Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
A vista da entrada do parque municipal para o seu interior era muito bonita, principalmente naquele horário e ponto onde os passeantes e turistas deixavam os carros, motos e bikes para começar a fazer seus exercícios matinais ou para percorrer as famosas trilhas para chegar ao plano alto, onde rios de águas cristalinas límpidas formavam cachoeiras maravilhosas e com corredeiras em diversos pontos que atravessavam a pequena cidade e alguns sítios dos seus moradores de entorno.
Para se chegar aos cumes dos morros que se via ao longe não era tão simples. Tinha-se que atravessar uma área grande de floresta que era muito pouco frequentada e repleta de vida silvestre e flora densa. Desde que chegou ao lugar, sua opinião sobre o planeta mudara completamente. Passeava durante dias pelas matas, descansava ao sol, dormia ao relento em um namoro com as belas estrelas do hemisfério sul. Aprendeu em poucos dias a amar aquele lugar. Às vezes ia fazer o trabalho a que fora destinado: observar. Mais especificamente observar pessoas.
Neste caso sua missão seria simples. Observar duas moças que estavam em uma missão de estudo. Do que, ele não fazia a menor ideia. Chegou à pequena cidade e logo se misturou aos locais. Uma de suas habilidades era passar despercebido. Hospedou-se em um pequeno hotel, mais para ter onde dormir de quando em vez do que para realmente ficar por lá, tanto assim que avisou que solicitaria os serviços do lugar quando necessitasse e que levaria consigo as chaves.
Naquele momento, do seu lugar de vigia, observava um policial local falar com as mulheres. O que seria? Devia ter trazido seus equipamentos, mas sua ideia era fazer uma caminhada noturna longa, sair do parque municipal e talvez entrar na área de proteção ambiental federal e passar por lá alguns dias. Estava cheio de dúvidas.
Mais embaixo, cerca de quinhentos metros de distância, o policial e as mulheres terminaram o rápido diálogo e se separaram. Quando o homem já estava longe o suficiente elas começaram a conversar.
– O que você acha Sib? A conversa daquele cara é muito estranha não é?
– Muito. Falou a mulher, ainda observando as costas do homem que se afastava. Era um policial com quem ela havia trocado algumas palavras nas vezes anteriores que visitou a cidade. Gostou dele desde a primeira vez que o viu.
– Cuidado Sib, devemos ter todo o cuidado possível nesta cidade. Parece que viajantes não são bem vindos aqui. E aquele cão enorme que está com ele no carro, parece violento não é? Parece um trugle.
Ned começou a rir alto da própria piada que a outra fingiu não entender.
– É.
Sib apenas balançou positivamente a cabeça fazendo chacoalhar levemente os cabelos amarelos compridos. Estava começando o período noturno pensou, e o conselho do policial era não ficar ali. Por outro lado sua companheira de trabalho andou estranha nos últimos dias, seria tensão pré menstrual? Ainda bem que melhorou de humor.
– O carro está logo ali. Esse parque vai ficar deserto e mal iluminado em breve e eu não quero estar por aqui, disse Ned, andando apressada.
– Vamos rápido então, eu também não quero ficar longe de casa durante a noite.
Sib tirou os tênis, mostrando pés com seis dedos, e começou a correr bem rápido os trezentos metros que as separavam do carro. Se alguém estivesse vendo ou medindo sua velocidade naquela corrida ficaria pasmo ou pensaria que o medidor estragou. Sib abriu a porta e entrou rápido acendendo a luz do teto. Ned abriu a outra porta e entrou ainda ofegante.
– Não devia ter feito isso, gritou Ned. E se alguém a tivesse visto?
– Você está paranoica, isso sim, falou Sib zangada com a mulher mais jovem. Aqui é um parque, as pessoas vêm para cá para descansar e relaxar, acha que vão se importar com uma mulher de seis dedos correndo descalça no parque? Muitas pessoas aqui são assim. Além do mais, a maior parte delas já foram para suas casas e aquele policial disse para fazermos o mesmo porque aqui não é seguro. E, além disso, você acha que somos tão diferentes assim dos nativos? Somos iguais Ned, convença-se disso.
Ned fez cara de muxoxo e logo depois um beicinho.
– É! Você tem razão. Estamos em casa aqui.
Apanhou o comunicador de longas distancias dentro da bolsa e o ligou. A geringonça era retangular e tinha uma tela em quase toda a frente. Ela desligou com medo que chamasse muita atenção. Mesmo ficando poucos segundos ligado o aparelho era capaz de rastrear as mensagens destinadas a elas.
– Nada! Quero chegar em casa e tomar um banho bem quente. Disse sorrindo espontaneamente. Nossa que luxo maravilhoso não?
Sib olhou a companheira de trabalho e apenas sorriu.
– Vai demorar só um pouquinho querida, e então você vai poder se refestelar naquela banheira enorme e cheia de água, enquanto vou para a piscina. Olhou para Ned. Água … você acredita?
– E vou comer também, disse ela, frutas secas. E beber vinho. As duas mulheres riam alto e conversavam quase aos gritos enquanto o radio tocava as músicas da região e o carro andava, andava não, voava a cento e trinta quilômetros por hora na estradinha vicinal que saia da cidade e ia em direção ao sítio que elas tinham arrendado seis semanas atrás.
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– Aqui é o Nunes. O delegado tá aí, câmbio?
Ainda no parque o inspetor ajeitava a papelada dos últimos dois dias, que tinham passado voando. O latido do pastor alemão no banco da pick up em direção a mata entrava fundo nos ouvidos do investigador. Ele observou a direção na qual Blue latia e sem binóculos não viu nada. Pensou em pegar o seu no porta luvas, mas desistiu. Não deveria ser nada, quem sabe um pequeno animal passando por lá.
– Quieto Blue, tenho que falar no rádio, disse enquanto afagava a cabeça do pastor alemão que era seu amigo e companhia diária.
Um silêncio incomodo no rádio da patamo foi a resposta que o inspetor Vitor Nunes obteve. Ia escurecer em breve e a diligência que estava fazendo no parque tinha sido uma droga. Ou nem tanto. Primeiro tinha passado parte da manhã vendo o lugar onde o corpo tinha sido encontrado, isto é, se podia chamar aquilo de corpo. Estava mais para uma ossada semi devorada. Depois um grande susto, um grupo de crianças de uma escola municipal que visitava o parque resolveu brincar justamente onde ele estava trabalhando. Quase teve que brigar com as professoras para não deixar que elas ultrapassassem a faixa amarela. Poderia ter ocorrido qualquer coisa, inclusive algum perigo bacteriológico, quem poderia saber? Por último, a loira “nova na cidade”. Ela tinha mudado para algum sítio nos arredores e ele já a tinha visto uma meia dúzia de vezes nas três semanas passadas. Sorriu só de pensar nela, nos lábios, pernas…
– Gostosa, muito gostosa, falou pensando alto enquanto olhava distraidamente o anoitecer no parque municipal e afagava o cão que agora estava sentado no banco do carro, inquieto, parecendo observar alguma coisa.
Na delegacia da cidade, Berenice, a escrivã de plantão, estava sentada em uma das mesas do enorme galpão que fazia às vezes de delegacia de polícia. Ela estava sentada com as pernas cruzadas e escutava a chamada com o rádio na mão e ria do colega, enquanto o delegado Soares, sério, estendia a mão para que ela lhe desse o equipamento.
– Que porra é essa de você me chamar de gostosa, Vitinho. Começou a esboçar um leve sorriso enquanto falava. Era o máximo que se conseguiria tirar do delegado titular da cidade.
Vitor Nunes quase deixou o rádio cair no chão quando ouviu a voz do delegado.
– Não é o senhor não, chefe. Desculpe, é que tô pensando em voz alta.
Soares estava decido a continuar a brincar com seu investigador mais um pouco.
– É a Berenice, Vitinho? É a Berenice que você tá chamando de gostosa, é? Seu safado! Ela tá aqui me olhando cheia de esperanças, piscando os lindos olhinhos verdes e querendo falar com você. Ela é casada, seu Dom Juan do interior.
Vitor ouvia os risos altos da colega e podia imaginar um quase sorriso do seu chefe.
– Foi mau chefe, disse ele depois de alguns segundos. Estava refeito e já sorria ao entrar na patamo. Já estava saindo do parque quando avisou ao delegado que não tinha encontrado nada.
– Seja o que for que aconteceu chefe, não tinha nem um sinal. Nunca tinha visto nada assim por aqui. Nem nos cinco anos que trabalhei na capital. O senhor sabe se confirmaram a identidade do féretro?
– Ainda não, vamos ter que mandar os exames para serem feitos na capital. Vá para casa, nos falamos amanhã.
Soares ainda olhou a delegacia e seus dois funcionários de plantão.
– Segura aí, Bere. Até amanhã.
Soares entregou o rádio para a escrivã, que o guardou na mesa. Ela estava naquele posto há mais de vinte anos e aquela era a melhor equipe que ela tinha visto. Sorriu para o chefe e lembrou-se que seu marido queria confirmar a pescaria no final da semana com o delegado.
– O Walter pediu para o senhor confirmar a pescaria de sábado.
Soares confirmou com um positivo feito com a mão.
Ela deu outro tchau ao plantonista quando saiu à porta da delegacia para ir para casa. Daqui a pouco o outro escrivão chegaria.
Mauro Soares tinha trinta e cinco anos, seis a mais que o investigador Nunes e estava muito preocupado com o estranho caso. Ele já tinha lido a respeito de casos exóticos no “at inquisitione”, um blog policial com notícias e postagens feitas por policiais de todo o mundo. Na verdade, muitas investigações eram repassadas entre colegas mundo afora, principalmente aquelas estranhas que envolviam questões e condições misteriosas, intrincadas. Duas delas tinham lhe chamado a atenção: um caso idêntico, cerca de seis anos atrás, em uma pequena cidade francesa, que culminou com a morte de dois policiais, e outra na capital, a menos de um ano, a cem quilômetros no máximo, muito perto dali.
Sentiu um calafrio percorrendo seu corpo. Algo estranho estava por ali, sentia que aquilo era apenas a ponta do iceberg. Na manhã seguinte chamaria seus investigadores e contaria suas desconfianças sobre o caso. Precisava rememorar o que havia acontecido o mais rápido possível. Porque não agora?
Tudo começou na manhã anterior, quando uma dupla de corredores treinava no parque municipal, nos arredores da cidade. Eles encontraram restos de um corpo de aspecto horrível, esverdeado, semi devorado, perto da área de estacionamentos, em um banco de areia muito utilizado pelas crianças pequenas durante o dia e também pelos gatos vadios durante a noite. Avisaram a guarda municipal que logo chamou a delegacia. O plantão era do investigador Nunes e Soares o despachou para o lugar na esperança que ele pudesse encontrar algum vestígio ou pista do ocorrido.
Antes da chegada do rabecão, Nunes havia achado perto do corpo a carteira que pertencia a um tal Ernesto Santos, de quem poderia ser o corpo. Poderia, pois estava muito destroçado, como se um animal grande o tivesse atacado, devorado parcialmente e depois regurgitado. O problema é que não havia marcas perto do corpo, nem sinal de sangue, nem de luta, nada. E também tinha outra questão, não havia animais selvagens de porte grande andando pela região há mais de cinco décadas.
– Que diabos aconteceu lá então? Soares resmungou alto, estava ao mesmo tempo curioso e preocupado.
****
Ned acordou cedo, aliás, como fazia todos os dias. Foi para a cozinha e começou a preparar seu desjejum predileto a base de ovos mexidos com insetos, que havia recolhido na última noite. Depois comeriam frutas secas para começar bem mais um dia de estudos. Sib tomava seu segundo banho do dia, completamente nua na piscina em frente à casa.
O investigador Nunes havia acabado de chegar ao sítio onde elas viviam e estava encantado com o que via. Comentou para si mesmo, enquanto caminhava sorrindo em direção à piscina: – E dizem que deusas não existem . . .
O café da manhã com as mulheres foi excelente. Um mexido de ovos com alguma coisa batida, pão em fatias com mel, frutas secas e sucos de melancia e ameixas. Tinha chegado na hora do café e até ajudou uma delas a sair da piscina ainda nua. Fingiu olhar para trás e mostrar certo constrangimento. Depois foram conversar na varanda da casa, o que foi muito bom para a investigação, pois esclareceu muita coisa. Vitor sempre foi muito bom em descobrir coisas de uma simples conversa.
Outro motivo para ir até o sitio era de realmente conhecê-las, não apenas trocar palavras ao acaso nas ruas. Sib, a de olhos azulados, era a que mais lhe interessava. Ned, a de olhos cor de mel, também não era de se jogar fora. Apenas estranhou a tonalidade dos olhos, a boca grande, e os seis dedos que ambas tinham. Mas isso não seria nenhum impedimento para um relacionamento com Sib, se ela topasse, é claro. Aproveitou para pegar os números dos celulares delas, afinal precisava conhecê-las melhor. Logo depois foi para a delegacia.
– Chegando tarde Vitinho?
O delegado Soares estava sentado em um sofá de forro plástico azul marinho atrás da recepção ocupada por Berenice.
– Não chefe. Passei na casa das moças que te falei, disse ele jogando a carteira e as chaves na mesa.
– Foi aquilo que achamos, elas são de fora do país e estão aqui fazendo uma pesquisa na área social e pelo que falaram escolheram três cidades para passar um período e conviver com a população local. Tem alguma coisa a ver com o doutorado delas em sociologia ou algo que o valha. Falam muito bem o português.
– Beleza. E quanto ao féretro? Alguma coisa?
– Elas apenas ouviram falar. Segundo elas, foram ao parque por estarem curiosas sobre o assunto e para descansar mesmo. Gostam de andar pelas trilhas e fotografar plantas.
– Pode ser, disse Soares se levantando. Eu continuo achando estranho um assassinato desses justo depois delas terem chegado. E elas são esquisitas, toma cuidado, disse enquanto saía da delegacia.
Parou de repente e olhou para trás
– Veja se ninguém sumiu na cidade. Pergunte a Berenice se ninguém relatou algum desaparecimento. Aquela carteira me parece fora de contexto. Ou esta fácil demais ou …
Vitor Nunes olhava o delegado com toda atenção do mundo.
– Ou a carteira foi plantada pelo assassino ou é do assassino, disse Nunes, balançando a cabeça positivamente. Falou chefe, vou fazer umas pesquisas no sistema e dar uma olhada na internet.
– Bere, vê pra mim, disse mandando um beijinho para a escrivã que sorriu.Deu tchauzinho enquanto saía.
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Enquanto Vitor Nunes, Ned e Sib tomavam seu café da manhã, no centro da cidade em um pequeno hotel numa das ruas periféricas uma estranha criatura acabava de acordar. Shikasta, o seu nome. Sua espécie era a quarta forma de vida inteligente de seu planeta natal, estando longe de ser a mais esperta, mas certamente eram os melhores caçadores. Por isso eram usados como agentes infiltrados para atrapalhar os planos de outros povos inteligentes daquela parte da galáxia.
Sentado na pequena cama do hotel ele ainda estava na dúvida se deveria ter ido fazer seu passeio pelas matas do parque. Seriam quatro, cinco dias no máximo. Só tinha desistido porque o policial estava lá investigando os restos do corpo que ele havia deixado para trás. Abriu a torneira do pequeno banheiro e lavou o rosto.
– Não. Não quero me ver nesta forma. Imediatamente sua camuflagem natural agiu e ele pode se ver em sua forma natural, orelhas altas, boca proeminente, presas alongadas e grandes bigodes felinos.
Voltou para a cama e pôs-se a pensar em sua missão e no porque de estar ali.
Trivia, seu planeta natal, gerou quatro formas de vida superiores, todas com feitio de antropóides e diferentes: os Iques, ou antigos, como eram mais conhecidos, evoluíram de pássaros; os Oldes, de mamíferos primatas, os mais parecidos com a raça irmã oriana; os kenes, a sua própria raça, de felídeos; e os mais numerosos de todos, os Dofos, mamíferos aquáticos que se pareavam aos Iques em inteligência.
Quando foi enviado para aquele pequeno planeta, sua função era descobrir o paradeiro e vigiar uma dupla de cientistas do planeta irmão. Foi deixado muito claro para ele que o objetivo era atrapalhar e não destruir ou mesmo matar. Aquilo seria impensável. A raça irmã, como eram chamados os habitantes de Or, era bondosa, generosa e às vezes tolerante. Se acaso descobrissem que eram perseguidos ou corriam perigo de morte a coisa mudava de figura. Eles estavam em um degrau evolucionário superior e a história de Trivia ensinava que podiam ser mestres em destruir e massacrar. Dos povos que ele conhecia, os nativos do planeta Or eram os únicos que possuíam memória genética completa.
Tinha fome e imediatamente tomou a forma humanoide. Vestiu-se e desceu até uma lanchonete perto, pediu dois hamburguês duplos para viagem e bebeu uma cerveja. Não ia voltar para o quarto agora, ia ficar de olho nas Orianas, foi por isso que desistiu do passeio. Procurou a carteira para pagar a conta em um dos bolsos e não achou, não estava em nenhum dos bolsos. Podia estar no quarto ou tê-la perdido em algum lugar. Pegou em outro bolso um dinheiro de reserva, pagou e saiu da lanchonete. Andou até a esquina e entrou no carro. Ligou um pequeno aparelho no seu braço e o automóvel começou a deslizar pelas ruas.
Trivia e Or eram os planetas principais de Noran, um dos inúmeros sistemas solares binários daquele quadrante da galáxia. Assim que a primeira nave Oriana pousou em Trivia os conflitos começaram. Primeiro com uma grande invasão que aos poucos se transformou em colonização e por fim em abandono. Como diria sua irmã de ninhada, os Orianos sempre queriam algo que alguém possuía.
Não conseguia entender a motivação dos pequenos conflitos, fossem econômicos ou militares, existentes entre as civilizações nos séculos passados. Porque não deixar os Orianos em paz? Seria a raiva dos Oldes e Iques pela derrota fragorosa na guerra? Não era possível, mais de mil anos haviam se passado. Seria algo aqui? Neste mundo? Colonização, talvez? Ou seria algo mais importante para eles, visto que eram uma raça antiga e diminuíam em número visivelmente a cada século: miscigenação? Se fosse isso, Or se renovaria e seriam mais poderosos e perigosos que nunca.
Podia haver outra motivação: economia. Trivia tinha dez vezes o tamanho do pequeno mundo chamado Terra e seria um parceiro de negócio muito mais interessante, isso sem falar na distancia, pois estavam no mesmo sistema solar enquanto que a Terra estava a oito anos luz.
Shikasta observou que a Terra tinha uma variedade de espécies vegetais invejáveis e os orianos tinham falta disso, minerais, ou tantas outras coisas. Tinha que parar de pensar nesse assunto, não era seu problema, o que tinha que fazer era apenas vigiar as duas mulheres. Apenas isso.
Sua camuflagem natural favorecida pelo ambiente do planeta e o atraso tecnológico da única raça superior o mantiveram ileso até ali. Desde que chegou, terminou quatro das formas de vida superior que ficaram em seu caminho e algumas inferiores. Ninguém jamais soube, a não ser o último. Trabalho mal feito, reconhecia.
Havia descoberto o local onde as orianas tinham montado sua área de vivência e laboratório e estava observando o que elas estavam fazendo, depois entraria em contato com o transporte que o trouxe e faria o relatório do período que seria enviado automaticamente à Trivia.
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Soares fechou a porta de casa e com um breve aceno de mão deu um tchau para a esposa que o olhava da janela com o filho mais novo no colo. Entrou no carro e ligou para a delegacia.
– E aí Dona Berenice? Alguém sumiu?
– Sim doutor. Um dos donos do restaurante do posto. São dois irmãos, falei com o mais novo, Pedrinho Chagas, ele disse que João, o mais velho, não vai trabalhar desde ontem pela manhã. Um dos garçons disse que quando foi embora ele estava dando uns amassos numa loira bonita.
– Cadê o Nunes? Ele já tá sabendo?
– Já e inclusive pediu para o senhor encontrá-lo neste endereço. Anota aí.
Quando o delegado chegou ao sítio avistou o investigador sentado na varanda conversando com as duas mulheres, uma delas com o Blue deitado com a cabeça em seu colo no sofá.
– Boa tarde, disse ele ainda desconfiado.
Boa tarde, disse uma delas se levantando e dando um beijo em seu rosto.
– Sente-se e tome um suco de tamarindo conosco. É gostoso, disse ela sorrindo. Vou preparar uns pãezinhos para o lanche.
Enquanto a mulher preparava uns pãezinhos ele se afastou um pouco da casa e olhou ao redor. Lugar maravilhoso, pensou. Casa toda de madeira com portas e janelas pintadas de azul. Na frente o telhado se estendia por uns cinco metros, criando uma varanda que elas transformaram em sala de estar. O visual em si realmente agradava.
Depois de conversar amenidades e tomar o suco oferecido, Soares foi direto ao assunto.
– Nunes, você já conversou com as moças?
Já chefe.
Ned, que ainda estava com Blue no colo e refestelada no sofá, começou a falar.
– Eu estive com João Chagas até mais ou menos onze da noite e tinha pouca gente no bar. Vim para casa e deixei umas três pessoas lá. Não sei quem são.
-Você notou algo estranho? Perguntou Nunes.
– Quando saí ele estava tendo uma discussão com o garçom. Não me interessei por aquilo e vim para casa.
Nunes olhou demoradamente as duas mulheres, mil pensamentos tumultuavam sua cabeça e ele preferia conversar sobre eles com Nunes no carro ou na delegacia.
– Bem, já terminamos por aqui Nunes, disse Soares. Depois de se despedirem rumaram para a delegacia.
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O anoitecer no parque naquela noite pareceu ser mais bonito, mais ainda por ele ficar em uma região alta e pouca gente o frequentar naquela época fria do ano, exceção de alguns drogados de ocasião ou grupos de jovens bêbados.
A pick up branca estacionou em frente aos brinquedos de concreto e duas mulheres saltaram.
– Podíamos ter vindo aqui durante o dia, Sib. Sabe que não gosto de sair à noite, mesmo que seja a trabalho ou na pesquisa.
Sib retirava do carro uma espécie de mala, que arrastou por uns trezentos metros até a caixa de areia. De dentro tirou um equipamento portátil que poderia ser facilmente confundido com um tablet grande. Ia usá-lo para medir algum tipo de energia residual. Olhou para a companheira e sorriu.
– Mentirosa. Você saiu de casa três noites atrás, depois que eu dormi e só voltou quando o dia amanhecia. Acha que me enganou? Como fez com os policiais daqui? Saiba que o delegado não se convenceu.
Ned olhou para a companheira surpresa.
– Faz parte de nossa pesquisa, disse olhando a outra seriamente. Escolhi o individuo alvo e ele marcou aqui no parque durante a noite. Eu já o tinha escolhido. Você mesma disse que cabia a cada uma escolher os indivíduos para a experiência.
– Tudo bem, disse Sib olhando a amiga enquanto ligava o medidor. Eu também já escolhi o meu. Veja essas leituras de energia…
Ned, perplexa, olhava o equipamento.
– Alguém usou um desintegrador químico molecular aqui, tão poderoso quanto um protoplasma. Um arrepio chegou a percorrer seu corpo. Vamos ver se ainda tem material genético. Os policiais que vieram conversar conosco hoje de tarde estão em perigo, Sib. Creio que temos um caçador triviano nos vigiando.
Sib passou as mãos duas ou três vezes sobre o equipamento e o apontou para o chão, no lugar onde o corpo do humano fora encontrado na manhã anterior.
– Sim, ainda tem material genético humano. Está sem contaminação.
– Vou analisar e… Temos o resultado, mas precisamos confirmação.
– Aponte o equipamento para meu ventre, disse Ned assustada.
Sib apontou o equipamento para o baixo ventre da amiga e efetuou a leitura. Ambas olhavam-se nos olhos.
– Leitura parcial confirmada Ned. Alguém eliminou seu parceiro. Talvez sejamos as próximas vítimas. Vou mudar o módulo para arma, antes que sejamos atingidas.
De dentro da patamo da policia, totalmente apagada, Nunes e Soares estão de tocaia, observando as mulheres desde a saída do sitio. Soares, usando um binóculo de visão noturna, olhava com atenção toda a movimentação delas.
– Que porra é aquela que elas estão usando? Tu já viste alguma coisa parecida, Vitinho?
– Não chefe, disse o investigador com outro binóculo noturno. Sai umas luzinhas dele e ficam fazendo voltas no ar.
– Tá fazendo voltas como se fosse uma hélice, Vitinho. O que será aquilo?
Nunes olha ao redor das moças e também mais para perto de um conjunto de brinquedos feitos de cimento e argamassa. Algo parecia acender e apagar no meio dos brinquedos. No inicio ele achou que fossem vagalumes, depois ele viu uma silhueta estranha.
– Chefe, nos brinquedos, tem alguma coisa olhando as moças. Acho que vi um homem ou algo parecido. Muito esquisito chefe, acho melhor a gente descer. Vou levar o fuzil, estou com mau pressentimento.
Estavam na metade do caminho quando um clarão atingiu as duas mulheres que caíram na areia. Soares e Nunes começaram a correr em direção a elas quando outro disparo veio na direção deles. Só não foram atingidos por sorte. No carro, Blue latia sem parar e forçava a guia presa na carroceria.
Uma das moças se levantou e Nunes ouviu o disparo de algo sônico, um zumbido curto e alto, na direção dos brinquedos de concreto, fazendo com que todos virassem pó. Ele e Soares correram novamente na direção das mulheres e conseguiram chegar no instante que um segundo clarão atingiu a todos, desta vez vindo de cima. Uma aeronave talvez.
Soares, que estava bem na sua frente, estava caído na areia tendo uma convulsão, assim como as duas mulheres poucos metros à frente. Nunes olhou para cima e uma luz fina azulada saiu de um ponto qualquer do céu, invisível, e parecia procurar alguma coisa.
– Chefe? Chefe? Sib? Ele não obteve resposta. Começou a gritar pelo único que poderia salvá-lo: Blue.
Em seu íntimo sabia que não podia esperar por socorro. Nunes mirou o fuzil na direção de onde emergia a luz e disparou todo o pente do fuzil 7.62 naquele ponto.
Outro disparo, desta vez vindo do chão, de uns arbustos perto, que por pouco não o atingiu.
Era Shikasta. Logo que viu as mulheres chegando e os humanos pouco depois, resolveu agir. Para ele estava claro que o objetivo das orianas e do estudo era miscigenação, a tomada do pequeno planeta que ele aprendera a amar. Já não se importava com a missão, queria obter resultados, mas resultados que lhe interessavam, e ele queria morte. Atirou de novo, um feixe aberto que certamente atingiria todos. Ele olhou e viu duas criaturas sentadas tentando alcançar algo, uma oriana e um humano.
Sib ainda tentava alcançar seu equipamento quando tomou um chute nas mãos que jogou longe a máquina.
Nunes gritou pelo seu cão mais duas ou três vezes antes de ser atingido no rosto pelas botas da criatura.
Ned se recuperou um pouco e tentou se levantar e correr na direção do carro, mas antes do terceiro passo foi derrubada de novo pelo disparo de Shikasta. Desta vez sentiu a arma lhe queimar o corpo, sabia que morreria em breve e começou a gritar quando viu seus braços e pernas em brasas.
Um solavanco forte no enforcador e Blue estava livre. Como uma força da natureza, Blue corria pelo mato baixo, veloz e furioso. Shikasta viu o canídeo vindo em sua direção e disparou contra ele, mas sem conseguir acertar. Prestou atenção e mirou outra vez, quando tomou um chute na perna que o desequilibrou.
Nunes, mesmo deitado conseguira salvar a vida de Blue. Isto lhe custou a própria vida. Shikasta deu-lhe um pisão no pescoço que esmagou sua traquéia e quebrou três de suas vértebras.
Shikasta estava equilibrado novamente, senhor da situação. Sabia que lhe custara preciosos segundos, tinha que achar o canídeo. Levantou a arma na direção do animal, mas já era tarde demais. Blue saltara e lhe mordera o braço, arrancando a arma. Ele se desvencilhou e pegou um tipo de lâmina, mas o cão o mordeu na perna e no outro braço. Mesmo assim atingiu o animal. Sua camuflagem natural desaparecera e Soares ainda tonto pode ver o que ele era.
– Minha nossa, disse o homem tentando alcançar a pistola na perna.
Naquela altura Shikasta lutava pela própria vida e seus instintos felídeos o levaram a lutar com suas armas naturais, conseguindo morder o cão. Viu que o homem no chão procurava por algo na perna… uma arma. Tentou saltar sobre o homem, mas o barulho do disparo e o soco da bala penetrando pela armadura o deixaram surpreso por alguns instantes. Isso não poderia acontecer. Arrancou a arma da mão do homem e virou-se, mordendo o pescoço e arrancando a traqueia quando o instinto novamente lhe alertou… O cão!
Blue aproveitou que a criatura o havia esquecido e saltou outra vez, desta vez conseguindo abocanhar Shikasta na nuca. Balançou a cabeça com força e raiva. Soltou e mordeu de novo, mais firme, mais fundo ainda. Ficou naquela posição alguns segundos até se acalmar e conseguir entender que venceu.
Shikasta estava morto.
A confusão daquela batalha improvável acabou como começou, repentinamente. Sib estava sentada no chão ao lado de Ned e lhe apontou o instrumento. Morta. Olhou os dois humanos e também estavam mortos, eles não estavam preparados para uma luta daquelas.
– O caçador enlouqueceu, disse baixo, ainda com o equipamento nas mãos. Um leve ganido chamou sua atenção, era Blue.
O cão sangrava muito do ferimento da faca triviana. Sabia que ele morreria nos próximos minutos.
– Tenho que arrumar esta encrenca. Tentou se levantar e uma dor aguda no peito a fez sentar-se de novo. Lembrou-se do transporte que os atacou do ar e o encontrou, camuflado, próximo aos postes de iluminação. Calibrou o aparelho e outro disparo sônico se fez ouvir na noite. Apenas poeira nanométrica espalhou-se ao vento. Ela sorriu.
– Animal desgraçado. Disse olhando para o corpo sem vida de Shikasta.
Arrumou os corpos dos humanos e do cão mais afastados, puxou Ned e o triviano para perto. Fez outra leitura de seu corpo e a confirmação da desintegração de seus órgãos foi ratificada, tinha poucos minutos de vida.
Tentou lembrar se tinha algum equipamento oriano na casa ou no carro e concluiu que não. Andou até o corpo de Nunes, colocou um colar em sua mão e fechou seus olhos. Ele era seu escolhido, teria um filho dele e viveria em paz ali, tinha sido sua escolha. Animal maldito, pensou de novo. Voltou e deitou-se ao lado da amiga, afastando um pouco a criatura fétida. Ligou o equipamento e o calibrou para seu sinal vital.
Minutos depois uma explosão curta seguida de onda de calor intensa fez com que as folhagens secas se inflamassem causando um incêndio poderoso.
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Berenice ainda estava chorando quando o oficial bombeiro confirmou as mortes do delegado Soares e de Nunes.
Outro delegado havia chegado ao final da manhã quando os corpos carbonizados foram encontrados.
– Berenice, qual o caso em que eles estavam trabalhando?
– O do assassinato que aconteceu aqui mesmo no parque, Dr. Silva.
– Os outros dois corpos foram confirmados, continuou ela. Estavam mais carbonizados ainda, não será possível identificação nem por DNA. Achamos as bolsas das mulheres no carro com os passaportes suecos Ned Karlsson e Sib Persson. Identificamos também a ossada do Blue e outra de um animal grande qualquer. Podia ser qualquer coisa, falou Berenice.
– É tão triste Dr. Silva.
– É sim, Berenice. Eu conhecia o Vitinho e o Mauro há muitos anos e eles me mandaram as pastas do caso por e-mail. O Mauro estava encasquetado com alguma coisa, falou balançando negativamente a cabeça.
Parou de falar, olhou nos olhos da escrivã e disse:
– Uma coisa não me sai da cabeça Berenice. Quem nessa história toda era Ernesto Santos, afinal.
Fim.
Conto escrito por Swylmar Ferreira
Imagem ilustrativa: http://www.deviantart.com/art/Alien-Pets-46032203.