Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
“O que está fora da vista perturba mais a mente dos homens do que aquilo que pode ser visto.”
Caius Julius César
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A cidade neste início de madrugada está estranhamente calma, poucos carros cruzam pelas avenidas iluminadas, trazendo uma sensação de abandono. A explicação para isso é simples: está realmente frio! Talvez seja apenas a época do ano, pleno inverno, uma frente fria que chegou do pólo, ou mesmo a altura da cidade em relação ao nível do mar – mais de mil metros. Pode também ser uma junção de todos estes fatores, contribuindo para o pouco movimento.
No terraço de um prédio baixo, a criatura que outrora foi Charles Moraes Beson observa o fraco movimento de pedestres e tenta clarear seus pensamentos. Logo que iniciou sua nova vida ele começou a caçar perto de casa e já na primeira vítima sofreu um revés, o acompanhante da mulher atirou contra ele. Sabe que se for atingido dificilmente sobreviverá, tem que tomar todo o cuidado possível, pois criaturas da escuridão também morrem.
Aquele era o seu novo território e ele sabia que devia escolher a caça correta ou podia ter uma surpresa desagradável. Uma sirene ao longe faz com que as poucas pessoas que estão circulando pelas ruas fiquem em alerta.
Um grupo de jovens, rapazes e moças, passam fazendo algazarra e escutam por breve momento em silêncio o barulho alto e logo voltam as brincadeiras se afastando aos poucos daquela rua, daquele cruzamento.
Charles avista uma possibilidade. Um homem careca, alto e acima do peso que caminha desavisadamente pela noite. Já o tinha visto antes, lembrava-se de que certa vez o seguiu por diversas quadras até ser obrigado a desistir devido ao grande número de transeuntes daquela madrugada, mas hoje seria diferente. Deu um grunhido de satisfação e excitação, saltou para o prédio ao lado, desceu trotando dois andares por uma escada de ferro externa e rápido como um raio estava no chão.
O andar apressado do homem mostrava que ele estava incomodado por andar só na madrugada. Saiu tarde do trabalho, parou no “buteco” para tomar umas pingas e espantar o frio, começou a conversar com um cara qualquer que estava lá e perdeu a noção da hora, agora tinha que ir a pé para casa. Sorte que não morava muito longe, mas caminhar a noite naquela parte da cidade era arriscado, podia ter azar e dar de frente com assaltantes ou traficantes. Naquele momento um calafrio percorreu-lhe a espinha, tinha a sensação de estar sendo observado, olhou ao redor e não viu nada. O que seria então? Perguntou-se. A resposta veio cristalina como a mais pura água. Medo! Começou a andar mais rápido, em instantes corria.
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Da varanda do pequeno prédio alguém observa o transeunte. A figura é imponente, bela e esguia ao mesmo tempo. Salta imediatamente ao chão na rua caindo em pé, flexionando levemente os joelhos, a altura de seis metros era irrelevante. Já tinha visto o outro caçador e não se importava, era um dos seus e conhecia-o melhor que ele mesmo. Era raro ver caçadores nas redondezas, principalmente estranhos.
Começou a andar rapidamente, quase correndo em direção ao solitário que se encontrava a poucos passos a sua frente. O homem que vez ou outra virava a cabeça e olhava atrás, estava agora em uma corrida desabalada.
– A caçada começou! Gritou ela em voz alta, como se estivesse cercada de centenas de observadores a apreciar seus dons.
Uma alegria inenarrável toma conta do seu ser, a sensação do perigo, da caçada, quando percebe está praticamente em cima de sua presa, com um safanão o desequilibra e joga ao chão.
Gritos desesperados cortam a noite e uma luz é acesa em um dos prédios. Outro grito. Um terceiro é iniciado, mas para instantaneamente quando a garganta do homem é cortada por unhas tão afiadas quanto a mais aguçada navalha. Ele ainda tenta uma última e desesperada reação ao agarrar os enormes cabelos com toda a força em uma tentativa vã de olhar o rosto, de implorar pela vida, mas é tarde demais, a traquéia é praticamente arrancada do pescoço.
Em segundos o predador abateu sua presa. Ela não quer apenas o sangue, quer o coração também, enfia as unhas e dedos poderosos abaixo das costelas do morto rasgando a pele como se fosse um tecido fino e arranca o órgão.
Levanta-se devagar, com cuidado para não sujar de sangue suas pernas e pés, pois lhe bastam as mãos cobertas pelo líquido ainda quente e viscoso. Afasta-se de sua presa alguns passos, recosta-se e fica perto olhando o corpo sem vida, apreciando sua arte. Sente que a excitação, o prazer da caçada não existem mais, sua respiração aos poucos volta ao normal.
Escuta passos muito perto, passos incertos que se aproximam lentamente. Algo ou alguém fareja o ar, reconhecendo de imediato o cheiro da morte. Reconhece a criatura amaldiçoada. Afasta-se dois ou três passos para que se aproxime, neste estado ele lembra um animal esfomeado implorando por comida. Afasta-se mais um pouco e fica observando enquanto ele se alimenta. Ela sorri!
Charles está saciado! O silêncio faz com que ele escute sua própria respiração, a quietude traz o sono e ele relaxa, quase adormece, então se lembra da figura imponente e seminua da mulher a sua frente. Tenta falar alguma coisa, mas a garganta dói e sua fala naquele instante não passa de grunhidos horríveis, ininteligíveis. Tenta chegar perto da mulher e dá alguns passos em sua direção, mas ela começa a cantarolar algo que ele não consegue entender, movimentando os braços e fazendo com que ele veja os reflexos luminosos daquela ação como se fossem efeitos especiais em uma tela de cinema. Com um par de passos ela desaparece em meio às brumas gélidas da manhã.
Charles sabe que tem que sair dali, fugir. Rápido! Começa a correr antes que o dia amanheça e seja visto. Fecha os olhos e se deixa levar pelo instinto mais uma vez.
Lembranças vêm a sua mente naquele instante, lembranças de um mundo diferente, o mundo espectral onde os seres especiais vivem. Aprendeu sobre o lugar com a mulher que hoje é sua mestra, o lugar que os homens chamariam de limbo.
Às noites quando tem fome ou quando sente vontade de ser livre, ele se transforma e sai às ruas da cidade para se alimentar ou simplesmente para procurá-la, sente muito sua falta, como um animal de estimação quer sempre estar perto da criatura-mulher conhecida como a dama sombria.
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Charles acorda em sua casa, deitado no sofá velho e mal cheiroso, ainda herança de sua avó materna.
– Tenho trabalhar! Fala para si mesmo ainda se espreguiçando. Levanta, toma banho e vai ao trabalho com seu carro de entregas rápidas.
A rotina do dia de trabalho só é quebrada quando acontece algo diferente, como hoje. Ele acabou de chegar de uma entrega quando o supervisor, Sr. Jairo, um homem baixo e gordo que dava a sensação de estar sempre suado, lhe disse que dois homens estranhos procuravam por ele.
– Quem são? Perguntou ainda desatento, olhando para Jairo que apenas balançou os ombros.
Charles observa rapidamente os homens. Ambos são altos e fortes como ele, um careca e um loiro de bigode. Usavam roupas largas e folgadas como “se o defunto fosse maior”, pensou. Do lado de fora da loja viu uma SUV cinza com película quase negra nos vidros, onde dava para ver a silueta de alguém sentado no lado do carona, segurando alguma coisa.
Os homens se aproximaram e um deles, o careca, se identificou como investigador da polícia civil. Queriam indagar sobre o desaparecimento de uma mulher ocorrido há uma semana. Uma pista levou a ele.
– Boa tarde! É o senhor Charles Beson?
– Sim.
– Trata-se do desaparecimento de Maria das Graças Silva. Uma testemunha viu o seu carro de entregas estacionado perto do local onde esta mulher foi vista pela última vez. Disse o investigador.
– Perto do carro, no local, acharam roupas rasgadas e uma carteira com os documentos dela, além de grande quantidade de sangue espalhada pelo chão. A testemunha estranhou aquilo, anotou a placa do veículo e avisou a polícia.
Charles ficou lívido. Como pode cometer um erro estúpido desses, agora esses caras ficariam no seu pé.
– Mas eu nada sei do desparecimento da mulher, disse Charles, encarando os dois homens.
– O carro estava lá porque deu problema na bateria e não consegui levá-lo até em casa. No outro dia o Jorjão, um colega daqui do trabalho, me levou lá e dei uma chupeta. O carro pegou e viemos embora, é só perguntar para qualquer um aqui.
Eles não se impressionaram com a resposta e fizeram mais algumas perguntas até que um deles, o careca, tirou os óculos escuros e perguntou:
– Você é um dele,s não é? Não me engana, seu canibal desgraçado.
Charles ficou paralisado de medo, a situação mudou completamente.
Os dois homens olhavam para ele tão fixamente que pareciam nem piscar. Charles estava estupefato com a pergunta. Sabia que existia um grupo de homens que perseguia àqueles que, como ele, viviam no limbo. A dama sombria o havia avisado sobre eles.
– Desculpem, eu não entendi o que você falou. Você é maluco? É da policia mesmo? Falou Charles mais alto, chamando a atenção de seus colegas.
O careca meteu a mão nas costas como se segurasse alguma coisa. Uma arma, pensou Charles.
– E a mulher? Falou o outro homem, um loiro com bigodes ralos.
O silêncio entre eles durante alguns segundos era sepulcral e Charles podia sentir seu coração disparado pelo medo.
O loiro continuou.
– Aquilo é mais que uma bruxa. Você sabe o que ela é?
O careca complementou a pergunta.
– Você sabe quantos ela criou, assim como fez a você? Sabe quantos já foram destruídos? Tem idéia de quantos estão soltos por aí?
Charles olhava apavorado, sabia que se tentasse alguma coisa ali, estaria acabado. O careca o mataria sem pestanejar. Estava quase correndo quando Sr. Jairo se aproximou.
– Está tudo bem aí? Perguntou o velho gordo em um misto de curiosidade e tensão.
– Por enquanto, respondeu o loiro sem tirar os olhos de Charles. Podem se preparar para mais visitas nossas.
Os homens deram as costas e foram para a SUV, entraram no carro e saíram lentamente.
– O que foi aquilo rapaz? Perguntou Jairo. Não quero encrenca aqui na minha loja, entendeu?
Charles saiu e foi para casa, a pé desta vez. Queria desanuviar a cabeça, colocar os pensamentos em ordem.
– Como chegou até esse ponto? Perguntou-se várias vezes em voz baixa durante a caminhada. Sentou em uma praça, perto de onde morava e enquanto observava crianças brincando começou a rememorar.
Nunca foi um cara religioso, nem lá muito bondoso, reconhecia; era alto, forte e costumava “não levar desaforos para casa”. De família abastada, sempre teve tendências à violência, treinou duas artes marciais para “sua defesa” e não era chegado em estudo. Mesmo assim se formou para alegrar a avó, só que nunca exerceu sua profissão. Ao invés disso trabalhou em diversas coisas, foi vendedor de carros, mecânico de elevador, motorista de taxi e agora entregador de mercadorias em um delievere.
Das inúmeras “amizades”, que teve uma se destacou. Luis Alberto. Trabalharam juntos em duas empresas e sempre estiveram em contato até que o rapaz se mudou repentinamente a cerca de um ano. Mas antes ele o havia apresentado a uma mulher, uma mulher especial ele dissera.
– O nome dela é Lili e apesar dela estar metida com coisas estranhas é muito legal. Disse Luis Alberto no momento em que os apresentava.
Charles se interessou imediatamente por ela, jovem, bonita, um corpão, era muito bom vê-la e ele estava sempre procurando por ela, em geral às noites. Começaram um relacionamento e ele rapidamente estava apaixonado por ela, fazendo suas vontades. Uma vez espancou um cara na saída do cinema, que olhou para ela, que não gostou. De outra feita chutou um cão perto de casa porque o bicho latiu enquanto passavam. Fez outras coisas, como roubar entregas para presenteá-la, receber propinas, enganar, mentir e por fim, matar.
Este foi o último pedido dela, ela queria sangue, sangue de gente, ela lhe disse.
– Quero uma prova de seu amor. Falou ela enquanto transavam.
– Tem uma mulher perto da minha casa que me odeia, Lili falou. Eu odeio e desprezo ela também. É velha e se morrer não vai fazer falta a ninguém. Mais tarde quando saíram para jantar ela lhe mostrou sua desafeta.
Incauto, apaixonado e burro como uma porta ele assim o fez, seguiu a mulher à noite pelas ruas da cidade e quando teve oportunidade arrastou-a para um local vazio e a estrangulou. Chegou na casa de Lili mais tarde e contou a ela, mostrando uma foto de celular para provar.
Naquela noite Lili mostrou-lhe sua verdadeira face. Depois de terem feito sexo, ela veio até ele com um copo de bebida e o fez beber. Charles ficou quase que instantaneamente paralisado, de repente o quarto parecia maior, mais escuro. Viu quando ela foi até um canto mal iluminado e apanhou um livro muito velho e empoeirado de dentro de um armário. Um livro estranho, ele pensou, estava trancado com uma chave em forma de estrela. Observou que Lili falava alguma coisa e sorria, sorria alto, soava como gritos. A mulher o abriu e começou a citar palavras que ele não entendia. Ela abriu a gaveta de uma cômoda que ele nem tinha reparado que existia, pegou alguma coisa e caminhou até a cama.
Lili tinha uma faca nas mãos naquele instante e estava séria. Passou a arma suavemente no peito do homem deitado a sua frente e o cortou, fez o mesmo em sua mão, tirou seu sangue e misturou ao dela em um vasilhame reluzente. Bebeu e fez com que ele bebesse também, dizendo mais uma série de palavras ininteligíveis.
Ele viu em seu corpo nu aparecerem uma série de escritos e mudanças em seu rosto, que parecia aumentar a cabeça e surgir mais dois olhos. Ele estava horrorizado, tinha se urinado todo de pavor, queria sair dali e gritar, tentou fazer uma oração e não conseguiu, infelizmente era um homem de pouca fé. Aquele ambiente escuro, mal iluminado por velas velhas e grossas, malcheiroso seria seu túmulo, pensou.
Mas não. Estava enganado, Lili não pretendia apenas matá-lo, tinha um destino pior para ele. Então percebeu que a cada transformação em Lili, ele próprio também se transformava, seus braços cresciam, suas mãos e unhas se transformavam em garras, seu rosto se deformava, os olhos diminuíam, a boca aumentava e dentes enormes apareciam, as costas se encurvavam. Aqueles como Charles eram homens e também algo mais, algo malévolo, que vinha de dentro dele, de sua própria índole, de sua alma. Algo que poderia se chamar de monstruoso, de mal.
Charles sabia que fez por merecer por estar naquela situação. Chegou em casa, tomou um banho frio e trocou de roupa. Ficou sentado no sofá velho, lembrando do que acontecia nas noites em que se transformava naquela coisa, lembrava-se de cada detalhe, de cada grito, de cada rosto. Abriu a gaveta da cômoda e pegou uma caixa de remédios, tarja preta. Pegou dois de uma vez, engoliu com um copo grande de água e foi se deitar, adormecendo em poucos minutos.
Acordou cedo no outro dia, limpo, sem sangue no corpo e foi trabalhar. Repetiu esse ritual por mais de uma semana quando em um fim de tarde os dois homens voltaram, desta vez com um terceiro, um oriental, já bastante idoso. Charles não queria conversa, mas o careca ameaçou prendê-lo. Foram então para um passeio público com bastante gente andando e se divertindo. Eles se sentaram em uma mesa afastada de madeira.
– Há quanto tempo você não a vê? Uma semana, dez dias?
– Temos outro desaparecimento, disse o loiro. E desta vez encontramos sangue em uma ruela no centro, encontramos um dente, bem grande de algum tipo de animal. Acredito que o bicho comeu o cara, depois que sua ama tirou o que queria. Quero que você venha conosco, Charles.
– E se eu não quiser? Disse Charles.
– Não faremos nada! Disse o loiro olhando com seriedade para ele.
– Apenas iremos embora e deixaremos você com seu destino. Você faz suas escolhas e paga por elas, assim é a vida.
Charles ouviu outra voz, a do oriental desta vez.
– Todos têm um destino, parece que o seu é ser escravo daquela coisa.
O homem estava de lado para ele sem olhá-lo, parecia observar os carros na rua e continuou.
– Encontramos outros como você, dezenas. Há uma guerra muda que se desenrola há séculos, mas permita que lhe conte um dos episódios. Há pouco mais de um ano, um homem que você conhece e que é como você, estava caçando em uma cidade no norte, tentamos ajudá-lo, mas ele não quis, era jovem e orgulhoso, caçou cinco pessoas até que foi pego, pelos habitantes. Sua forma era estranha, caminhava em três patas e tinha listras espalhadas pelo corpo. Atiraram nele e um dos homens da turba trespassou-lhe o corpo com uma vara, os outros viram e usaram diversos pedaços de madeira para acabar com a criatura. Temos fotos da transformação, de quando deixou de ser homem e se transformou naquela coisa nojenta.
O oriental conseguiu a atenção de Charles que pediu para ver as fotos. Eram seis e mostravam uma garota muito jovem morta, semi devorada e a transformação de Luis Alberto em um animal.
Charles desesperou, começou a andar de um lado para o outro, ora choramingando, ora xingando.
– Não quero acabar assim. Falou.
O Loiro olhou para ele e disse.
– Deixe-nos contar uma estória, aí caberá a você fazer sua escolha se quer que nós o ajudemos ou não. Este é Li Yu, nosso amigo e aliado, ele vai lhe falar sobre a dama sombria.
O oriental viu a surpresa no rosto de Charles.
– Sim, sabemos deste modo de chamá-la. Ela tem muitos nomes.
– A primeira vez que ouvimos falar dela foi há mais de três séculos. Ela chegou na cidade imperial como prometida e se casou com um príncipe de meu país, e sendo uma de suas esposas o transformou em um monstro terrível. Nesta época acreditávamos que ela era uma feiticeira poderosa.
– Ficaram muito tempo juntos, anos e anos, ela se aproveitando do status de nobreza até que ele matou o próprio filho, isto pareceu trazê-lo parcialmente de volta a realidade. Em sua loucura o príncipe se trancou com vinte guardas armados em uma das salas do palácio durante a noite e se transformou. O resultado foi óbvio, mesmo os soldados sabendo ser o príncipe, quando a criatura começou a matá-los, reagiram e o eliminaram. Não conseguiram salvá-lo, mas ela foi capturada e nos contou um pouco de sua vida. Disse que viera de outro lugar e que lá era um dos grandes líderes, era estudada em escolas de magia e que tinha saído de tal lugar até conseguir chegar na cidade.
Contou que tinha influenciado nosso príncipe por meio de magia negra, que aprendera tudo em um livro muito antigo que trouxera do lugar de onde veio.
Uma das outras esposas disse não acreditar e pediu para ver o livro, então o capitão da guarda as levou até o local onde estava guardado. Quando colocou as mãos no objeto ela se transformou em uma coisa horrível, indescritível e desapareceu de lá junto com a outra esposa do príncipe, que depois soubemos ser uma de suas vassalas.
– Isso soa meio esquisito não acha? Perguntou o careca.
– Não, respondeu Charles. Sei que é verdade. Vocês nunca conseguiram pegá-la?
– Não. Ela sempre esteve um passo a frente de seus perseguidores, até agora. Deixe-me continuar, falou o oriental. Desde aquela época um grupo de homens se juntou para tentar destruí-la e a todos os outros que vieram do limbo, mais de trezentos anos se passaram e a dama sombria passou por diversas partes deste mundo, fazendo vítimas, usando pessoas como você para defendê-la e muitas vezes matar por ela. Às vezes conseguimos descobrir alguma de suas criaturas, desta vez a dica foi de Luis Alberto, vimos de que cidade ele veio e ficamos vigiando até encontrar você Charles. Só havíamos chegado tão perto assim uma vez, no inicio do século vinte, na Birmânia. Nossa grande dificuldade são vocês, os vassalos, que só se transformam quando a fome dela aumenta, senão levam uma vida normal. Conheci um caso em minha cidade de uma moça que nunca se transformou, nunca caçou. A descobrimos pelos rituais de magia que praticava.
– O que posso fazer para ajudar?
– Leve-nos até a casa onde vocês se encontram, respondeu o oriental. Mas você deve entrar conosco, pois apenas as criaturas de sua magia abrem a porta verdadeira.
Charles sabia que levá-los até a casa de Lili seria extremamente perigoso, depois que ela o transformara em um monstro faminto, só tinha contato com ela quando a voz em sua cabeça o chamava. Estava muito claro, que ele nunca significou nada para ela, que apenas o usou e o transformou em um escravo. Já vinha pensando nisso há algum tempo. O monstro seria apenas ele?
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Localizada em um terreno enorme nos arredores da cidade, a casa onde Lili vivia não era velha. Nem tinha aparência de abandono, ao contrário, mesmo durante a noite, do lado externo, era bem iluminada e agradável de ver. Um casarão, como disse o loiro. Quando Charles se aproximou da porta, viu que estava apenas encostada.
– Parece que estamos sendo esperados, ou apenas você Charles.
Entraram e Lili os esperava. Mesmo vendo os homens de armas em punho, ela sorria. Apontou os sofás para que se sentassem e eles negaram. O loiro disparou sua pistola na direção de Lili uma vez, duas, três talvez, mas ela apenas sorria. Em um instante pareciam estar em outro mundo, outra realidade. A sala, agora enorme em dimensões, estava escura e podiam-se ver as velas próximas às paredes, móveis antigos e belos. Ela fez um gesto com a mão, fazendo surgir um pequeno ponto de luz azulada, de brilho intenso e o mostrou aos quatro homens que se encontravam à sua frente, aumentando sua intensidade. Ela estava em seu território, ali as leis básicas da física nada significavam, ali era a escuridão.
Lili agora estava em todo seu esplendor, era outra vez a dama sombria. Outra mulher apareceu na sala, era jovem e bela, de origem oriental, carregava alguns apetrechos e sorriu quando os viu.
– Ah, querida! Finalmente teremos um bando. Disse feliz.
Os quatro homens tentaram se mover e não conseguiram, estavam paralisados. Charles gritou quando percebeu que foi usado para atraí-los, pediu que ela os libertasse, implorou. Nada. Viu quando elas começaram o ritual de transformação, cortando os homens, Lili bebendo seu sangue e em uma orgia macabra, cortando-se também e obrigando-os a participar do ritual. A cena era dantesca.
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Era um belo amanhecer. Charles Moraes Beson observava o sol da manhã surgindo e as pessoas saindo de suas casas para mais um dia de trabalho. Pensou nos outros homens com piedade, pensou em LIli com amor, pensou em como seria sua vida daquele dia em diante. Sabia que era um escravo agora e ao mesmo tempo percebia que passou a fazer parte de algo que não conseguia explicar, que não conseguia entender.
Uma imagem não saia de sua cabeça, no final do ritual todos estavam ajoelhados com a cabeça colada ao chão quando a outra mulher levantou a cabeça e sentada sobre as próprias pernas gritou:
– Vejam vassalos abram seus olhos e regalem-se, estão diante de Deimos, sua rainha sombria.
Andando pelas ruas Charles está desolado, não queria este tipo de vida para ele, a cada passo dúvidas e remorsos corroem-lhe a alma. Lembra-se de Luis Alberto, do modo como acabou, lembra-se do príncipe da estória de Li Yu, e chega à conclusão que ninguém merece isso. Vê uma das entradas do metrô, desce as escadas rolantes e observa a plataforma cheia, escuta o barulho dos vagões nos trilhos e toma sua decisão. Enquanto se joga na frente da composição, em meio aos gritos dos outros passageiros, um último pensamento lhe vem à mente. Não seria lacaio de ninguém.
Fim
Esta é a segunda versão deste conto.
imagem meramente ilustrativa retirada de: http://www.deviantart.com/art/Demon-woman-453890409