Fantasticontos, escritos e literários

Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror

DESPERTAR


thumbbig-159996Passear pelos shoppings centers da cidade há muito tempo é um dos meus entretenimentos prediletos. Gosto de ver as pessoas andando, gosto de seus rostos felizes, sorrindo, isso realmente alegra os meus dias.

Às vezes me sinto um estranho nesta cidade, sinto que poderia estar em outro lugar, com meus antigos colegas de trabalho, amigos que há tempos não vejo.

Saudades!

Mas não vim aqui para saudosismos, vim para ir ao cinema. A ideia é assistir a um filme de bang-bang. Uma refilmagem de um grande clássico, “The wild bunch,” que estreou semana passada e tive  vontade de assistir. 

Não pode ser muito tarde, de preferência no inicio da noite. Aos sessenta anos as dificuldades começam a se tornar um fator preponderante para desistências das programações planejadas. O sono chega rápido, as pernas doem e aparecem outros pequenos empecilhos da idade.

Em geral passo pelas pessoas e as olho sem ver. Nunca fui mesmo de prestar atenção nas pessoas, mas o rosto de uma moça me chamou a atenção. Percebi que ela me olhava fixamente e não estou acostumado com isso. Estava sentada a umas cinco mesas de distância na praça de alimentação. Uma criança pequena gritou na mesa ao lado, no colo da mãe, desviei o olhar por um breve instante e quando voltei minha atenção outra vez para onde a jovem estava, percebi que tinha levantado e a perdi entre as dezenas e dezenas de pessoas que circulavam naquele sábado no inicio da noite.

Eu tinha decidido tomar um chope escuro na praça de alimentação antes de ir comprar o ingresso do cinema.

O rosto da moça não era estranho, eu já a havia visto antes. Onde?

Comecei a tentar lembrar, vasculhar velhas lembranças. Para coisas imediatas minha memória está ruim, mas para coisas antigas, é excelente. Consegui lembrar, claro como a água límpida, de onde tinha visto aquele rosto. Eu tinha uns vinte anos na época e, passeando pela cidade, tinha ido ver uma coleção de fotos premiadas do final do século passado, e vi sua foto em preto e branco. Lembro que fiquei muito tempo observando a imagem, sem palavras. A impressão que tive naquele momento era de a conhecer toda a minha vida. Uma tolice minha na ocasião. Mas acabei comprando uma cópia daquela fotografia.

Fiquei ali por alguns segundos pensando se ainda teria aquela foto guardada em algum lugar quando ela parou a meu lado.

De perto era ainda mais bonita. Alta, cabelos longos e loiros, ondulados, aparentando uns vinte e cinco anos, vestia calças jeans e uma blusa comprida folgada, sorriu para mim e se sentou.

– Olá. – Disse ela me olhando.

– Você lembra de mim? Lembra?

Fiquei sem falar nada naquele instante. Ridículo, pensei, como dizer à moça que comprei uma foto dela há uns trinta anos e ela não mudou.

Resolvi manter a compostura, afinal poderia ser uma brincadeira de jovens.

– Seu rosto me é familiar.

Ela sorriu.

– Que ótimo. Procurei você por décadas, em muitas cidades. Estou feliz por ter te encontrado. Você se lembra do meu nome?

Olhei em seus olhos e ela sorria. Falamos ao mesmo tempo.

– Mariel.

Coincidência… Poderia ser mera coincidência? Parecia um menino de doze anos em frente à primeira namorada, coração acelerado, mãos suadas.

Continuei olhando para ela e falei quase que sem pensar.

– Comprei uma foto sua há uns trinta anos, mais ou menos… Acredita nisso?

Ela tocou minha mão.

– Sim. Achei você.  Finalmente.

Naquele instante eu estava completamente desnorteado. Conhecia aquela mulher, como se fosse a vida inteira.

Esticou o braço e acariciou meu rosto.  Peguei sua mão e instintivamente a beijei.

Que nome você tem agora? Ela perguntou

– Leônidas.

 Ela sorriu. Recompôs-se e seus olhos ficaram atentos em mim, como se estivesse medindo minha compreensão dos fatos.

– As coisas continuam do mesmo jeito meu amor. Não há trégua com essas coisas. Estamos em um impasse. Eles recuaram em nosso último ataque, mas tomaram nova posição e nos bloquearam.

– Não consigo entender – disse.

Ela sorriu.

– Não tem importância. Você vai entender em breve. Vai se lembrar do que aconteceu, se lembrará de tudo. O bloqueio, agora que estamos em contato, vai desaparecer.

Eu ia falar algo. Perguntar que bloqueio, mas ela se levantou, seus olhos tinham se estreitado e mostravam uma clara apreensão. Olhou-me e disse para que a esperasse ali e saiu rapidamente, quase não consegui acompanhá-la com o olhar.

Foi tão rápido, pensei.

Fiquei meio tonto com a situação por alguns segundos. É claro que era uma brincadeira. Peguei a tulipa, que de tão gelada, escorria a água condensada em sua parte exterior. Tomei um grande gole do chope e com surpresa percebi que dois homens jovens estavam em pé à minha frente.

O primeiro, de estatura menor, tinha aparência jovial, talvez pelas roupas que usava. Vestia-se em um estilo gótico, calça de couro e camisa sem mangas preta com a cabeça raspada e uma argola pequena no nariz, me olhava com uma raiva incontida. O alto, devia ter fácil um metro e noventa e cinco de altura, cabelos negros bem cortados, muito forte, aparentava ser fisiculturista, vestia calça e camisa social e um grande anel de ouro na mão direita com uma pedra negra.

O maior sentou à mesa enquanto o outro rondava como um cão feroz e observava as dezenas de pessoas que se movimentavam pela praça de alimentação. Claramente procurava alguém e eu intuitivamente sabia quem.

– E então? Lembra-se de mim? Disse passando o dedo indicador em uma pequena cicatriz perto do olho direito.

Ele sorria, zombeteiro, malicioso. Era estranhamente belo.

Não sentia medo dele, nem do outro. Estranho, logo eu que sempre fui medroso desde pequeno, sempre precavido de tudo.

– Lamento meu jovem, disse olhando-o. Nunca o vi antes.

Ele sorriu de novo e o sorriso se transformou em uma careta de ódio e quase que imediatamente em sorriso outra vez. Repentinamente olhou em meus olhos, profundamente, como se procurasse ler a minha alma. Não sei como, nem porque retribui o olhar, da mesma maneira, procurando algo em seu interior. Ele recuou.

Seus olhos agora mostravam desconfiança.

Sorriu. Parecia confuso de repente.

– Não se lembra mesmo, não é?

 O outro homem estava em pé ao lado dele.

– Ele não sabe, disse sorrindo e tocando levemente a mão do outro.

Voltou-se para mim, sério.

– Já a encontrou? Já a viu? Não olhou outra vez dentro de meus olhos.

O outro, o que se vestia como gótico, aproximou o rosto do meu e perguntou.

– Cadê a vaca? Se não disser onde ela está, arranco sua maldita cabeça outra vez.

Algo dentro de mim se incendiou. Por um instante tive medo  que a machucassem. Em menos de um segundo o temor desapareceu.

– Não sei quem é você meu jovem. Não gosto de ser ameaçado, nunca gostei. Não consegue respeitar os mais velhos? Deveria se envergonhar. Falei.

O maior o puxou, falou algo em seus ouvidos e ele se afastou alguns metros.

Afastou o cão de guarda, pensei. Quem são esses caras?  Será que tudo isso é uma brincadeira de mal gosto de alguém? Ainda olhei o cão afastado por alguns momentos e quando me voltei o maior me observava.

– Nunca pensei em encontrá-lo outra vez, ainda mais como um velho, falou me olhando.

– Sei que sempre lutamos de lados opostos, mas espero que de agora em diante possamos ser amigos. Sorria amigavelmente.

– Sei que posso fazer muitas coisa para te ajudar – continuava a sorrir. – Dinheiro? Jovens mulheres? O que você quer?

Era extremamente convincente e por um instante me tentou. Se eu fosse mais jovem, talvez tivesse acreditado. Ele me tentava com propostas de amizade, dinheiro, mulheres.

– Quero que vá embora meu jovem e me deixe em paz. Acredito que se isto não for uma brincadeira de mal gosto, você e seu amigo, o cão feroz, são loucos.

Me olhou por longos segundos como se procurasse saber se eu falava a verdade.

– Não se lembra mesmo não é? Ainda está bloqueado, seu velho asqueroso. Disse me olhando, enquanto bebia meu chope, ainda gelado. Um flagrante desrespeito, um desafio talvez?

– Nós vamos expulsar vocês, filhos da luz, vamos exterminar a todos vocês – ele estava zangado agora – você é digno de pena, protetor. Renascer e passar por uma vida breve sem ter feito nada. Realizado nada. Uma vida medíocre – continuou ele falando, agora sério, me olhando nos olhos, de longe.

– Sabia que você foi temido pelos filhos da escuridão?   – Ria zombeteiro.

– O protetor de Mariel! Você é nada, nem vale a pena matá-lo.

O cão aproximou-se e falou alto que a tinha visto se dirigindo para o pátio do estacionamento.

O maior olhou para mim e falou com desdém.

– Morra como o que você é.

Dezenas de pessoas olhavam os dois homens, pareciam ter um medo inconsciente deles, então eles mostraram suas verdadeiras faces. As pessoas na praça de alimentação entraram em pânico, gritos e  pessoas correndo para todas direções, apavoradas, pisoteando as que caiam, um caos. Essa era a intenção, pois eles eram os seus mensageiros do terror.

O mais alto saiu seguindo o cão feroz, dirigindo-se para o estacionamento, nem olhando para traz.

Levantei-me também, apavorado com a cena. Uma leve tontura passou em minha cabeça. Foi o chope pensei. Dois ou três goles? Em poucos segundos a praça estava vazia, exceto pelos que estavam feridos, jogados no chão.

Fui em direção ao estacionamento, passagens irreais passavam pela minha cabeça. Na paisagem surreal a imagem de um homem em um espelho enorme de cristal de parede inteira. Aquele era eu? Sim! Uma sala enorme, dezenas, centenas de homens e de filhos da luz estavam ali. Olhei do lado de fora e havia milhares deles até onde a vista alcançava.

No estacionamento mal iluminado e com espaços vazios entre os carros, o cão feroz e o grandão cercavam Mariel, um de cada lado. Traziam facas nas mãos. Naquele instante eu soube quem era Mariel  e também o que eram os dois homens.

O cão feroz atacou, a faca em riste. Mariel se esquivou e socou a cabeça dele de lado, desequilibrando-o. Ela deu um passo atrás.

Eu me aproximei lentamente, novas visões enchiam minha mente, lembranças de fatos que aconteceram em uma vida, em uma guerra surda para os homens, uma guerra sem fim. Lembranças de vidas que vivi, das mortes que sofri, de uma mulher, uma das que eram chamadas filhas da luz. Lembranças de Mariel.

O maior a havia segurado pelo pescoço e tentava esfaqueá-la. Ela segurava braço dele com as duas mãos, mas estava sendo estrangulada.

Mesmo com o corpo fatigado pela idade corri, sabia quem eu era e o que devia fazer. Quando ele percebeu minha presença era tarde demais, o soco atingiu em cheio seu nariz e boca, com uma força que eu nunca tive, fazendo com que ele soltasse Mariel e caísse meio sentado meio deitado.

– Vejo que recuperou a memória e também sua força, consorte de anjo.  – Disse com os olhos brilhando de ódio,  o cão feroz à sua frente.

– Nem tudo, demônio. Mas sei quem você é, e sei de meu juramento.

Mariel estava ao meu lado, imponente, poderosa, linda, como o são os anjos, ela me sorriu. Seus lábios se movimentaram, não emitiram som. Sorri. Ela me passou escondido um pequeno punhal prateado enquanto passava por trás de mim.

Cão feroz veio em minha direção, faca em riste, uma rapidez incrível. Claro que eu não conseguiria desviar, não nesta idade. O que ele não sabia é que eu tinha uma surpresa para ele. Fiquei meio de lado quando recebi o seu golpe, levantei meu braço direito na altura de sua cabeça e enfiei o punhal prateado em seu olho direito.

O riso morreu em seus lábios, o grito, foi penoso. Mesmo para um demônio superior como ele a dor de ter a arma de um anjo enfiada em sua cabeça era insuportável. O maior estava se preparando para saltar sobre Mariel quando escutou o grito. De imediato mudou de ideia, e correu na direção de seu companheiro que cambaleava para traz, xingava e amaldiçoava.

– Maldito, disse o maior. Da próxima vez eu arranco sua cabeça, sem pestanejar.

Olhei o mais firme e sério que pude. Tinha dificuldade para respirar.

– Não fique zangado, demônio. Fiz exatamente o que sugeriu, vou morrer como o que eu realmente sou.

Ele estava visivelmente surpreso com minhas palavras. Falou alguma coisa em uma língua ininteligível e sumiram em um instante.

 

Fui abaixando devagarzinho até deitar. Mariel sentou comigo em seu colo. A arma das trevas tinha cumprido seu propósito. Estava afogando em meu próprio sangue,  pessoas chegavam aos poucos e olhavam, mas principalmente para Mariel, estavam extasiados com sua figura fulgurante. Ela estava concentrada em mim e me acariciava o rosto. Quando olhei para seus olhos, ela novamente moveu os lábios. Sorri outra vez.

– Eu também.

 

 

Fim

 

Um conto de Swylmar Ferreira em 08/12/2012.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Informação

Publicado em 13 de dezembro de 2012 por em Contos Fantásticos.

A saga de um andarilho pelas estrelas

DIVULGAÇÃO A pedido do autor Dan Balan. Sinopse do livro. Utopia pós-moderna, “A saga de um andarilho pelas estrelas” conta a história de um homem que abandona a Terra e viaja pelas estrelas, onde conhece civilizações extraordinárias. Mas o universo guarda infinitas surpresas e alguns planetas podem ser muito perigosos. O enredo é repleto de momentos cômicos e desconcertantes que acabam por inspirar reflexões sobre a vida e a existência. O livro é escrito em prosa em dez capítulos. Oito sonetos também acompanham a narrativa. (Editora Multifoco) Disponível no site da Livraria Cultura, Livraria da Travessa, Editora Multifoco. Andarilho da estrela cintilante Por onde vai sozinho em pensamento, Fugindo dessa terra de tormento, Sem paradeiro certo, triste errante? E procurar o que no firmamento, Que aqui não encontrou sonho distante Nenhum outro arrojado viajante? Volta! Nada se perde com o tempo... “Felicidade quis, sim, encontrar Nesse vasto universo, de numerosas, Infinitas estrelas, não hei de errar! Mas ilusão desfez-se em nebulosas, Tão longe descobri tarde demais: Meu amor deste lugar partiu jamais!”

Divulgação

Bom dia.
Aproveito este espaço para divulgar o livro da escritora Melissa Tobias: A Realidade de Madhu.

- Sinopse -

Neste surpreendente romance de ficção científica, Madhu é abduzida por uma nave intergaláctica. A bordo da colossal nave alienígena fará amizade com uma bizarra híbrida, conhecerá um androide que vai abalar seu coração e aprenderá lições que mudará sua vida para sempre.
Madhu é uma Semente Estelar e terá que semear a Terra para gerar uma Nova Realidade que substituirá a ilusória realidade criada por Lúcifer. Porém, a missão não será fácil, já que Marduk, a personificação de Lúcifer na Via Láctea, com a ajuda de seus fiéis sentinelas reptilianos, farão de tudo para não deixar a Nova Realidade florescer.
Madhu terá que tomar uma difícil decisão. E aprenderá a usar seu poder sombrio em benefício da Luz.

Novo Desafio EntreContos

Oi pessoal, o site EntreContos - Literatura Fantástica - promove novos desafios, com tema variados sendo uma excelente oportunidade de leitura. Boa sorte e boa leitura.

Publique aqui.

Convidamos você que gosta de escrever contos e mini contos dos gêneros de ficção científica, literatura fantástica e terror a nos enviar seus trabalhos para serem publicados neste site, com os créditos ao autor, é claro.
PARTICIPE!

Divulgação

Prezados leitores e colegas. Faço uso do post para divulgar os trabalhos de nosso colega Luiz Amato no site Wattpad.

Literatura fantástica, ficção cientifica, terror

Espaço dedicado à escrita e leitura deste gênero literário.

Estatísticas do blog

  • 263.111 hits

Arquivos

Categorias

Publique aqui.

Convidamos você que gosta de escrever contos e mini contos dos gêneros de ficção científica, literatura fantástica e terror a nos enviar seus trabalhos para serem publicados neste site, com os créditos ao autor, é claro.
PARTICIPE!

Divulgação

Prezados leitores e colegas. Faço uso do post para divulgar os trabalhos de nosso colega Luiz Amato no site Wattpad.
%d blogueiros gostam disto: