Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
A sala quente e úmida, sem janela faz o suor me escorrer pela face, descendo pelo pescoço nu. Passo o pequeno lenço de algodão antes que ensope meu vestido. O único móvel além de três cadeiras é uma mesa de metal simples, mas com os pés parafusados ao chão que lhe dá certa estabilidade. Sentada, olho ao redor na sala. Os dois homens à minha frente esperam, espreitam, desconfiam. Tenho medo agora. Não como o que eu tinha antes, não o pavor mesclado ao amor, ao prazer da companhia tão adorada como o que vivi com meu mestre.
Questionamentos estranhos. Querem saber quem eu sou, de onde vim, mas não falarei nada. Não quero.
Não! Não quero que se zanguem comigo.
Não vou lhes contar a minha história, ela é simplória. Ao invés disso contarei a história do meu mestre, tal qual ele me contou e como vivemos até aqui.
Ele nasceu a muitos e muitos anos quando nosso país ainda era um reino. Viveu sua infância e adolescência na capital cercado por sua família e amigos. Disse-me que tinha oito irmãos. Seus pais tinham condição de vida muito boa, com uma fazenda e outros meios de capital, o que para a época era raro. Quando tinha dezessete anos ele e mais o irmão mais velho foram mandados para estudar em uma das principais cidades da Europa. Então todo o continente entrou em um período muito conturbado com guerras surgindo a todo o momento.
Eles haviam conseguido se formar e seus pais queriam que voltassem para casa, mas ele e o irmão resolveram pegar em armas, foi quando aconteceu o pior. O irmão morreu na defesa da capital ele ficou arrasado.
Após o fim dos conflitos, resolveu ficar naquele país, arrumou trabalho e depois de poucos anos, tornou-se professor na universidade onde estudou. Era dado ao consumo de rum e vinho em grandes quantidades em tabernas nada recomendáveis perto do porto. Tinha uma boa vida e era respeitado na cidade, mesmo todos sabendo que havia nascido na colônia.
Uma noite, quando vagava pelas ruas semi desertas foi abordado por dois ladrões que o roubaram e o deixaram caído na sarjeta. Se levantou e deparou com uma figura, um homem muito bem vestido que o reconheceu como um dos professores e o levou em um coche até sua casa. Na época morava em uma estalagem onde alugava um quarto.
Mas aquela estava fadada a ser a noite em que sua vida tomaria rumos completamente diferentes.
Mal saltou do coche e uma mulher em um vestido vermelho, era a única coisa que meu mestre se lembrava dela, o abordou. Disse que queria subir com ele para o seu quarto e ele já ébrio, concordou. Ela se jogou sobre ele na porta, de inicio com beijos e carinhos, indo até a cama, então o dominou e atacou. Ele ainda pode sentir seu hálito, seu toque frio, as unhas cravadas na sua carne e por fim os dentes pontiagudos em seu pescoço.
Acordou quando abriram à força a porta do quarto em que se encontrava. Era noite e ele estava sujo e maltrapilho, foi seu renascimento.
Havia muitas vezes escutado homens nas tabernas falando sobre pessoas que morriam e depois voltavam como criaturas da noite. Acontecera com ele. Nunca mais viu a estranha mulher e nem o homem que lhe levou para a estalagem aquela noite.
Mudou-se para outras cidades na Europa, teve outros ofícios e viveu por lá muitos anos, até que no início do século passado ele retornou para casa. Procurou às escondidas sua família, apenas para descobrir que não existiam mais. Seus sobrinhos netos foram vitimas de uma febre que abateu a todos, ficando a propriedade abandonada.
Ele era um homem de muitas posses e logo comprou sua antiga residência e lá morou muito tempo. Sempre que sua sede eterna o atacava ele saia às noites para saciá-la. E assim foi por muitas décadas até o dia em que me encontrou.
Eu estava em uma boate com uns amigos quando reparei em um homem de meia idade que me olhava e logo se aproximou para conversar. Ele era muito bonito, charmoso, eu era jovem e estava encantada que ele tivesse reparado em mim e estivesse me cantando. Chamou-me para ir à sua casa em um condomínio fechado do outro lado da cidade e eu, claro, concordei. Despedi-me dos amigos e fomos embora. Ainda dentro do carro, meio tonta com a bebida, reparei um corte no meu pulso, que ele passou a beijar, sugar. Era madrugada quando entramos na casa e ele me mostrou uma lâmina, grande, fina, afiadíssima e disse para eu não me preocupar, que ele cuidaria de mim. Passou a arma no meu pulso e bebeu do sangue que saia, eu não conseguia me mover. Ainda hoje não sei por que não me deixou morrer. Foi a noite em que eu renasci.
Descobri que ele tinha em nossa cidade quatro moradas, onde se escondia da luz do sol, tendo sempre um lugar perto para descansar. Eu estava curiosa, queria saber tudo sobre ele. Naqueles dias conversávamos muito, ele parecia gostar, contava historias, suas aventuras, os lugares por onde passou, pessoas que conheceu.
Um dia perguntei se ele conhecia outros como ele. Ele respondeu que sim, tinha conhecido cinco, fora a estranha mulher que o havia mordido. Três quando ainda vivia na Europa, e dois aqui.
Ele sabia que dois deles que moravam na Europa haviam morrido. Um fora descoberto e morto por habitantes de uma pequena cidade perto do mar e o outro, havia desaparecido. Simplesmente não existiam mais vestígios dele. O terceiro era uma mulher, mais antiga que ele. Haviam se encontrado duas ou três vezes antes e feito amizade. Um dia quando estava na cidade onde morava ela o encontrou e disse que ele fosse embora, pois um perigo enorme pairava sobre os de sua espécie.
Ela seguiu para outro continente e ele veio para cá. Percebi que ele ficava desconfortável quando conversávamos sobre aquele fato.
Perguntei se era verdade se existiam outros seres que se alimentavam de humanos, e sua resposta foi afirmativa, existiam criaturas que se camuflavam, misturavam-se aos humanos, uns com existência curta e outras seculares. Disse que havia encontrado algumas criaturas em suas andanças: lobisomens, bruxas, ogros, vampiros de almas e outros que nem sabia o que eram.
O tempo passou e me tornei cada vez mais dependente do mestre, fazíamos amor constantemente, passamos uma espécie de lua de mel, por assim dizer, maravilhosa.
Conseguíamos nosso sustento de muitas maneiras, comprávamos sangue de funcionários corruptos em hospitais ou entravamos escondidos e íamos aos refrigeradores com sangue e roubávamos.
Mas ele às vezes gostava de caçar.
Passamos a caçar juntos e eu, particularmente, ansiava isso. Fomos em um parque de diversão uma noite e quando saímos, ele viu um jovem alto, forte e me disse. Ele tem sangue suficiente para nós dois. Eu sabia que íamos abatê-lo, o seguimos até uma esquina e não o vimos mais. Achei que ele talvez tivesse entrado em uma casa ou em outro lugar. Continuamos procurando na noite até que encontramos outro jovem, esse um pouco mais fraco, corremos atrás dele, pelas ruas iluminadas por lâmpadas de vapor de mercúrio, ele era veloz e quando percebeu que estávamos muito próximos começou a gritar e o mestre o alcançou. Ele lutou desesperado, pelejando por sua vida, desferindo socos, pontapés. Escapou, eu o alcancei e o derrubei. Meu amo segurou com força, passou a lâmina no seu pescoço e o rapaz gritou outra vez, então com um soco quebrou-lhe o maxilar e bebeu seu sangue. Eu também bebi. Foi minha primeira caçada, minha iniciação.
Terminado o repasto deu inicio ao ritual da quase separação, onde o mestre cortava fundo o pescoço. Ainda continuávamos com sede, mas o dia chegava e nos apressamos para retornar a nossa casa.
Alguns dias depois, enquanto caçávamos achei que tinha visto o jovem, alertei o mestre, mas ele disse que eu era uma tola idiota e se foi. Parecia irritado, perturbado com alguma coisa. Fiquei desolada, estava faminta. Vi um cão vira-latas andando nas vielas, derrubando latas de lixo e fui caçá-lo. Corri atrás dele e o derrubei, ele me mordeu o braço, mas eu em resposta virei seu pescoço e mordi, bebi todo o sangue, como o mestre me ensinou e depois cortei sua cabeça, perambulei pelas ruas na madrugada até chegar a uma das casas do mestre, entrei me escondi no quarto sem janela e na escuridão total adormeci.
Tinha semanas que não via o meu amo, então uma noite ele voltou. Tinha ido a outra cidade, mudar os ares, disse-me. Estava mais alegre, e tinha ido me buscar, fomos para o aeroporto, ele comprou as passagens e viajamos de madrugada para outro estado. Ficamos por alguns meses em uma casa a beira do mar. Por um tempo foi bom, até que dois corpos foram descobertos nas areias da praia, o mar os devolveu, e a policia fazia constantes investigações, afinal o numero de desaparecimentos na cidade e no município vizinho cresceu muito. Apertavam o cerco e estavam desconfiados por estarmos em casa somente à noite, queriam saber onde trabalhávamos o que fazíamos. Voltamos.
Eu andava desconfiada havia tempo, tinha a sensação de estar sendo vigiada, seguida, resolvi que compraríamos nosso sustento de amigo do hospital, fiz a encomenda e levei para nossa casa principal. O mestre não reclamou. Tínhamos o suficiente para ao menos quatro meses, um bom estoque e ninguém sairia machucado, muito menos o mestre.
Como sempre ele cansou, disse que eu estava enlouquecida e que ia sair, caçar, beber sangue fresco. Queria sentir o prazer da caçada. Mesmo receosa fui com ele, deixamos o carro em uma rua no centro da cidade, sua presença imponente afastava os réles, os viciados e os malfeitores, todos saiam quando chegávamos.
Fomos a um bar na madrugada, tinha muita gente. O mestre se despediu de mim e foi procurar uma moça, disse para eu procurar o que fazer. Fiquei enciumada quando vi a moça, era loira, alta, com um vestido azul colado ao corpo. Eu os segui quando saíram e foram andar pelas ruas, até um dos esconderijos, ela entrou de bom grado. Subi também e ouvi os gritos, senti o cheiro do sangue e mesmo com a porta fechada, o urro dado por ele foi um aviso que desta vez não dividiria a presa.
Corri pelas ruas até o bar onde havíamos ido, mas não entrei imediatamente, fiquei pensando, exatamente no que não lembro. Quando dei um passo para trás pisei os pés de alguém. Um homem alto, jovem, forte, pele muito clara, cabelos e grandes olhos negros. Ele deu-me um sorriso. Era simplesmente lindo, fiquei sem ação. Poderia eu me encantar com outro homem, me perguntei. Fazer amor com outro sem ser o mestre? Ainda atordoada, pedi desculpas e fui para casa. Seu rosto não me era estranho.
Criei coragem para sair de casa só duas semanas depois, andava à noite pela cidade, shoppings, cinemas, teatros, bares, mas não procurei ninguém, muito menos o mestre, o último encontro fez com que eu me afastasse dele. Fiquei com medo.
Saí de um bar no inicio da madrugada e caminhei até o estacionamento, na esquina tinha uma confusão com ambulância e carros da policia. Uma jovem fora morta há pouco, teve o pescoço cortado. Uma testemunha ligou para a policia que chegou rápido, mas não o bastante. Ela estava morta.
O mestre! Sabia que era ele, tive medo outra vez. Esperei a retirada do corpo e dos carros para poder ir embora. Quando saia do estacionamento eu vi o jovem da outra noite. Ele conversava amigavelmente com os policiais. Seria ele a testemunha? Me questionei. Ele me viu e acenou para eu parar, estacionei um pouco a frente e ele deu alguns passos na minha direção. Resolvi sair do carro ainda desconfiada e começamos a conversar. Nos apresentamos, seu nome era incomum. Falamos alguns minutos e ele disse que gostaria de me ver outra vez, eu, alegre, concordei.
Ele marcou no dia seguinte à noite em um restaurante na beira mar, cheguei de praxe atrasada. Disse-me que eu estava linda. Sorri, tinha me esforçado. Ele pediu petiscos e bebidas, disse a ele em tom de brincadeira que preferia outra coisa, vermelha, densa. Ele pediu vinho. Eu ri.
Não comi nada e ele estranhamente não reclamou, sorria sempre. Conversamos por horas, queria saber sobre mim, onde tinha estudado, o que eu fazia, se trabalhava.
Perguntei se era policial. Ele riu. Eu estava muito animada.
Por fim fomos caminhar na praia até o pequeno píer mal iluminado, onde um pequeno poste sustentava uma lâmpada fraca. Ele me abraçou e me beijou. Tive receio dele sentir o meu hálito, normalmente fétido, mas o chiclete funcionou. Me dei conta que estava namorando, ele me acariciou alguns momentos até escutarmos uma risada.
Naquele momento fiquei gelada, sem ação, era o mestre! Estava de smoking e trazia na mão uma bengala sem cabo que eu conhecia muito bem. Ele riu mais alto ainda e perguntou se eu tinha um namorado novo. Disse que estava grato por levá-lo e me apresentou sua nova “aluna”.
Era a loira. Ainda estava com a mesma roupa, me lembrei que fiquei muito tempo com a mesma roupa e senti pena dela.
Disse ao mestre que o rapaz era apenas um amigo, que tinha sido só um beijo e implorei que ele o deixasse ir, que faria o que ele quisesse, mas apenas uma risada de escárnio eu ouvi. Ele falou que aquela era a minha ultima noite.
Eu estava perto do rapaz, mas eu não podia ver seus olhos, a iluminação não deixava. O mestre andou até ele e o agarrou.
Então o que eu nunca tinha visto aconteceu. O rapaz o repeliu com um empurrão.
A loira estava a uns cinco metros do rapaz e saltou sobre ele, faminta, sedenta, apenas para ter o pescoço quebrado como um simples palito de fósforo usado. O mestre pulou sobre ele o socou. Eu já o havia visto jogar homens maiores e mais fortes a mais de cinco metros de distância. Trocaram socos e chutes até que o mestre caiu atordoado.
Quem é você ele gritou. Olhou para mim e perguntou: quem é ele? O que é ele?
Enquanto se levantava o mestre pegou a bengala, na verdade uma sword cane, muito antiga que ele possuía e desembainhou a lâmina para que ficasse exposta, jogando ao chão a bainha.
Apanhou um objeto grande, parecendo um banco de madeira e jogou contra mim, eu não consegui me abaixar. Atingiu minha cabeça, fiquei tonta, deitada no chão.
Vi eles lutarem, o mestre hábil, forte com a espada na mão tentando rasgar, cortar, furar o rapaz que conseguia, por meio de movimentos rápidos se esquivar das estocadas dadas. Foi aí que percebi que o rapaz tinha algo na mão direita, uma arma que eu já tinha visto em museus antigos e em filmes. Era uma massa.
O cabo prateado e a massa dourada chamaram minha atenção, eu estava pasma. Estava tonta, vendo coisas, ele parecia ter asas, como pássaros. Vi então o mestre ser atingido uma, duas vezes e cair com a cabeça ensanguentada. Tentei levantar, apenas para cair de novo, estava fraca e enjoada.
O rapaz, estranho eu não lembrar o nome, se aproximou e me ajudou a levantar, acariciou meu rosto e sorriu. Ouvimos as sirenes e rotolights da policia. Quando olhei de novo havia desaparecido.
Meu mestre ainda movimentava os braços e me aproximei dele. Tinha sangue no rosto e me sussurrou apenas uma palavra antes de morrer.
Agora estou sentada aqui na sala com vocês me olhando como se me faltasse o juízo. Será que estou louca. Não. Apenas cansada.
Existem cadáveres comprovando que não foi um sonho. Vejo os dois se entreolharem.
– Não tenho mais nada a dizer a vocês.
Meu nome, o homem mais magro pergunta.
– Teresa, respondo.
Eles saem, mas a porta se abre novamente antes de fechar e o homem pergunta:
– Qual palavra seu mestre disse?
Fico parada, olho a mesa de metal e as algemas no meu pulso, ainda sinto as mãos do rapaz no meu corpo e o beijo.
– Caído.
Um conto de Swylmar Ferreira