avançadas e criado seus próprios dispositivos, infinitamente menores e mais sofisticados e os jogos continuaram na ilegalidade. Eles prosseguiram até que um grupo composto por terroristas do multiverso passou a atacar as realidades.
As informações eram desencontradas, sabíamos apenas que uma determinada organização terrorista, chamado “o punho” enviara um de seus soldados e estaria nesta localização. O período temporal era outra história, então cada um de nós foi enviado há um tempo diferente. O detalhe principal era que “o punho” havia conseguido confeccionar um dispositivo que era ao mesmo tempo um criador de pontes entre os universos e uma bomba temporal.
Eu não era inexperiente, já havia saltado em duas missões, mas dessa vez era diferente.
Quando me enviaram para cá a situação era caótica. Nossa realidade estava se deteriorando muito rapidamente. A última cartada de meus superiores era o envio de alguns protetores do antigo jogo para esta realidade, para este mundo, para tentar impedir a explosão do dispositivo. Fui o terceiro a ser enviado, não sei se deu tempo de mais alguém saltar depois de mim. Esperei por quarenta anos.
Sharah estava boquiaberta.
– Que história legal vovô. Não sabia que você curtia sci-fy.
Olhei minha neta por alguns instantes até ser interrompido.
– Pode dar uma ajudinha moço – um homem malvestido e de aparência estranha me olhava e estendia uma das mãos para mim – preciso fazer uma viagem e se puder contribuir com um dinheiro qualquer me auxilia muito.
Sharah me viu retirar duas ou três moedas e dar nas mãos do homem que sorriu e foi andando.
– A história tá massa vovô, continue.
Sorri!
Acordei bem cedo ontem, como sempre. Fui para a cozinha ainda sonolento fazer café. Coloquei água na panela, acendi o fogo no fogão e enquanto a água fervia, fui a banheiro fazer a barba. Sentei à pequena mesa no canto da sala enquanto bebia o líquido quente e mentalmente, como o fiz todos os dias nesses anos, rememorei os detalhes da minha missão. Depois de um banho rápido – quente, é claro – coloquei meus amigos inseparáveis: o anel que acabo de te dar e meu DSLA[2] – aquela coisa que você diz parecer com um soco inglês, e em seguida saí para minhas atividades diárias.
Desci do ônibus na rodoviária e subi as escadas rolantes, atravessei a rua e fui em direção ao shopping. Nos últimos anos, encostado no muro do viaduto, fica um pedinte, passo por ele e dou-lhe uma moeda quando ele me mostra uma receita médica velha e desbotada. Eu o conheço desde minha juventude, seu nome é Torsval.
Fui direto ao banheiro, depois passei na lanchonete, comprei um café e sentei no meu banco favorito, em frente à loja de perfumes. Enquanto bebia o café fiquei olhando uma porta de metal em uma parede entre as lojas. Comecei a rir alto e sozinho, não me importando com os outros clientes. Confesso que quase chorei, depois de tantos anos…
Aquela porta nunca antes esteve lá, até ontem.
Automaticamente fui em direção a ela e acionei o DSLA. Escutei o barulho de uma trava abrindo, como se fosse uma fechadura e vi a porta entreabrir. Ainda olhei para os lados, mas ninguém se aproximou e entrei no corredor.
O corredor é uma ponte entre as realidades onde “o punho” escondeu a bomba temporal. A mudança de realidades sempre me confunde. Dei alguns passos e me encolhi encostado a uma parede enquanto meus olhos se acostumavam às luzes verde escuras do lugar que lembravam rotolights. Reconheci o zumbido alto, lembrava um tipo de motor, parecia vir de algum ponto no final do corredor. Era uma bomba temporal, eu tinha certeza. Minha missão ficava mais próxima de terminar a cada instante. Em meu íntimo sabia que era a arma que destruiria o multiverso, criando o caos derradeiro.
– Marcus … Marcus? – Reconheci a voz de meu único companheiro vivo. Era Torsval. Mais alguns passos e ele me alcançou. – Ainda bem que me esperou Marcus Kletus.
– É bom você estar comigo Primus Torsval.
O corredor terminava em uma escadaria em caracol, levando a uma sala ampla onde vimos, com horror, uma máquina que era ao mesmo tempo um dispositivo e uma bomba. Pulsava ininterruptamente e emitia uma luz lilás. Senti que estava perto de explodir.
Torsval involuntariamente deu um passo atrás ao ver uma pessoa congelada em uma bolha de um infinitésimo temporal. Nós o conhecíamos, seu nome era Linus Fulvius, foi um de nossos instrutores antes de ser excluído do programa governamental. Estava estranhamente belo, mesmo com os olhos marejados, encolhia-se contra a parede e parecia estar em desespero. Talvez no momento derradeiro compreendesse todo o mal que estava prestes a fazer.
Eu só tinha uma chance, respirei fundo e saltei para dentro da bolha, próximo ao dispositivo. Atiramos, Linus e eu. Ambos acertamos nossos alvos, eu seu DSLA, ele o dispositivo temporal. O disparo não foi suficiente para acioná-lo. Retirei o anel e o coloquei em um encaixe exposto na lateral do dispositivo. A parte superior do anel contendo nano robôs penetrou no aparelho e aos poucos cumpriu sua função: destruir a bomba temporal.
Os pulsos de luz e o zumbido ainda levaram segundos para desaparecer, até restar apenas uma caixa metálica contendo partes de peças inúteis. Olhei para o lado e vi Torsval aprisionando Linus e acionando em seu DSLA o mecanismo de retorno.
Ele me olha – e então, vamos?
– Ainda não, tem alguém daqui que preciso me despedir.
O dia amanhecia quando saí. Eram cinco e quarenta no relógio eletrônico do corredor do shopping. Fui até a entrada e fiquei observando o nascer de mais um dia.
Sharah continuou me olhando, percebo a dúvida em seus olhos.
– Não vá fazer nenhuma besteira vovô. Depois de amanhã nos encontramos aqui, Ok?
Eu apenas sorrio, enquanto ela me abraça e beija. Olho ela se afastando na direção da entrada do shopping, onde sua mãe ou meu filho a esperam.
– Vamos?
Torsval vai um passo a minha frente. A missão durou quase toda a minha vida e a dele também. Entramos no corredor e acionamos os DSLA. Meu último pensamento nesta realidade é para o verdadeiro presente que deixei para Sharah.
Fim.
Um conto de Swylmar Ferreira Em 11 de julho de 2015
Imagem meramente ilustrativa para o conto. Encontrada em:
http://www.deviantart.com/art/Project-Universe-Paralel-Earths-457431250
[1] Diciclo que funciona a partir do equilíbrio do indivíduo que o utiliza. Muito usado por segurança patrimonial.
[2] Dispositivo sônico de longo alcance – neutralizador de ameaças, multisensor e pacificador.