Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Ainda meio sonado, Joãozinho, sentado em um banco de madeira, observa o rubro entardecer de mais um dia. A quente noite anterior havia sido um suplicio para ele, com pesadelos horríveis que estragaram completamente seu sono.
– Papai? Diz voltando a cabeça e olhando para traz. – O que é o Natal?
Luiz, ainda estava deitado encostado na parede para se proteger dos ventos quentes que assolavam as noites naqueles tempos, toma um susto com aquela pergunta, se levanta e vai na direção do braseiro ainda fumegante da noite anterior e pensa por algum tempo antes de responder.
– São historias que seu avô me contava de tempos atrás – diz olhando de soslaio o menino sentado na borda da laje velha e perigosa.
– O vovô gostava de contar histórias pra mim, pena que ele foi embora, né papai?
Luiz se aproximou do garoto de seis anos, ajeitou nos ombros dele um trapo de pano que a mãe havia achado embaixo de alguns escombros, dias atrás. Seus olhos lacrimejaram quando se lembrou do pai. Mesmo assim continuou falando.
– Seu avô dizia que uma vez por ano tinha uma festa em quase todos os lugares desse mundo onde as pessoas, as famílias, se reuniam para se divertir, conversar e comer. Ele sempre dizia que existia comida sobrando e que as pessoas compravam essas comidas e bebidas e se divertiam, ouviam musica e eram felizes. Dizia que as pessoas ficavam felizes dando presentes e recebendo presentes, umas das outras. Mas quem falou para você sobre isso?
Joãozinho não olhava para ele, ao contrário, olhava para frente, para a cidade, as ruas, os prédios. Ao menos o que havia sobrado. Balançava as pernas, sentado na borda da laje, um perigo, mas o que naqueles dias não representava risco?
– Saia já daí menino, disse uma voz feminina. Luiz, tire ele dali, se cair lá embaixo pode se machucar ou coisa pior.
Luiz olhou para Márcia que carregava algo nas mãos, comida. A barriga grande da mulher evidenciava a gravidez de seu quinto filho. Ele se levantou com dificuldade e pegou o menino e o levou para um canto do cômodo que tinha a cobertura de uma pequena laje, toda infiltrada por água em cima. Aquele foi o único filho deles que sobreviveu ao frio, a fome, as tempestades, ela tinha razão em protegê-lo.
Joãozinho apenas olhou para a mãe, fez um sorriso jocoso e cutucou o pai.
– Essa história está naqueles livros velhos que o senhor carrega? Disse olhando o pai. Ou está naquele vidro estranho da mamãe?
Luiz estava cansado. Amanhecera assim aquele dia, devia ser o calor, pensou. Mesmo assim queria continuar a conversar com o garoto, precisava disso.
– Não, mas quem falou para você sobre isso?
– Foram aqueles moços que vieram aqui ontem e que trouxeram aquele bicho morto pra gente comer. Eca, né pai?
Luiz olhava o rosto do filho se contorcer em uma expressão mista de nojo e riso. No dia anterior um homem e uma mulher vieram até eles com comida e trouxeram um pássaro que haviam caçado para comer. Ele os conhecia há tempos e eram o que mais se aproximava de uma expressão que seu pai usava às vezes, vizinhos.
Joãozinho deu um meio sorriso de criança arteira e continuou.
– A mulher falou que hoje é dia de Natal e que é um dia especial.
Sorriu para a mãe que se aproximava lentamente.
– Ela me deu isso. Mostrou para o pai uma pequena bola de gude de vidro colorida, enquanto sorria feliz. Jogou na laje e a pequena bola correu saltitando pelas pedrinhas e terra até bater na parede e parar.
– Poxa! Legal! Disse o menino, olhando nos olhos da mãe que o segurava no colo naquele momento.
– Eu gostava quando o vovô contava as historias de antigamente, você pode contar pra mim umas historias também papai? Perguntou Joãozinho ainda embrulhado nos trapos.
Luiz pegou o menino do colo da mãe e sentou com ele ao seu lado, disposto a contar o que se lembrava sobre as historias do seu pai. Olhou para o céu e viu nuvens carregadas. Tempestades, pensou. Precisariam descer em breve para um lugar seguro.
– Meu pai dizia que quando era criança, em nosso mundo existiam milhares de cidades com bilhões de humanos como nós vivendo nelas. Segundo ele o mundo prosperava, crescia a cada dia. Tinham homens que planejavam e construíam prédios, cidades, outros que estudavam modos de curar enfermos. Existiam máquinas que voavam nos céus, ele os chamava de aviões, alguns levavam as pessoas a todas as partes do mundo, máquinas que flutuavam sobre o mar, de todos os tamanhos, de pequenas até gigantescos, eram os navios, eu já lhe mostrei as imagens nos livros.
Márcia sentou-se perto deles e deu uma parte da comida para cada um. Ajeitou-se ao lado do marido e ficou quieta por uns segundos.
– Se ainda existissem aquelas pessoas que curavam as outras, seu avô talvez ainda estivesse aqui conosco, disse Márcia com pesar. Sempre gostara muito do velho, que a havia acolhido quando criança, após o desastre que vitimou sua família. Olhou para Luiz e virou a cabeça rapidamente.
Joãozinho balançou positivamente a cabeça, interessado. Perguntou olhando para Luiz.
– O aviões são iguais a esses trecos que vemos hoje no céu, papai?
– Não! Disse Luiz rápido.
– Esses objetos que você vê eram naves invasoras, meu filho.
Joãozinho balançou de novo a cabeça. Conhecia o pai e sabia que aquele tom de voz não admitia perguntas. Mesmo assim pediu para que Luiz continuasse.
– Aconteceu em um dia de Natal. Ele me contou que o mundo ficou maluco de repente. Todos fugiam desesperados para as partes mais altas do planeta, houve terremotos e maremotos que tornaram a vida deles muito difícil. Haviam sido causados pelo povo da estrela azul mais brilhante do céu, Siriús, da constelação Alpha Canis.
– Eles haviam chegado de repente, centenas e centenas de naves gigantescas surgiam nos céus, as seis maiores não podiam descer na atmosfera mas mesmo assim eram visíveis a olho nu. Seu avô dizia que a população ficou em alvoroço pois quando os governos descobriram as naves vindo na direção do nosso planeta, quase foi tarde demais. Disse que os governantes da época tentaram contato com os invasores, mas nada conseguiram. Não tínhamos defesa, e eles sabiam disso quando desferiram o primeiro ataque. Destruíram centenas, milhares de cidades. Mataram centenas de milhões dos nossos e muitos outros foram levados como escravos, ou coisa pior. Era obvio que os nossos tentaram se defender, mas nossas armas pareciam ineficientes contra uma tecnologia muito avançada.
Márcia estava inquieta, não gostava quando Luiz começava a rememorar aqueles fatos. Eram desagraveis para ela.
– Isso é historia, disse olhando para o filho com um sorriso no rosto pálido. Olhou para o marido e perguntou se tinha realmente que contar sobre aquilo.
Joãozinho estava aceso naquela hora, talvez fosse o calor. Olhou para a mãe e pediu que deixasse o pai continuar.
– Sua avó naqueles tempos era professora universitária, fazia pesquisas com lasers e um outro tipo de concentração de luz negra e tinha contato com diversos centros de pesquisa. Foi quando soubemos que os governos, em uma tentativa desesperada haviam conseguido colocar em segurança centenas de cientistas e transferido parte de seus equipamentos para laboratórios secretos. Lá ela conheceu seu avô.
– A primeira resposta veio quase um ano depois da invasão inicial, de uma arma desenvolvida nesses locais, chamada de raio negro, usava uma tecnologia de aproveitamento de energia dos vulcões, que minha mãe chamava de energia geotérmica. O interessante é que foi justamente em dia de Natal. Coincidência?
Márcia estava quieta. Estava insatisfeita e constrangida.
– Não acredito em coincidências, disse ela olhando para a noite.
– Naqueles tempos quatro das naves mães estavam em orbita e ninguém jamais imaginou que aquelas armas tivessem um poder de destruição como aquele. Nenhuma nave mãe sobreviveu. Eles tentaram revidar atacando as encostas dos vulcões onde as armas haviam sido montadas, conseguiram algum sucesso, mas as armas foram usadas contra as naves menores também e depois, infelizmente contra as bases e cidades que eles haviam construído em nosso mundo. Foi uma carnificina de ambos os lados.
Joãozinho estava serio, seu rosto de criança evidenciava medo.
– Acha que eles vão voltar? Perguntou olhando para o fogo crepitando agora na noite escura.
Luiz ficou em silencio. Olhou para a mulher, aconchegou-a em seu colo e a abraçou, dando um beijo em seu rosto. Ela respondeu ao menino.
– Não meu filho, eles não vão voltar. Ficaram com medo das armas desenvolvidas, muitas delas tomadas deles mesmo.
– Que bom que acabou né, mamãe?
Ela sorriu.
– O que aconteceu depois, perguntou Joãozinho tendo um arrepio.
Luiz ainda estava pensativo, mas tinha que responder as perguntas do filho, afinal de contas ele tinha que saber sua origem, quem ele era e porque sua família vivia isolada das grandes cidades.
– Os dois povos ainda lutaram por algum tempo e depois fizeram um acordo de paz. Afinal uma das raças era nativa e a outra estava presa, abandonada aqui, pois as poucas naves que não haviam sido destruídas não eram construídas para espaço profundo. Viagens espaciais, entende?
– Sim papai. Foi aí que você conheceu a mamãe?
Márcia estava sorrindo, aconchegada no marido, segurando uma das mãos dele e a outra acariciando o ventre. Luiz respondeu.
– Mais ou menos. A nave em que a família dela estava caiu perto da cidade onde nós morávamos e poucos deles sobreviveram, menos de uma centena. No inicio foram tratados como prisioneiros e depois com o convívio, percebeu-se que a convivência era possível e a maior parte resolveu continuar vivendo conosco. Seus avós acharam uma criança, uma menina e cuidaram dela como se fosse deles. Nós crescemos juntos e a amizade acabou se transformando em sentimentos fortes e veio o amor. Você é o resultado do nosso amor.
Luiz estava lutando contra o cansaço. A vida fora das cidades era dura e difícil, mas eles não eram bem aceitos por nenhum dos lados. O mais curioso é que cada vez mais casais se formavam entre os dois povos.
– Você nasceu também no dia do Natal, seis anos atrás. Disse Luiz.
– Essa data marcou nossa família.
Joãozinho ainda estava sério, era muito inteligente e possuía uma memória fantástica para uma criança pequena.
– Aquele homem ontem disse que eu sou como a filha deles, que eu sou hibrido. Não gostei desse nome mamãe.
Deitou a cabeça no colo da mãe e pôs-se a acariciar seus braços, brincando nos desenhos tigrados que ela tinha por todo o corpo.
– Como é seu nome de verdade mamãe?
– Mahr-tchia.
Joãozinho ficou observando seus pais dormindo, por um tempo antes de se deitar encostado neles. Não entendia o significado das palavras que eles conversaram com os vizinhos na noite anterior, tais como ódio, intolerância, racismo, egoísmo, vaidades, vícios e outras que não prestou atenção. Ficou pensando se no futuro, em algum Natal, quem sabe essas coisas acabassem e todos pudessem viver como irmãos, em paz de verdade.