Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Ninguém até agora sabia quem tinha chamado a polícia. A detetive Liandra examinava mal humorada os papéis que preencheria sobre a chamada falsa. Olhava enraivecida para todos os presentes na frente do edifício Montiro II.
– A pessoa que faz uma denúncia falsa à uma da manhã realmente não tem mais o que fazer. Disse rancorosamente com sua voz rouca e fina.
Liandra olhava os dois jovens detetives da delegacia, Prieto e França. Tinha que ter paciência, não apenas com eles, mas também com o caso. Isto é, se realmente tivessem um caso.
– Acordamos todos os proprietários ou inquilinos no prédio e não achamos nada. Só não tivemos acesso a dois apartamentos chefa, os de número 106 e 206 que dão para os fundos.
– O porteiro por acaso não tem as chaves? Sabe como é, este prédio tem apartamentos de temporada, não tem?
– Vou ver chefa – disse Prieto indo na direção de um aglomerado de pessoas.
– Mas que droga! – Disse a mulher ajeitando a pistola nas costas. A arma agora começava a incomodar.
Alguém havia mandado um e-mail para o disque denuncia da secretaria de segurança no meio da noite avisando que um assassinato havia ocorrido naquele prédio e ninguém ainda tinha conhecimento.
– Merda de denúncia anônima. – Disse o detetive França todo sujo de terra e fuligem. Ele havia entrado em uma parte da garagem no subsolo que estava em obras e era perto de um velho incinerador ainda usado para queima de papel.
Liandra ia reclamar da boca suja do jovem detetive quando avistou Prieto vindo em sua direção seguido de outro homem.
– Chefa, este é o porteiro do edifício e ele tem chave reserva de todos os apartamentos.
A confusão dos rotolights dos carros da polícia tinha acordado os moradores dos prédios e casas da vizinhança, causando uma enorme confusão nas imediações. Em um primeiro olhar Liandra viu ao menos duas senhoras de camisola, em seguida um garotão, surfista pela aparência, com um short tão curto e apertado que evidenciava o seu “negócio”, fazendo com que um rapaz e diversas moças não tirassem os olhos. Credo, ela pensou.
Estava com certa idade, mais de vinte anos de polícia e já tinha visto de tudo. Ou quase de tudo.
– É cada coisa que vou te dizer, só tem maluco neste lugar, França. – Liandra agora ria das diversas situações criadas.
– França! Você está com o e-mail aí?
– Tô chefa, disse o rapaz, batendo as mãos nos bolsos da calça e camisa, até encontrar o papel dobrado diversas vezes.
Ela pegou o papel, uma folha A4 amarelada e molhada de suor, e começou a ler as três linhas do e-mail.
“Informo a morte acontecida na praia nova, um homem conhecido por Sergio Humberto, dono de escritório de importação e exportação no bairro. O corpo está no edifício Montiro II.”
Liandra olhou para o homem ao lado do detetive Prieto. Era um típico porteiro de edifícios de praia, cabelos desgrenhados, isto é, os que ainda tinha, camiseta regata branca, uma bermuda que um dia foi verde e chinelos de dedo. Aparentava sessenta anos ou mais e tinha cara de assustado principalmente àquela hora da madrugada. O pobre provavelmente acordou assustado e como todos, saiu para a rua para ver o que tinha acontecido. Será que o Prieto ameaçou o cara, ela pensou, ou ainda pior, deu-lhe uma bolacha pra ver se acordava? Não! O Prieto, não. Se fosse o França …
– Esse é o Seu Luiz chefa, ele me disse que tem as chaves e pode abrir os apartamentos pra gente dar uma olhada. Conversei rápido com ele sobre onde ele estava durante o dia e falou que passou o dia no prédio, deu uma saidinha de tarde, mas voltou logo.
O Homem sorria satisfeito. Liandra observou que ainda tinha ao menos quatro dentes na parte superior da boca e estava doido pra falar alguma coisa, acompanhando a conversa dos detetives e balançando a cabeça em sinal afirmativo.
– Seu Luiz não é? O senhor pode abrir os dois apartamentos pra nós? Por favor?
– Claro, doutora. – Disse já virando o corpo na direção do edifício.
– Espere homem – disse ela.
– O senhor chegou quando aqui?
– Cheguei em 1985. – Falou sorrindo e apertando os dedos das mãos.
Liandra virou os olhos para cima demonstrando toda a sua impaciência devido à hora e ao calor insuportável.
– Não Seu Luiz, a chefa quer saber que horas o senhor voltou da rua. – Falou Prieto rindo.
– Ah. Desculpa chefa – disse o velho – voltei às seis e meia – falou virando novamente na direção do edifício.
– Pronto Prieto, agora até o porteiro está me chamando de chefa. – Ela parecia indignada – França, pega a maquininha pega, a gente nunca sabe o que pode acontecer.
Começou a andar atrás do porteiro e virou-se rapidamente na direção das viaturas ainda a tempo de ver França retirando uma escopeta calibre doze de dentro da viatura.
Dentro do prédio, Liandra já está impaciente na porta do segundo apartamento. O primeiro, de número 206, estava desocupado e não recebia hóspedes há mais de quinze dias, de acordo com Seu Luiz. Estava empoeirado e deserto.
O apartamento 106, de acordo com o porteiro, era outro caso. A proprietária havia começado uma pequena reforma para retirada de uma coluna falsa. A mulher queria fazer um closet e mandou retirar a peça e quando se deu conta a obra já envolvia metade do imóvel. Eles entraram, apesar de toda a poeira e resíduos. Seu Luiz não quis entrar no apartamento que dizia ser mal assombrado.
– Porque mal assombrado Seu Luiz? O senhor já viu algum fantasma aqui? – Perguntou Liandra.
O velho, que não entrava no apartamento de jeito nenhum, começou a conversar da porta.
– Ver, não vi não. Mas escutar doutora… já escutei muito. A primeira vez que entrei no apartamento foi há uns quinze anos mais ou menos, o proprietário da época me chamou dizendo que um ladrão tinha entrado no apartamento e estava quebrando a cozinha toda. Quando cheguei lá, não tinha ninguém e estava tudo no lugar, nada quebrado. Desde então, já vi muita gente alugando o lugar, comprando, mas não dura muito não. O problema é que agora tem gente falando que tem visto um homem gritando à noite pelos corredores do prédio. Se eu ver… me demito no outro dia.
O homem foi embora, deixando-os lá.
O apartamento estava uma bagunça, ao menos o quarto principal, com poeira e restos de material pelo local. A coluna, segundo Seu Luiz, tinha saído praticamente inteira e levada para a reciclagem de resíduos de construção.
Liandra observava enquanto Prieto e França vasculhavam pelo apartamento em busca de algo que trouxesse luz ao crime notificado, mesmo que não houvesse cadáver até o momento. Também pensava como Seu Luiz era medroso.
O apartamento passava a Liandra uma sensação estranha. Sentiu um arrepio no corpo em certo momento. Um pequeno monte de escombros varridos por alguém para o lado da porta chamou-lhe a atenção, era como se alguma coisa a induzisse naquela direção. Andou até lá e viu parte de um caderno velho, ou algo assim despontando na poeira, abaixou-se e o retirou. Alguém o havia jogado na massa de cimento e deixado lá. Ela o limpou da melhor forma possível, tirando a parte empedrada. Teria ela ficado impressionada com o medo do porteiro?
– Um diário, disse ela folheando as folhas velhas e sujas. O que um diário faz na sujeira da obra?
– Pessoal, venham aqui. Eu achei um diário.
Prieto e França já haviam vasculhado todo o apartamento não vendo sinal de crime, sangue ou violência, apenas sujeira e resíduos de construção. Conversaram com Liandra rapidamente e resolveram voltar para as viaturas.
A novidade dos rotolights das viaturas já havia passado e a maioria das pessoas tinha voltado para suas casas.
– A única coisa que achamos foi esse diário velho. Antes de considerar essa chamada como trote, vamos nos encontrar na DP amanhã e ver as implicações.
– França, quero saber de onde veio o e-mail, o IP, ou seja o que for. Quem mandou vai se ferrar comigo.
Prieto e França ficaram olhando Liandra entrar na viatura e ir embora com a sirene ligada.
– A chefa ficou p. da vida – disse França.
Prieto abria a porta da segunda viatura e observou França guardando a escopeta.
– Vamos embora, continuamos amanhã.
****
Hoje Ester retornou à nossa casa. Os dias que passou na residência de seus pais lhe remoçaram, ela parece mais feliz. Talvez as suspeitas que tenho de minha esposa sejam apenas frutos da imaginação como falou o marido de minha irmã.
Quando me viu ela sorriu, sorriu como não o fazia há muito, vi felicidade em seus olhos. Essa é a mulher com que me casei.
Liandra tinha conseguido limpar razoavelmente o diário com a ajuda do pessoal da perícia. Eles tinham tirado também uma parte da capa do objeto que desconfiavam ser marca de sangue. Além disso, Liandra pedira ao detetive França que procurasse informações sobre o dono do diário, um homem chamado Sergio Humberto de Almeida, o mesmo da denúncia. A data do primeiro escrito era 04 de janeiro de 1969. Talvez ali estivesse a prova da ocorrência de um crime.
A próxima página escrita datava de 07 de fevereiro do mesmo ano.
Envelheço a cada dia, já perguntei a Ester se não tem nada errado comigo e ela apenas sorri, disse que eu não vou ficar para semente. Hoje mesmo, em uma crise de tosse, acabei por vomitar sangue.
As páginas anteriores foram arrancadas ou mal rasgadas impossibilitando a leitura e compreensão.
16 de março.
Minhas suspeitas sobre Ester se confirmaram, passei no hospital onde trabalha e disseram ser o dia de folga dela. Rapidamente fui para casa e vi aquele homem saindo de nosso apartamento. Era o Naldo. Eles se despediram com um beijo. Fiquei arrasado.
Acabamos tendo uma briga muito feia, disse coisas horríveis a Ester e ela disse outras também terríveis a mim. Disse a ela que suspeitava de traição, o que ela confirmou. Chamou-me de merdinha, devido a minha baixa estatura e magreza e eu a chamei de traidora, que não entendia como uma mulher de sua posição, de seu nível, era capaz daquilo. Ela gritava enlouquecida e tentou me agredir, jogando uma série de objetos de nossa sala em minha direção. Creio que meu casamento está terminando.
Liandra continuava a ler as páginas.
– Pessoal, está melhor que muitos livros que li. Falou rindo e mostrando aos colegas. Vocês vão gostar desses trechos escritos.
17 de março.
Criei coragem e fui tirar satisfações com o tal Naldo. Fui até a empresa de reformas que ele dirige e o enfrentei. Os poucos funcionários que ali estavam se retiraram. Ele tentou me intimidar com o seu tamanho e jeito grosseiro de falar. Chamou-me de corno e eu revidei chamando-o de canalha, facínora e imbecil. Ele levantou e veio em minha direção, disse que daria um tapa em meu rosto, aí saquei minha arma, uma Smith&Wesson calibre 32. Ele parou. Sua coragem morreu em um segundo. Ele é aquilo que sempre achei que fosse, um canalha. Eu o ameacei, disse que deixasse minha família em paz, senão voltaria e não responderia por meus atos. Fui embora e o deixei literalmente tremendo de medo.
Lembrei-me de quando estava no exército, meu comandante disse uma vez que o que iguala uma moça frágil a um molestador ou um homem velho ou fraco a um agressor forte e covarde é uma arma de fogo. Ele estava certo.
Faltavam várias páginas que foram obviamente arrancadas e Liandra queria saber o desenrolar do pequeno drama vivido por Sergio Humberto.
29 de março.
Faz cinco dias que deixei meu apartamento. Desisti de meu casamento com Ester, ela confessou seu amor por Naldo. Estava revoltada porque o ameacei, não importou dizer que ele ameaçou me agredir primeiro. Ela não acreditou e pediu o divórcio. Peguei algumas roupas e fui para um hotel na rua da praia, mais perto de meu escritório de importações, vou deixá-la viver seu grande amor.
Amanhã pela manhã irei ao apartamento pegar o resto de minhas roupas e coisas pessoais. Espero nunca mais ver nenhum dos dois.
Era a última anotação, o restante das páginas estavam em branco.
– Pessoal, é melhor vocês lerem isso. Disse apontando para o diário.
Liandra tirou da bolsa a folha de papel contendo o email recebido pela secretaria de segurança que mobilizou o aparato policial na noite anterior e o leu outra vez.
– Tem algo errado aqui gente. São as mesmas pessoas. Não acho que foi trote, só que o crime aconteceu a cerca de quarenta e quatro anos.
Pietro lia o diário e tinha na outra mão a denúncia do crime.
– É chefa, tem algo aqui que vale a pena investigar.
Liandra olhava pela janela, observando o entardecer enquanto França lia os papeis.
– Vamos dividir as tarefas. Eu vou procurar saber o destino de Ester. França veja o que aconteceu a Sergio Humberto e você Prieto, descubra o que puder sobre o Sr. Naldo. Nos encontramos depois para conferir as informações.
****
França olhava pela janela o céu azul do fim de tarde e abrindo o saquinho de papel do picolé de uva reclamava do excesso de trabalho. Sentou na cadeira fingindo zanga e piscou para Prieto.
– Passou menos de dois dias e a chefa já chamou a gente! Cadê a mulher?
– Reclama não moleque, a chefa tem nos dado boa vida. Tu investigaste sobre o tal de Sergio?
França balançou a cabeça positivamente.
– Tem umas coisas estranhas. Ah, olha ela aí.
– Boa tarde, chefa!
– Boa tarde. Vamos para salinha do delegado, aproveitar que ele não está aqui. Eu trouxe uns pães de queijo. França deixe de ser preguiçoso e traz a garrafa de café.
– Oba! Disse França ainda com o último pedaço de picolé na boca.
Prieto e Liandra riam do colega comilão. Ela tinha pressa em “bater” as informações com os colegas, tinha certeza que resolveriam a denúncia. Algo a incomodava nesta história, não batia, era como se faltasse alguma coisa.
Pediu para que França falasse o que descobriu, depois seria Prieto e por último ela.
– Certo chefa. Falou França. Bem, procurei saber sobre esse cara, apesar de tanto tempo achei algumas coisas. Ou sei lá, não achei as coisas que deveria ter achado.
Os outros olhavam sem entender, enquanto ele acabava de mastigar e engolir dois pães de queijo que havia colocado na boca. Mas aquele era o detetive França.
– Primeiro fui conversar com o seu Luiz, o porteiro, saber se ele conhecia o casal ou ao menos tinha ouvido falar neles. Nada. Mas conhecia o porteiro anterior e me deu o endereço do homem. Tratava-se de seu Eleosvaldo. Este senhor, além de ter sido o primeiro porteiro do prédio que foi construído em 1965, foi um dos operários que trabalhou em sua construção.
– Vou comer mais um chefa, tá muito bom. Foi a senhora que fez?
– Vai logo faminto – disse Prieto rindo – almoçou não, é? – Brincou com o colega, zoando dele.
– Seu Eleosvaldo me disse que o casal Sergio Humberto e Ester estavam entre os primeiros a ocupar o edifício Montiro II. Aliás, o nome foi enviado errado para o Órgão Municipal que não verificou e ficou assim mesmo. Estranho não? Montiro? Deveria ser Monteiro.
– O velho me disse que nos primeiros anos o casal vivia muito bem, apesar das constantes viagens que ela fazia, até que Ester começou um caso com um empreiteiro da região. Ela era uma mulher muito bonita e inteligente sendo cobiçada por muitos homens, talvez por ser casada com um homem bem mais velho. Dra. Ester tinha um corpo bonito, mas o rosto era fenomenal, com cabelos castanhos e uma pinta marrom clara pequena logo abaixo do olho esquerdo. O Sergio começou a desconfiar que existia alguma coisa e começou a dar incertas nos dias em que a Dra. Ester ficava em casa pelas manhãs, até que ele viu alguma coisa e saiu de casa.
– Depois disso, um dia ele chegou num fim de tarde no edifício e falou que ia pegar umas roupas, algumas coisas pessoais. Seu Eleosvaldo nunca mais o viu. Para dizer a verdade, nunca o viu sair do prédio. Chegou a perguntar a Dra. Ester por ele, mas ela desconversou e não disse nada.
França parecia entusiasmado com o caso.
– Eleosvaldo disse que no dia seguinte em que eles brigaram e o Sergio saiu de casa, Dra. Ester começou uma pequena reforma no apartamento, feita pelos trabalhadores da empresa do Naldo.
– O velho foi até o seu quarto e quando voltou trazia nas mãos uma fotografia muito antiga onde apareciam ele, o Sergio e a Ester, junto com mais alguns moradores em uma comemoração. Vejam – falou passando a foto antiga aos colegas.
– Pesquisei no cartório e achei a certidão de casamento deles e a de nascimento do Sergio, ele tinha vinte e seis anos. Olhem só que estranho, o Sergio na foto aparenta ter uns cinquenta não é?
– Investiguei também sobre o escritório de importação do Sérgio. A administradora do prédio ainda tinha informações e me falaram que a mulher dele o fechou, o escritório estava no nome dela, constava na ficha que o marido tinha se mudado para a Europa. Ninguém nunca mais ouviu falar dele.
Liandra estava séria. Tamborilava os dedos na mesa escutando o relato do detetive França. As coisas estavam se encaixando com o que havia descoberto, mas primeiro devia escutar Prieto.
– A minha tarefa até que foi simples, o Naldo Vieira já havia falecido há muitos anos. Falei então com um dos filhos dele. O cara também era casado na época do caso com a Dra. Ester, ele era um dom Juan.
– No princípio o filho, Naldo Vieira Júnior, não queria falar sobre o ocorrido. Ele tinha pouco mais de quinze anos de idade na época, mas se lembrava bem de toda a angustia familiar que havia vivenciado não querendo relembrar, mas eu o convenci e ele falou tudo.
– Disse que o pai uma vez contou que estava no escritório quando o telefone tocou e a mulher (Dra. Ester) disse que tinha feito uma besteira. Ele foi para lá e quando chegou encontrou o marido dela morto, o homem estava degolado. Ele ficou paralisado quando viu a cena, então inventaram uma história que ele tinha ido para Europa e a mulher sumiu com o corpo. Aquilo praticamente acabou com o relacionamento deles, ela se mudou de lá algumas semanas depois e o pai nunca mais voltou no prédio.
– Disse que os pais acabaram se separando naquele mesmo ano, e ele e a mãe desconfiavam que o Naldo ainda se encontrava as vezes com Ester. Naldo viveu pouco mais de um ano e sempre com medo, assustado. Me disse que o pai escutava gritos durante a noite, que não conseguia dormir, mudava de residência e não adiantava. Um fantasma o perseguia, dizia ele. Naldo ficou doente, um tipo de câncer raro, diziam os médicos. Naldo Júnior falou que o pai tinha quarenta anos quando morreu, mas aparentava oitenta. Ele morreu velho, feio e triste.
Os três detetives ficaram em silêncio por alguns segundo enquanto remoíam pensamentos e teorias sobre o caso.
– Agora é a minha vez -falou Liandra.
– Eu descobri onde viveu a Dra. Ester Marins de Almeida – falou Liandra olhando os dois rapazes.
– Consegui conversar com a neta dela, Ana Clara, por duas vezes. Na conversa inicial, a primeira coisa que ela me perguntou foi se havíamos conseguido achar seu Sergio, pois sua avó sempre quis saber para onde ele foi. A moça, que por coincidência também é médica, disse que conhecia toda a história da família e que certamente poderia me ajudar. Continuei a conversar e ela disse que após a avó ser abandonada, foi morar na capital e lá se casou de novo, tendo duas filhas. Haviam se passado dez anos quando sua vida começou a desmoronar, seu novo marido morreu de repente e ela ficou sozinha para criar as filhas, o que a salvou foi o seguro de vida do homem. Casou-se uma terceira vez e desta vez durou pouco mais de um ano, porque o novo marido morreu em um acidente.
Liandra bebeu mais alguns goles de café que estava no copo à sua frente e observou França comendo mais um pão de queijo.
– Não sei o porquê, mas falei de repente que havíamos achado o corpo de seu Sergio, ela ficou petrificada. Queria saber onde, disse que ele foi parte da família e que era uma obrigação moral enterrá-lo, que finalmente saberiam o que havia acontecido ao Sergio. Ana Clara falou que a avó desconfiava que um amante que ela teve chamado Naldo o havia assassinado por ciúmes. Disse ainda que a avó queria terminar o relacionamento e seguir em frente com o casamento, para isso havia falado com Sergio e que ele concordara em voltar para casa, mas nunca apareceu.
– Nesse momento aconteceu a parte mais estranha da conversa com a moça. Ela disse que a avó realmente amava muito o marido e que sempre lamentou a separação. Eu observei o rosto dela e Ana Clara estava triste. Olhou em meus olhos e perguntou se eu já havia amado alguém. Foi tão repentino que fiquei sem resposta. Ela pareceu ter percebido e voltou rapidamente ao assunto dizendo que depois de algumas semanas a avó fechou o escritório, pois tinha informações que Sergio havia se mudado para a Europa.
Prieto estava rindo.
– Acho que foi o Sergio que matou o Sergio – falou tentando fazer graça.
Liandra continuava séria. Olhava a foto que França trouxera, com certa apreensão. Pediu que os rapazes fizessem silêncio e continuou.
– A segunda conversa com a moça foi ainda mais estranha. Liguei para o celular dela e marquei de ir a sua casa. Perguntei sobre a avó e Ana Clara disse que infelizmente Dra. Ester era falecida a mais de uma década. Perguntei sobre o resto da família e ela contou que a mãe e uma tia solteira moravam na Austrália, que apenas ela tinha ficado no Brasil, pois era casada, mas pensava seriamente em ir para lá. Falamos sobre diversas coisas, eu queria saber por que o escritório e a casa estavam no nome da Dra. Ester, mas Ana Clara não soube responder. No fim da conversa tirei uma foto dela de frente, falei que era para o relatório, ela não gostou, mas não criou caso.
– Prieto, imprima a última foto do cartão de memória na impressora colorida, por favor, pediu Liandra. O crime em si já prescreveu e não creio que consigamos provar nada. Mas elas são muito parecidas.
Eles escanearam a fotografia antiga e compararam com a recente tirada por Liandra pela manhã.
– Não é possível, é a mesma mulher. Vejam o rosto, até a pinta é a mesma, disse Prieto.
– França estava usando um programa de superposição de imagens. A única diferença é que seu Eleosvaldo falou que Dra. Ester tinha os cabelos longos e castanhos e Ana Clara tem os cabelos curtos e é loira. O rosto é o mesmo.
– Não é possível, falou outra vez Prieto. Eu não acredito em coincidências. Vamos agora na casa da moça para tirar isso a limpo.
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Ana Clara ficou observando a policial ir embora naquele final de tarde. Ainda sorria o sorriso forçado que costumava presentear aos poucos que a aborreciam ou perseguiam nestes longos anos de existência.
Nem de longe Sergio foi o primeiro de seus maridos, houve dezenas antes dele, mas foi o que mais lhe enterneceu, o pai de sua filha. Gostou dele desde o primeiro dia em que o viu, ele devia ter uns dezessete anos e estudava no científico. Nessa época ela trabalhava como professora no Colégio Nossa Senhora da Esperança. Daí em diante acompanhou-o de longe. Seu primeiro namoro sério, quando foi para o centro de preparação de oficiais da reserva e quando saiu, seu emprego fichado e outras coisas. Decidiu que chegara a hora e apresentou-se a ele como Ester, uma médica vinda da capital. Ele se apaixonou no mesmo momento em que a viu, casaram-se menos de seis meses depois.
O que eu sou afinal? Já nem lembro mais, pensou fechando a porta da casa e indo para a área. Abriu um dos freezers onde alguns restos humanos se encontravam. Retirou o que restava e colocou em um tanque com ácido fluorídrico.
Porque a visita da mulher a fez lembrar-se de coisas tão antigas?
Lembrou que a bisavó contou uma vez que ela e a mãe moravam em uma floresta do outro lado do mundo, mas quando perguntei se sabia o que elas eram, a velha senhora apenas sorriu.
Isso se perdeu no tempo, a velha falou.
Ela e sua mãe sempre viveram em cidades, lembrava-se de uma vez quando era jovem, encontraram outras três como elas em um transatlântico, sentiram-se pelo odor. Não houve contato, sabiam que estavam ali e simplesmente se ignoraram. Sobre os humanos, sabia que preferia viver entre eles, estar com eles e quem sabe, ser um deles. Sua mãe contou que uma de suas irmãs mais velhas nasceu humana. Seria possível? O que sabia é que precisavam dos homens para sobreviver e reproduzir.
Para ela, a reprodução só se daria com Sergio. Amava-o, porém sua natureza fez com que ela começasse a sugá-lo. Inúmeras vezes pensou em deixá-lo, mas nunca conseguiu. Para saciar sua fome viajava a outras cidades, atraia outros homens e os devorava, fez isso dezenas de vezes. Mas o ciúme de Sergio colocou tudo a perder. Ela havia arranjado outro a quem pudesse sugar e devorar, mas ele não entendeu. Um dia, quando teve a certeza da gravidez, o devorou.
Isso foi há muito tempo, vivia em outro lugar agora. Ela olhou a casa enquanto colocava as malas no carro, entrou e partiu na direção do aeroporto. Sairia da cidade, do estado ou mesmo do país se precisasse, mas jamais permitiria ser capturada.
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Liandra estava sentada em um quiosque aproveitando a manhã de sol, quando os meninos, como ela os chamava, chegaram.
– Tá pagando o pastelzinho chefa? Disse França sorrindo.
– Mas tu és um pidão mesmo, hem … Cria vergonha nessa cara – falou Prieto fingindo ralhar com o colega.
Liandra estava mais sociável naquela manhã, sentia-se bem depois de uma noite bem dormida.
– Coisa mais estranha não é chefa, a gente chegar e estar tudo fechado. Pior ainda foi o vizinho dizer que Ana Clara havia viajado naquela manhã. O que a senhora acha?
– Oficialmente eu não acho nada Prieto – falou ela chamando o rapaz do bar e pedindo três pasteis de camarão.
– E não oficialmente, perguntou o rapaz.
Liandra ficou em silêncio alguns segundos. Franziu a boca e os olhos, pensou duas, três vezes antes de falar o que realmente pensava.
– Alguém pode pensar que estou doida…
– Vamos chefa, falou França, só entre nós.
– Acho que tropeçamos em alguma coisa. Alguma coisa diferente, um tipo de mulher diferente. Creio que Ester e Ana Clara são a mesma pessoa. Uma criatura estranha que vive muito mais do que nós. Vamos analisar as conversas com as pessoas durante a investigação:
– Seu Eleosvaldo falou que Sergio era bem mais velho que ela, mas sabemos pelas investigações que ele tinha vinte e seis anos. Além disso, tem o Naldo, que faleceu com quarenta anos e de acordo com o filho dele aparentava muito mais.
– Ana Clara disse que Ester teve ainda dois maridos que morreram, e eu agora duvido que essas mortes tenham sido de causas naturais. Creio que ela é algum tipo de monstro que consome os homens que se apaixonam por ela, um tipo de demônio que os arrebata e destrói.
– Outra coisa que não conseguimos descobrir foi quem fez a denuncia anônima pelo e-mail. Os técnicos da tecnologia de informações não acharam nem mesmo o IP da denuncia. É como se tivesse vindo de outro mundo ou de lugar nenhum.
– E vocês? Acharam mais alguma coisa nestes dois últimos dias? Do jeito que está vou ser obrigada a acreditar em fantasmas.
Os rapazes se olharam e sorriram…
– Não descobrimos mais nada chefa – disse Prieto – e duvido muito que achemos qualquer pista do paradeiro de Ana Clara ou Ester, ou qual seja seu verdadeiro nome algum dia.
– Mundo grande – disse Liandra olhando o mar.
– Mundo grande – disse França fechando os olhos e aproveitando o sol da manhã.
– FIM –
Um conto de Swylmar Ferreira