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Eleuza tinha uma rotina bastante agradável, pelo menos para ela. Todos os dias, depois de acordar e fazer sua higiene pessoal, metodicamente arrumava sua bolsa, escolhia cuidadosamente a roupa que usaria naquele dia e saía de sua casa. Este pequeno ritual consumia geralmente suas duas primeiras horas da manhã.
Caminhava pela rua, no bairro do Apego, até o ponto de ônibus que pegava todos os dias para a repartição na prefeitura da cidade, onde trabalhava. O trajeto tranqüilo, quase sem congestionamento, para ela era uma benção. Morava com sua cunhada desde o falecimento do irmão. Morar com ela lhe deixava feliz, pois se conheciam desde meninas. Tinha também uma irmã, mas morava em outro Estado e a grande distância permitia apenas visitas ocasionais a cada dois anos, além do mais o cunhado e ela nunca se deram muito bem.
Tinha completado 52 anos no mês anterior e a aposentadoria chegaria em breve, não mais do que um ano e meio lhe dissera uma amiga antiga que trabalhava no setor de pessoal. O serviço da repartição era fácil, também depois de vinte e oito anos no mesmo serviço, não podia reclamar de muitas coisas. Se não fosse pelo tal de computador, que havia sido inserido no setor e largamente utilizado pelas colegas mais jovens, ninguém conseguiria resultados melhores, mas tudo ia bem. Das colegas, ela sabia que não tinha nada a temer. Marilia, Lúcia e Helga eram muito mais jovens e a Chefe, Dona Mara, era advogada e a responsável pela seção.
Mas nem tudo corria bem para Eleuza. Ela tinha dezenas de pequenas inimigas dentro do seu setor de trabalho. No princípio, quando as pequenas baratas francesas chegaram, era fácil se livrar delas. Alguns pisões ou umas batidas com folhas de papel enroladas resolviam. Depois de alguns anos nem mais os dias de desinsetização resolviam a praga em que se transformaram os pequenos insetos. Passava os dias em uma luta inglória com os pequenos seres, não que fossem perigosos, pois tais criaturas não vivem em esgotos como suas primas maiores, vivem em ambientes fechados, empoeirados e “sujos”, com excesso de papéis, sobrevivendo de migalhas e restos de comidas que as pessoas sempre deixam. A raiva não era recíproca, pois nunca nem uma das pequenas criaturas tinha tomado iniciativa de atacá-la, nem mesmo à qualquer das colegas ou até mesmo à chefe, que de quando em vez pegava no “pé de todas as meninas”. Não pensava muito nelas, mas o medo de levar alguma delas na bolsa para casa lhe assolara o coração mais de uma vez, para dizer a verdade, a preocupação era constante, mesmo sem se dar conta do fato.
Meses haviam se passado desde a declarada guerra aos pequenos insetos, e ela já havia ganho diversas batalhas, então numa tarde ensolarada de sexta-feira, sentiu-se mal. Foi uma forte dor de cabeça e Eleuza resolveu ir para casa, descansar para uma próxima semana de trabalhos. Mas nada ocorreu como planejara. Então pediu à sua cunhada que a acompanhasse ao médico na manhã de sábado. Quando chegaram ao hospital, a dor já praticamente havia passado. Entretanto, durante a consulta com a médica ela olhou profundamente para a cunhada e como se não acreditasse, desfaleceu.
Acordou em um lugar muito claro, com pessoas estranhas ao seu redor. Perguntou pela cunhada, que estava com ela na consulta, pela médica, mas todos desviavam-se das perguntas. Mais tarde ela foi levada para descansar em um lindo jardim que se perdia de vista, onde haviam inúmeras árvores frutíferas. Dezenas ou até mesmo centenas de pessoas passavam diante de seus olhos, vestiam roupas coloridas e exibiam em sua grande maioria um sorriso contagioso nos rostos alegres, não importando idade, sexo ou cor. Apesar de claro, o dia não estava calor nem frio e não sentia fome. Mesmo assim, comeu um cacho de uvas em uma parreira próxima e o sabor era melhor do que qualquer coisa que já experimentara na sua vida.
Outro fato chamou sua atenção. Os edifícios que tinha visto, apesar de serem numericamente poucos, eram gigantescos, tanto em tamanho como em largura, belos, com um design maravilhoso. Alguns faziam leves curvas em direção ao céu enquanto outros eram como grandes quadriláteros coloridos. Entre eles existia apenas o grande jardim com seus caminhos de pedra unindo os gigantescos edifícios. Nos jardins, entre as pessoas, havia pequenos animas e pássaros, coexistindo harmoniosamente.
Pareceu-lhe que caminhou durante dias. Estava encantada com o lugar e repentinamente percebeu que não queria mais saber sobre seus parentes e amigos e nem mesmo do trabalho que tanto gostava. Falou com diversas pessoas neste período e todas se sentiam como ela, leves e felizes.
Depois de algum tempo um jovem vestido com um terno verde bem claro, cor estranha para um terno, pensou ela, veio chamá-la para uma conversa no prédio principal, com alguns dos responsáveis. Era um prédio pequeno e baixo, com três andares, mas certamente o mais movimentado. Encaminhou-se com o seu acompanhante para uma sala grande onde dezenas de pessoas aguardavam um chamado para entrevista. Algumas estavam sisudas e em seu olhar havia raiva, em outras apenas desilusão, mas todas estavam acompanhadas por alguém que parecia ser o seu responsável.
Repentinamente viu uma jovem mulher que pareceu conhecida e seus olhos por um momento se cruzaram e então, quando ela resolveu levantar e ir falar com a moça, uma criança que estava com ela levou-a para uma das salas reservadas. Quando a viu sair novamente, seu sorriso era enorme e pareceu-lhe que dela emanava uma luz brilhante. De outra sala saiu outra mulher, mas estava em silêncio, via-se em seus olhos culpa e arrependimento. Ela passou, caminhando acompanhada por um homem muito idoso, e saiu de sua visão.
Eleuza ficou naquela sala, angustiada, esperando ser chamada, enquanto observava diversas pessoas entrando e saindo das inúmeras salas, algumas contentes, outras tristes e até mesmo duas ou três que foram conduzidas para fora ameaçando, mal dizendo os outros, e dizendo em voz alta que não se lamentavam do que haviam feito.
Neste momento tudo se tornara claro para ela, soube o porquê estava ali e o que acontecera e então seu acompanhante levou-a a numa sala pequena onde havia cinco cadeiras, dispostas em um círculo. Sentou-se à esquerda do jovem de terno verde. À sua direita estava uma senhora muito idosa de vestido branco, à sua frente sentava-se uma moça negra jovem, com cabelos cobertos por um lenço colorido da cor de seu lindo vestido. A última cadeira estava vaga e todos estavam em silêncio.
Quando ela tentou falar com o jovem do terno verde, ele pediu carinhosamente que ela tivesse paciência, pois o juiz estava chegando e que quatro perguntas lhe seriam feitas. Disse-lhe que as respondesse com seus sentimentos e que mentir, responder com meias verdades ou silenciar sobre qualquer delas não adiantaria, pois o juiz tinha o conhecimento da verdade.
Então entrou na sala um lindo menino, aparentando uns quatro ou cinco anos de idade, tinha os cabelos escuros e os olhos característicos dos orientais. Que lindo menino, pensou ela, e viu então que os outros sorriam para ele e um sentimento de respeito profundo tomou-lhe conta, ao perceber que ele era o juiz daquela sala. O menino lhe sorriu e disse para ela que cada um faria uma pergunta.
A primeira foi feita pelo jovem de terno verde, era simples e direta e ela respondeu com grande satisfação, pois se tratava da crença que professava.
A segunda foi feita pela senhora idosa, versava sobre família, fraternidade e o convívio que teve por longos anos com sua mãe e seu pai. Foi uma resposta repleta de paixão, pois sempre amara seus pais e quando de seus falecimentos, uma tristeza enorme apossou-se dela. Falou dos irmãos, cunhada, sobrinhos e sobrinhas e até mesmo do marido da irmã.
A terceira pergunta foi feita pela jovem dos cabelos cobertos pelo lenço colorido, tratava-se dos amores que tinha tido e os motivos de sua desistência de uma vida conjugal e filhos. Estava pensando na dificuldade dos questionamentos e esta pergunta era muito difícil de responder, mas mesmo assim ela começou com calma, expondo seus medos, angústias e na falta de confiança em si mesma. Refletiu sobre os dois homens que amara verdadeiramente, na falta de amizade que o primeiro demonstrou e no desmerecimento de confiança por parte do segundo.
Até aquele momento conseguira responder as questões, mas a dificuldade da quarta pergunta a deixou zonza. O jovem do terno verde levantou-se e lhe trouxe um copo com água, que ela bebeu lentamente, saboreando até o final.
A última pergunta foi feita pelo menino, a mais simples de todas, a mais direta, a de mais fácil compreensão e, apesar de tudo, a mais difícil de responder. Como você sabe, disse ele, todos os seres viventes são criaturas do Senhor, ao que ela respondeu com um aceno afirmativo de cabeça. Então, continuou a criança, – Porque você matou todas aquelas baratinhas indefesas?
Seus olhos corriam entre todos que estavam naquele círculo. Tentava responder, mas não conseguia uma resposta verdadeira. Sua angústia aumentou, pois não conseguia pronunciar ou articular uma palavra em resposta. Começou a chorar desesperadamente e então, após se acalmar, olhou ao redor e desmaiou.
Acordou com um gosto horrível na boca. Seus olhos estavam clareando e ela pode ver sua cunhada sentada a seu lado. A mulher se levantou e foi até a porta. Ainda estava zonza, quando sua médica chegou e lhe disse que após o desmaio foi mantida desacordada, até que exames minuciosos fossem realizados. – Constatamos que um pequeno coágulo se formou no cérebro, mas com o devido tratamento se dissolverá e ficará bem, disse-lhe a médica.
No outro dia foi para casa com a cunhada. Ainda tinha mais dois dias de licença para descansar e aproveitou para pensar naquele estranho sonho, passando horas e horas refletindo nas perguntas, principalmente na última.
Sabia que ia voltar ao trabalho, mas de sua mente não conseguia apagar a imagem daquela criança e da expressão ao mesmo tempo triste e curiosa ao formular a pergunta. Aquela lembrança a acompanharia até o final de seus dias.
Um conto de Swylmar Ferreira