Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Carlos caminhava apressado pelo centro comercial da cidade quase trombando nas pessoas com que cruzava nas ruas. Eram quase dezesseis horas e precisava chegar a tempo no consultório do psicólogo para acompanhar a consulta de sua filha. Atravessou a rua correndo, sujeito as buzinadas de motoristas estressados, passou por uma pequena multidão que se acumulava em frente à loja que fazia liquidação relâmpago, andou mais alguns metros e entrou no edifício. Ficou feliz ao ver a porta aberta do elevador.
– Bom dia – disse sorrindo, ao tempo que fingia não notar a loira maravilhosa de bermuda curta e cabelos soltos que se encontrava perto da botoeira de comando do elevador.
A mulher apenas esboçou um sorriso enquanto o olhava de cima a baixo. Uma voz grossa chamou sua atenção para o outro lado, era um homem de idade já avançada que sorria e meneava a cabeça grisalha com um sorriso.
– Bom dia, jovens!
Carlos olhou novamente a loira, começando pelas belíssimas pernas, passando ao traseiro empinado. Viu então seu reflexo no espelho, reparou que o cabelo estava levemente despenteado e ajeitou-o com os dedos.
A porta do elevador abriu e a moça apressou-se a sair, não sem antes dirigir a Carlos um belíssimo sorriso. Ficou observando a mulher andar alguns passos e parar, voltar a atenção para a porta ainda aberta e sorrir outra vez.
– Se eu não tivesse que acompanhar a Lia nesse psicólogo – pensou em voz alta.
O velho continuava a sorrir.
– Até que enfim chegou – disse Letícia com voz rancorosa e olhar furioso para o ex-marido.
Carlos simplesmente a ignorou. Conseguiu chegar a tempo de cumprimentar o dr. Gotmann e dar um tchauzinho para a filha enquanto a menina de dez anos entrava no consultório acompanhada do psicólogo, completamente careca e de olhos profundamente azuis. Gotmann aparentava estar na casa dos sessenta e tantos anos.
Letícia continuava a olhar o ex-marido.
– Oito da noite – disse ela abrindo a porta da ante-sala do consultório e conferindo as horas em seu relógio de pulso. Quero ela em casa na hora certa, nem um minuto a mais, ok?
– Oito horas – Carlos respondeu mecanicamente, olhando enquanto a porta de vidro se fechava e ela se afastava rebolando audaciosamente pelo corredor em um vestido colado ao corpo. Letícia era um “mulherão”.
Como pôde amar aquela mulher? Ainda se questionava olhando agora seu reflexo na porta de vidro. Enquanto sentava no banco da sala de espera ajeitou o blazer e o vinco da calça de sarja. Olhou para os sapatos pretos brilhantes e ficou satisfeito.
Carlos voltou seus pensamentos para Letícia. Conheceram-se ainda crianças e a amizade transformou-se em amor, ao menos da parte dele, Lia chegou e então pouco tempo depois… tudo acabou.
– Mulher maluca – falou ainda olhando pela porta de vidro.
Olhou ao redor e observou o homem que o acompanhou desde o elevador sentado em uma cadeira à sua frente. Tinha cabelos curtos, visivelmente pintados, notou ao menos duas tonalidades diferentes partindo do branco da raiz até castanho escuro. Carlos achou que ele teria entre cinquenta e cinco e sessenta anos, vestia roupas simples, de aparência bem usada, inclusive a camisa branca que tinha um cerzido na gola.
– O sr. também veio se consultar? – perguntou interessado.
– Sim – respondeu o homem – minha filha pediu que eu viesse. Ela pensa que preciso conversar com um psicólogo e marcou consulta. E você, meu jovem?
Carlos já se arrependia de ter começado a conversa.
– Não – disse – minha ex-mulher está preocupada com minha filha, ela tem amigos imaginários e, além disso, fica horas a frente do espelho conversando consigo mesma.
Fitou o homem por instantes e ao perceber seu interesse continuou – Lia, minha filha, brinca sozinha em casa e quando sai, ao invés de se juntar às outras crianças, prefere a solidão. Coisas de criança. O Sr. tem netos?
O homem sorria abertamente agora, acomodou-se na cadeira como se preparasse para uma longa conversa.
– Oh, sim – disse – muitos. Alguns também tiveram problemas quando pequenos. Um jurava ser o Darth Vader – riu bastante a própria piada – Apenas um porem… Se você não consegue enxergar o que uma criança vê, não significa que é invencionice. Ou se ela prefere se olhar no espelho deve ter aprendido com alguém, crianças aprendem bastante por observação.
Carlos continuava a olhar o homem cada vez com mais curiosidade.
– Não entendi.
– Entendeu sim – falou o homem às gargalhadas, rindo da surpresa estampada no rosto de Carlos.
– Permita, meu jovem, que lhe conte então uma história ou uma lenda de outro país. Não se preocupe, é sobre o tema que estamos conversando e é breve. Depois em reflexão, poderá pensar se lhe será util. – Recostou-se enquanto esperava a decisão de Carlos.
– Claro – ao menos até o final da consulta de minha filha, pensou.
O homem acomodou-se na cadeira.
****
Eu, há alguns anos, fui fazer um cruzeiro pelo mundo antigo. Era jovem, sua idade possivelmente, e passei meses estudando, passeando e principalmente reaprendendo sobre a história do velho mundo.
Em um desses dias de aprendizado deparei-me com um “pregador” da cidade onde eu estava. Havia muitos deles, mas esse era um homem estranho, idoso e sempre que chegava à praça onde turistas consumiam café ou outra bebida ocidental mais forte, era cercado por crianças que o atazanavam. Adultos pediam para que ele contasse histórias antigas e riam-se dele, principalmente quando já aborrecido ele gritava: Eu já fui senhor sobre Irarriel.
Um dia, estudando a história do lugar, descobri que Irarriel era o nome antigo de parte daquele país, e decidi conversar com aquela figura interessante. A oportunidade deu-se naquele mesmo dia quando o encontrei sentado em um pequeno jardim à frente do hotel. Após varias horas de conversa ele me contou uma bela lenda do lugar: disse que era muito antiga e falava sobre dois homens, o Senhor da região ou o Rei se você preferir e seu filho.
Para facilitar, pois os nomes que ele usou são difíceis de pronunciar, podemos chamar o senhor de Darri e o filho dele de Ab-hari. O “pregador” me contou a lenda:
O senhor Darri era muito poderoso e rico. Toda a sua fortuna, aí inclusas felicidade, diversos amores, esposas, filhos, filhas e posses como palácios, exércitos e jóias foi-lhe dada por pertencer a uma linhagem antiga que descendia de um dos mais poderosos deuses daquele continente.
Nos idos de sua vida, uma tragédia caiu sobre sua família. Seu filho mais velho e herdeiro enamorou-se de uma das meio-irmãs, embora soubesse que as leis do reino não incentivassem o casamento entre irmãos, como eram comuns nas regiões próximas. Ele mudou-se para uma das pequenas vilas próximas da cidade e a atraiu para lá. Ela tolamente foi encontrá-lo, confiando que seu irmão jamais faria algo para macular sua honra. Tomado pela luxuria, por um desejo doentio e incontido pela irmã, ele a tomou a força por sua mulher e lá ficaram por dias.
Ao saber do ocorrido, seu segundo filho possuído pela ira e sentindo-se traído e envergonhado, desafiou o irmão mais velho e na luta que se seguiu, o primogênito morreu. O segundo filho era Ab-hari.
Fiquei confuso e perguntei ao “pregador” se tinha entendido certo, se a irmã fora tomada a força e se tornara sua mulher. Ele me lembrou que naquela época eram comuns estes casamentos entre famílias nobres, mas não em Irarriel e continuou.
Ab-hari sempre fora o predileto de seu pai. De todos os filhos era o que mais se parecia com ele. Chamava atenção por sua notável beleza corpórea, por seus longos e belos cabelos, pela maravilhosa oratória, e pela inteligência. Ele não tinha defeitos.
E assim foi relativamente fácil com o tempo, obter o perdão de Darri pela tragédia ocorrida.
Vendo que não tinha muitos dias pela frente, Darri oficializou Ab-hari como seu sucessor e passaram a decidir juntos os rumos da região que lhes devia obediência.
Ab-hari passou a gostar do júbilo e dos bajuladores que sua nova posição lhe proporcionava e assim passava seus dias, em festas, em viagens acompanhando o pai a outras regiões e reinos de senhores igualmente poderosos, conquistando belas mulheres e tomando algumas esposas.
Mas isso era pouco para Ab-hari. Ele queria mais, muito mais.
Um dia Darri foi convidado a ir a uma cidade longínqua chamada Al-Alom, quase a fronteira do continente, para reafirmar laços de amizade com o senhor local. Ele chamou Ab-hari para acompanhá-lo, mas este alegou estar doente e não foi com o pai. Ab-hari aproveitou-se da ausência e acreditando que Darri ainda teria muitos dias pela frente, tramou com auxílio de serviçais e bajuladores para substituir a seu pai.
Quando ainda festejava com seu amigo, Darri soube que seu filho havia tomado o poder e era agora o senhor de Irarriel. Deposto e desgostoso, Darri viveu algum tempo em Al-Alom.
Com o passar do tempo, noticias de desmandos e vaidades escabrosas de Ab-hari, da insatisfação do povo e de parte do exército, além de altos impostos cobrados, fizeram com que Darri vislumbrasse a possibilidade de retornar. Resolveu mandar pranchas escritas a seus generais de confiança para voltar a Irarriel sob proteção.
A presença de Darri dividiu as cidades e o povo, aí o pior aconteceu. Guerra intestina.
A inexperiência de Ab-hari em combate e o apoio dos principais generais das cidades chancelaram a retomada do poder por Darri e a consequente fuga de Ab-hari.
Darri fora precavido em relação ao seu predileto e dera ordens expressas aos seus generais para que seu filho não fosse ferido, pois sabia que muitos o consideravam responsável e único culpado pelas mazelas da região. Mesmo assim durante a fuga Ab-hari foi cercado e morto, sendo seu corpo jogado em um buraco profundo na floresta. Darri ficou muito triste e pranteou seu filho por longos dias.
Quando Darri morreu, seu último filho o sucedeu como senhor de Irarriel voltando a paz e a alegria nas cidades.
Fiquei parado à frente do homem por instantes e perguntei:
– Como pode um senhor na antiguidade ter suas ordens descumpridas a ponto de matarem seu filho e herdeiro? Ele então era um homem velho e muito fraco?
– Nada disso, disse-me o “pregador”. Nenhum homem sobre a face deste mundo ousaria desobedecer a Darri.
Olhei para o “pregador” e disse.
– Mas desobedeceram e Ab-hari morreu.
O velho “pregador” sorria e coçou a testa suarenta por instantes enquanto me olhava.
– Esta é a história que consta nos livros – disse enquanto sorria.
– Você já deve saber que muitos aqui me consideram um louco, mas eu conheço a história. Eu já fui rei sobre Irarriel – disse aumentando o tom da voz.
Repentinamente calou-se e me olhou diretamente nos olhos, foi quando percebi o quão claros e tristes eles eram.
– E… e se – continuou ele ainda me olhando cabisbaixo – se a história não tivesse terminado ali.
– Como assim? – Perguntei.
– E se houvesse mais … gostaria de saber?
Naquele momento minha curiosidade estava no auge e praticamente implorei que continuasse. Ele olhou em meu rosto, ficou ainda mais sério e prosseguiu.
– Talvez, apenas talvez – disse – o general que capturou Ab-hari fosse irmão de sua mãe. Talvez esse general o conhecesse por toda a vida e tivesse sido incumbido por Darri de garantir a sobrevivência de seu filho.
Quem sabe se tivesse sido levado por seu tio até a fronteira da região e lá, lhe tenha sido dito que seu pai o desterrara e que durante a vida de seu pai jamais poderia retornar.
Por mais inverossímil que parecesse ainda havia certa lógica, mas era apenas um conto, pensei, e pedi que o “pregador” continuasse.
Ab-hari era ainda um homem vaidoso e não admitia que fosse sua culpa a grande tragédia de Irarriel. Mesmo longe, em terras alheias e empobrecido, ainda sonhava em retornar e retomar o que era seu por direito. Passou a falar sobre a inexistência dos deuses e de como por eles fora abandonado, principalmente pelo Senhor.
Uma noite, enquanto uma tempestade desabava dos céus, e Ab-hari dormia mal protegido nas ruas e sujeito às intempéries, ele teve um sonho, no qual seu pai, Darri, veio lhe encontrar e dizer que havia morrido. Disse também que seu irmão mais jovem o havia sucedido. Outra imagem aparecia nesse sonho, um homem alto e belo, cujo rosto ele não conseguia vislumbrar, determinava a ele um castigo por seu orgulho e vaidade. Ele jamais voltaria a ser o senhor de qualquer lugar por ter entristecido o coração de seu pai e assassinado seu irmão. Que viveria por longos e longos anos, que veria seus filhos, netos e os netos de seus netos falecerem. Que por todos seus dias deveria pregar a mensagem do mais poderoso Senhor.
Talvez Ab-hari viva ainda hoje, velho e alquebrado. Talvez ainda pregue incansável, diariamente a palavra do Senhor, mesmo sendo ridicularizado e maltratado por crianças tolas e peça todos os dias o perdão de seu pai e do seu Senhor. E quando ao anoitecer estiver sozinho e triste ao relento, ele diga aos dois que aprendeu sua lição, que aprendeu que o orgulho é irmão da vaidade e ambos são primos primeiros da cobiça, e são inimigos mortais do homem.
Fiquei olhando enquanto o “pregador” se retirava pela rua e era atormentado por crianças e adultos que lá estavam.
****
Carlos não sabia o que dizer, olhou brevemente o homem a sua frente e uma dúvida lhe veio à mente.
Súbito a porta do consultório se abriu e o dr. Gotmann apareceu conduzindo Lia pela mão.
– Ela está a cada dia melhor – disse o psicólogo – breve terminaremos o tratamento.
– Que ótima noticia – falou Carlos abraçando a menina. – Lia, quero lhe apresentar …
Ao virar na direção de seu novo amigo descobriu que ele já não estava mais ali.
– Estranho – Carlos falou – estava conversando com um senhor de idade agora mesmo. Como não percebi a saída dele do consultório? Ele estava agendado para agora.
– Não – disse o dr. Gotmann – Lia foi minha última cliente do dia.
Carlos esperou o dr. Gotmann fechar o consultório e desceram juntos até a portaria. Depois levou Lia para um passeio e para casa. Pela primeira vez em anos aceitou o convite de Letícia para jantar e percebeu a felicidade de ambas.
Mais tarde sentado no sofá com Lia em seu colo e Letícia ao seu lado, pensou por longo tempo nas últimas palavras do homem.
– Seria possível?
Fim
Um conto de Swylmar Ferreira em 13 de dezembro de 2014.
Imagem apenas ilustrativa apanhada do site http://www.google.com.br/search?q=vaidade