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A flor do hibisco amarelo


hibisco amarelo 1

Ainda afastada pelas fitas amarelas e pretas do corpo de bombeiros, Lívia observa o que um dia foi uma casa, mais precisamente a sua casa. As colunas de fumaça que teimam em subir dos destroços apenas aumentam sua angústia e alimentam o medo. A chuva, que caía sem parar desde a madrugada, aumenta de intensidade fazendo com que ela olhe o céu cinzento, vislumbrando um risco de luz provocado por relâmpagos acima de sua cabeça. Automaticamente começa a contar, como seu marido havia lhe ensinado: um, dois, três, quatro, e o barulho do trovão ribomba alto assustando todos que estão no rescaldo do incêndio, quer estejam trabalhando, como os bombeiros e policiais, quer sejam apenas curiosos, como os poucos transeuntes ou vizinhos que saíram de suas casas no final daquela tarde. Lívia observa, torce e reza.

Os policiais do outro lado da rua parecem conversar com os vizinhos das casas próximas. Lívia os vigia de longe, sabe que as perguntas são sobre ela … e Bel.

O nome dele, Bel. Só de lembrar, as lágrimas teimosamente desabam de seus olhos e uma sensação de perda envolve seu peito, fazendo com que seu coração dê um nó.

Ouvir seu nome falado em voz alta a retira de seu devaneio.

– Sra. Van Tiesel, correto? Lívia Van Tiesel – pergunta o homem com colete da policia civil à sua frente.

Lívia ouve a voz do homem que naquele instante parece-lhe tão distante quanto um chamado do outro lado do mundo. Procura se recompor e aperta mais ainda o vaso de flor contra o peito.

– Sim, sou eu. Sou a sra. Van Tiesel – responde olhando o homem careca e a mulher loira, ambos de colete da policia civil – sempre fui.

Os policiais se olham.

– O Sra. tem onde ficar? A casa de algum parente aqui na cidade? Pergunta impacientemente a policial que anotava alguma coisa no celular.

– Sim. Tenho onde ficar, por quê?

A policial loira sorri, Lívia percebe que a impaciência inicial da mulher havia passado.

– Não pode ficar na chuva Sra. Van Tiesel, não pode ficar aqui na rua esperando. As paredes externas da casa desabaram e tudo ruiu. Os bombeiros estão fazendo o rescaldo e procurando por seu marido, mas a previsão de término é para amanhã, aí saberemos quem estava na casa.

O policial a olha de novo: – Tem certeza que seu marido estava só? Vizinhos disseram ter ouvido dois homens discutindo alto.

– Quando saí de casa pela manhã, Bel pediu que fosse buscar uma de suas flores premiadas na exposição. Estava na mostra que terminou ontem na praça da prefeitura – disse mostrando o vaso decorado ainda em seus braços – uma flor de hibisco amarela.

– Qual o negócio de seu marido?

– Construção – disse ela – uma empresa de construção. Flores são seu hobby.

– Onde é o local que pode ficar? Nós a levaremos lá – A policial demonstrava preocupação.

Durante o trajeto até o apartamento onde morou antes de casar há oito anos, Lívia ainda responde algumas perguntas feitas pelos policiais, escuta conversas estranhas entre eles, mas o que lhe chama mais a atenção é a cidade. Outrora sempre bela, cativante e colorida, estava estranhamente cinza, descolorida e triste. Ela olha pela janela do carro e sente apenas amargura.

Lívia entra no prédio indo direto aos elevadores e marcando o sexto andar. Abre a porta do apartamento, deixa o vaso com a flor em cima do aparador perto da porta e vai em direção à janela da sala. Abre as janelas e cortinas, permitindo ao ar fresco renovar o interior e olha na direção onde ficava sua casa, agora arruinada.

– Como chegou nessa situação? Como deixei isso acontecer?

Pega-se falando aos berros com a imagem no espelho da sala. Lembra-se de Bel, Abelardo Van Tiesel, que nome … Abelardo. Sorri e estica as mãos em direção ao porta-retratos à sua frente.

– Que merda! Desculpe Bel – abraça o porta-retratos com a foto do homem sorridente cercado de hibiscos – não planejei bem e perdi tudo!

O casamento apesar de insosso ia bem. Casados há oito anos, ainda não tinham filhos. Bel era vinte anos mais velho e podia dar a ela os confortos da vida moderna sem que precisassem fazer sacrifícios. Ele gostava de seu trabalho, de sua empresa, de seu hobby e é claro dela, sua esposa. Tinham uma vida técnica.

Toma um banho com água bem quente, troca a roupa e senta no sofá. O que deu errado? Se pergunta.

Ela sabia. A resposta era outro homem, chamado Dani.

****

Conheceu Daniel Freeman Lopes em um passeio ciclístico pelo entorno da cidade, o grupo do qual ela fazia parte costumava fazer passeios semanais e pedalar forte. Eram pouco mais de vinte ciclistas e às vezes recebiam esportistas de outros grupos para passeios conjuntos. Em um desses encontros ela e Flora, uma das amigas de trabalho e que também era ciclista, foram designadas para fazer parte do grupo de socorro e pararam para ajudar atletas que tinham problemas nas bikes. Passavam por desgarrados e os ajudavam.

Um deles era Dani.

A atração foi mútua. Passou a andar de bike com ele todas as semanas, às vezes em duas, três ocasiões ou mais. Gostava da companhia dele e depois de algumas semanas estavam muito próximos. Um dia voltavam de um passeio e, passando pelo prédio onde morava, Dani a convidou para beber água ou energético em seu apartamento. Eles subiram, começaram a conversar, rolou um beijo, dois e … aconteceu. O sexo foi forte, apaixonado, violento.

Pensando bem ele foi uma escolha perfeita: jovem, bonito, bem empregado.

Passaram a sair com frequência, às vezes ele faltava ao trabalho para estarem juntos, fazia o que ela queria. Finalmente Lívia se sentia feliz.

Por outro lado Dani parecia querer mais e mais ficar em sua companhia, ele estava completamente apaixonado, ela sabia que não era apenas sexo e incentivava, mesmo que inconscientemente, o rapaz. Ele sabia que ela era casada, mesmo assim disse que não conseguia ficar sem vê-la, tocá-la, queria estar com ela, queria fazer amor todos os dias, todas as horas. Em uma das tardes de amor, após reclamar do pouco tempo que ficavam juntos ele disse que tinha uma solução. Voltariam a estudar, ao menos no papel. Mas essa estratégia tinha que ser colocada aos poucos no emprego de Dani e na casa de Lívia para que tivesse sucesso.

Dias depois, Lívia disse a Abelardo que havia se matriculado em um curso de pós graduação e que precisaria ficar em seu antigo apartamento durante alguns dias da semana. Bel não ficou satisfeito com a idéia, deixar a jovem esposa sozinha na cidade. Chegou a se oferecer para ir com ela para o apartamento, mas ela o convenceu que seria desnecessário, que era por pouco tempo e Bel acabou concordando. Mesmo assim ele ligava todos os dias para saber se ela havia jantado, se estava bem.

Agora fazendo a retrospectiva dos fatos, pensava: ou ele a amava muito e confiava nela ou não lhe tinha o menor apreço. Conhecendo-o bem, sabia que a primeira hipótese era a única possível. Afinal, estavam casados há vários anos.

A primeira semana que passou no apartamento transformou-se em lua de mel, muito sexo, juras de amor, Dani praticamente mudou para lá. Nas semanas seguintes ele começou a fazer planos para ficarem juntos, falava constantemente que ela não devia ficar naquela situação, mulher de dois homens, que não agüentava mais dividi-la com o marido.

Lívia de inicio não se incomodou com o que Dani falava, chegou mesmo a confrontá-lo, disse que não estava preparada para se separar de Bel. No fundo o apego excessivo de Dani começava a incomodá-la, sentia falta do espaço que Bel lhe dava em sua vida, a confiança que ele representava tanto econômica quanto afetiva.

Começou a se preocupar verdadeiramente com aquele relacionamento quando o pegou mexendo em sua bolsa. Dani estava com sua cartela de anticoncepcionais nas mãos e depois, durante o sexo, falou que ia engravidá-la. A partir daí uma luz de perigo se acendeu e Lívia começou a ir mais para a casa.

Em consequencia passou a atender menos os telefonemas de Dani, recusar seus emails e, por fim, cancelou todas as contas que possuía em redes sociais. Os seis meses mais belos de sua vida estavam se transformando em pesadelo. Ela precisava tomar uma atitude.

O que a levou a desistir de Dani e, para dizer a verdade, temê-lo, foi a primeira briga. Estavam em um restaurante jantando e encontraram Flora e seu namorado. Elas eram amigas há tempos e conversavam sobre a época de escola quando Dani surtou, começou uma discussão com o namorado de Flora alegando que o rapaz estava dando em cima da sua mulher. Lívia o havia apresentado como um amigo e que ela já o conhecia do passeio ciclístico. Flora estava desconcertada com a situação, os homens começaram a bater boca abertamente, acreditou mesmo que Dani chegaria às vias de fato com o rapaz, que era muito forte, mas acabou ficando só na discussão mesmo. Por fim acabaram sendo convidados a se retirar do local sob os olhos críticos dos demais clientes. Quando iam para casa, Dani ainda muito nervoso, chegou a agredi-la com tapas e desaforos, mas logo se arrependeu e pediu desculpas. Flora nunca mais ligou.

Evitou falar com Dani nos dias que se seguiram. Ele ligou inúmeras vezes, mas Lívia não respondeu.

No final de semana anterior aconteceu o que ela temia. Dani começou a rondar a casa e telefonou ameaçando bater à porta e contar tudo para Bel. Ela foi para a sala de estar e conversaram durante bastante tempo até convencê-lo que Bel não aceitaria aquela situação e que ela jamais diria ao marido que estava tendo um caso extra conjugal. Disse a Dani que precisariam conversar, mas ela já estava decidida a não deixar o marido. Dani simplesmente desligou o telefone e não voltou a ligar nos próximos dias. No dia anterior ele mandou uma mensagem dizendo que iria a casa dela e contaria ao marido sobre os seis meses de relacionamento.

Tinha que pensar rápido. Falou então a Dani que fosse no domingo pela manhã. Aí se sentariam como adultos e conversariam. Disse também que estava disposta a ir morar com ele, mas que precisariam um apartamento maior caso ele ainda estivesse disposto a ter filhos. Ela conseguiu perceber por sua voz não apenas satisfação, mas orgulho por tê-la convencido.

Seu próximo passo foi decidir o que contar a Bel. Ele estava em seu jardim na frente da casa cuidando de seus hibiscos premiados. Lívia sentou-se e o chamou a seu lado em um dos bancos e disse que precisavam conversar. Falou que há algum tempo vinha sendo perseguida por um colega do curso que inicialmente tentou fazer amizade e depois insistia em sair com ela. Falou a Bel que lhe dera diversos foras, mas que o rapaz não desistia por isso ela abandonou o curso. Chegou a pensar em ir a policia e registrar queixa, estava bastante preocupada, pois achou tê-lo visto na rua de casa. Bel ficou lívido, não disse palavra, seu rosto se fechou e falou a ela para não se preocupar, ele resolveria.

Na manhã seguinte Lívia saiu cedo repetindo sua rotina de domingo, foi à igreja, depois no mercado e no final passou na exposição e apanhou o hibisco amarelo campeão que Bel tanto prezava. Durante as quase três horas que esteve fora de casa sua mente fervilhava de pensamentos contraditórios sobre o que fez e questionamentos sobre o que poderia ter acontecido entre Bel e Dani. Sabia que tinha muito a ganhar, mas também muito a perder. Tudo dependeria de seu poder de convencimento.

****

Olha o relógio, eram três da manhã e não havia mais nada a ser feito. Toma um copo de água e vai dormir. Acorda com o barulho insistente da campainha e isso a deixa nervosa. Vai até a porta e pelo olho mágico vê os dois policiais do dia anterior e abre a porta.

Eles entram, a policial loira para. Observa o vaso com a flor amarela que chama sua atenção, enquanto o homem careca vai até o meio da pequena sala.

– A Sra. está bem? Pergunta o policial ao ver que ela estava tremendo.

Ela olha para a porta, onde haviam mais três policiais. Fugir não era mais uma opção. Nunca foi, pensou.

– Sim – responde ao policial e abre um sorriso constrangido, afinal ainda estava de pijamas.

– Sra. Van Tiesel – o policial a olha diretamente nos olhos, ela sabe que aquele momento é crucial em sua vida.

– Os bombeiros recuperaram dois corpos nos destroços, ambos irreconhecíveis. Só com exame de DNA saberão a quem pertencem. Precisamos fazer algumas perguntas à senhora.

Continuou olhando-a fixamente – a Sra. conhece Daniel Freeman?

Lívia olha o casal de policiais nos olhos, abaixa a cabeça durante um par de segundos e quando volta a olhá-los uma lágrima solitária cai de seus olhos castanhos esverdeados, escorrendo lentamente pelo rosto.

– Sim …

A loira caminha lentamente em sua direção segurando o hibisco nas mãos. O rosto do homem estava fechado quando perguntou:

– A senhora teve relações amorosas com Daniel Freeman?

Lívia segura a respiração. Estaria em uma enrascada se mentisse ou descobrissem Flora, sua amiga.

– Sim – disse firmemente, procurando mudar a atitude. Sempre poderia dizer que pretendia se separar de Bel para ficar com Dani, pensa rapidamente.

A loira lhe entrega o vaso com o hibisco.

– Sra Van Tiesel – a policial loira falou sem olhar em seu rosto – os bombeiros encontraram resquícios de gasolina dentro da casa e um galão vazio com resíduo desse combustível no jardim.

– Quando decidiu, Sra. Van Tiesel?

Lívia estava paralisada. A policial sorri, retira as algemas do cinturão e refaz a pergunta.

– Em que momento decidiu matar os dois, Sra. Van Tiesel?

 

Fim

Um conto de Swylmar Ferreira

Imagem ilustrativa retirada do site: http://pixabay.com/pt/hibisco-flor-tropical-floral-34452/

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Publicado em 20 de abril de 2015 por em Contos.

A saga de um andarilho pelas estrelas

DIVULGAÇÃO A pedido do autor Dan Balan. Sinopse do livro. Utopia pós-moderna, “A saga de um andarilho pelas estrelas” conta a história de um homem que abandona a Terra e viaja pelas estrelas, onde conhece civilizações extraordinárias. Mas o universo guarda infinitas surpresas e alguns planetas podem ser muito perigosos. O enredo é repleto de momentos cômicos e desconcertantes que acabam por inspirar reflexões sobre a vida e a existência. O livro é escrito em prosa em dez capítulos. Oito sonetos também acompanham a narrativa. (Editora Multifoco) Disponível no site da Livraria Cultura, Livraria da Travessa, Editora Multifoco. Andarilho da estrela cintilante Por onde vai sozinho em pensamento, Fugindo dessa terra de tormento, Sem paradeiro certo, triste errante? E procurar o que no firmamento, Que aqui não encontrou sonho distante Nenhum outro arrojado viajante? Volta! Nada se perde com o tempo... “Felicidade quis, sim, encontrar Nesse vasto universo, de numerosas, Infinitas estrelas, não hei de errar! Mas ilusão desfez-se em nebulosas, Tão longe descobri tarde demais: Meu amor deste lugar partiu jamais!”

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Bom dia.
Aproveito este espaço para divulgar o livro da escritora Melissa Tobias: A Realidade de Madhu.

- Sinopse -

Neste surpreendente romance de ficção científica, Madhu é abduzida por uma nave intergaláctica. A bordo da colossal nave alienígena fará amizade com uma bizarra híbrida, conhecerá um androide que vai abalar seu coração e aprenderá lições que mudará sua vida para sempre.
Madhu é uma Semente Estelar e terá que semear a Terra para gerar uma Nova Realidade que substituirá a ilusória realidade criada por Lúcifer. Porém, a missão não será fácil, já que Marduk, a personificação de Lúcifer na Via Láctea, com a ajuda de seus fiéis sentinelas reptilianos, farão de tudo para não deixar a Nova Realidade florescer.
Madhu terá que tomar uma difícil decisão. E aprenderá a usar seu poder sombrio em benefício da Luz.

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Oi pessoal, o site EntreContos - Literatura Fantástica - promove novos desafios, com tema variados sendo uma excelente oportunidade de leitura. Boa sorte e boa leitura.

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