Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Maristela olhava o espelho de parede de seu escritório e sinceramente gostava do que via. Alta, bonita, gostosa, coxão, peitão e bundão, mesmo em seu terninho de trabalho era desejada e cobiçada por todos os homens que a viam e adorada pelos que a conheciam, todos sempre comentavam sobre a minúscula pinta escura no lado esquerdo do rosto. Invejada pelas jabiracas e mocreias do prédio de 10 andares do centro da cidade e vizinhanças onde mantinha seu escritório. Era a advogada criminalista mais famosa da cidade, ela ficou famosa por defender nos tribunais bandidos perigosos, mas também por seus casamentos, três no total, onde seus maridos foram invariavelmente… mortos.
Trancou a sala e se despediu da secretária, Beth, uma senhora de quase setenta anos, mas que era de sua inteira confiança. Foi ao Hall e desceu de elevador até o saguão do edifício onde Saulo, seu guarda-costas a esperava, olhou de relance no relógio e saiu do edifício entrando no carro com ele ao volante do BMW prata novinho em folha. Seus casamentos lhe renderam uma polpuda herança, não que precisasse, pois era uma “filhinha do papai”, como diziam seus colegas de curso na Federal, à época. Sempre teve e agora tinha ainda mais: grana!
O guarda-costas a deixou na entrada do edifício e guardou o carro na garagem antes dela o dispensar e subir para o apartamento. Eram vinte e duas horas. Estava sozinha… milagre. Trancou a porta, tirou a roupa ainda na suntuosa sala, passou pela cozinha onde pegou uma garrafa de vinho tinto, seco, e foi para o banheiro da suíte que ocupava em seu apartamento de andar inteiro, só de calcinha tipo fio dental, abriu a parte interna da janela e olhou a noite cheia de nuvens, mas muito clara devido à lua nova. Voltou ao quarto enquanto a banheira se enchia com água quente, pegou a meia calça do chão e jogou na poltrona, sentou-se na cama king size e ligou a televisão LED de 47 polegadas. Os repórteres das emissoras locais continuavam sem sal, relatando noticias lidas sem entusiasmo e fazendo comentários que não interessavam a absolutamente ninguém. Tentou ver algum seriado na TV fechada, mas estava sem paciência. Desligou.
Entrou na banheira, ligou a hidromassagem e relaxou depois de jogar os sais de banho na água. A meia luz do cômodo e a brisa que entrava pela janela movimentando as cortinas finas de voil branco, formavam estranhos desenhos no teto.
Tomou um gole da bebida, permanecendo alguns poucos segundos com ela na boca antes de engolir e fechou os olhos demoradamente. De tão relaxada estava quase dormindo quando despertou bruscamente. Pareceu escutar alguém chamando seu nome, como em um sussurro.
Estava assustada, ao abrir os olhos a primeira imagem que viu foi a sombra de um rosto que lembrou Ivo, seu primeiro marido.
O susto foi tão grande que ela chegou a afundar a cabeça na água quente, colocou as mãos na borda da banheira e se levantou tossindo e cuspindo a água que abruptamente havia entrado em sua boca. Olhou para o teto e as imagens dançantes das cortinas continuavam bruxuleando e formando imagens estranhas, mas não era o rosto do falecido. Sorriu, levantou-se, olhou-se no espelho, habito idiota pensou, se enrolou na toalha e entrou no quarto, mas aquilo a deixou preocupada, estranha.
Pensar no Ivo, aquele idiota, foi uma tolice. Será que ela tinha dormido na banheira? Ou será que havia realmente visto seu rosto, como no dia em que ele morreu ao “cair” na piscina do apartamento antigo que estava sem água. Colocou mais vinho na taça e sentou no sofá. Não conseguia tirar o falecido da cabeça, lembrou que estava cansada de conviver com ele, de agüentar seu mal cheiro, seu suor, sua ânsia por sexo, seus beijos babados, seu olhar pidão, sempre implorando e viu naquele dia, naquela hora o momento certo, a oportunidade.
Ele, como sempre, estava bêbado, era a oportunidade de se livrar do traste e apenas o desequilibrou na borda da piscina, um leve “jogo de ombros”, escutou o baque surdo, como uma melancia rachando ao cair no chão, virou e nem olhou para trás. Mais tarde naquela noite a empregada encontrou-o morto na piscina. Ela estava livre.
Sorriu consigo mesma, esvaziou o líquido e levantou para ir à cozinha quando tudo escureceu, as luzes naquela parte da cidade se apagaram.
– Merda, disse.
Maristela foi até a porta corrediça que dava para a área do apartamento, abriu e olhou a cidade se debruçando no parapeito. Parte na escuridão e parte iluminada a cidade continuava bela. A lua clareava a varanda e a iluminação de emergência funcionava perfeitamente iluminando a sala, os quartos e cozinha, resolveu vestir uma camisola. Estava no quarto quando pareceu escutar novamente alguém chamar seu nome, desta vez mais alto, e sentiu seu sangue gelar. Estava com medo, abriu a porta do closet e entrou, foi até o cofre, abriu e retirou uma pistola calibre 380. Ficou parada enquanto esperava algum movimento de alguém.
– Quem está aí? Perguntou já na sala, temerosa. Foi até o telefone e tentou ligar para seu segurança, mas o aparelho estava mudo. Maldita eletricidade, pensou.
– O celular, falou consigo mesma e correu até o hall de entrada onde deixava normalmente a bolsa e o pequeno aparelho e percebeu que não estava lá. Pensou e lembrou-se que tinha falado com Beth quando estava no carro. Tinha esquecido no banco de trás do veículo.
Pensou em sair do apartamento, correr, mas o elevador estava preso em algum andar e a escadaria de emergência apesar de livre podia conter alguma surpresa desagradável. Resolveu ficar, mas a voz que ouvira parecia martelar em sua cabeça, ela sabia de quem era. Hugo, seu segundo marido.
Sentou-se no braço da poltrona, perto da janela e lembrou como ele morrera. No inquérito policial, foi dito que ele morrera durante um latrocínio, quando haviam tentado levar o carro dele, mas ela sabia que não tinha sido daquele jeito. Ela havia combinado com um dos marginais que ela defendera certa ocasião, mas que não tinha dinheiro para pagar, que um dia ele lhe pagaria de alguma forma. A maneira por ela encontrada de “pagamento” da dívida foi o assassinato. O meliante ficara esperando Hugo na garagem e não deu oportunidade ao pobre homem. Dois tiros resolveram a questão.
Desta vez não sorriu, as sombras agora corriam na sala, ela sabia que tinha alguém, ou alguma coisa no apartamento. Tinha que sair dali. Mas o que significava tudo aquilo? Duas almas penadas, sacrificadas, esquecidas que estariam tentando assustá-la? Definitivamente não acreditava naquilo.
Pensou em Flávio, seu terceiro marido, em como ela o matou quando descobriu que ele tinha um caso com uma ex namorada. Vingança. Ela os pegou na casa de praia, na cama, quando faziam sexo. Ela atirou nos dois, mas não o matou; só a moça. Via novamente a cena como se a vivesse naquele instante, Flavio estava caído no chão, mole e consciente de tudo o que tinha acontecido, sem forças, então ela foi à cozinha, pegou uma faca e o esfaqueou por diversas vezes, até cansar, espalhou o sangue de ambos por todo o quarto e depois colocou fogo na casa. Um detetive da policia desconfiou, mas não teve como provar e mais uma vez seu álibi foram seus clientes que juraram que ela os estava atendendo no escritório. Eles que se f… para provar o contrário.
Sorria ao lembrar a cara do detetive, do sorriso de seu cúmplice, mas principalmente da surpresa do marido ao escutar o tiro e revirar os olhos. Olhou a pistola na mão esquerda e a taça vazia na mão direita. São só lembranças, pensou.
A luz voltou em um relance com o retorno da energia elétrica na edificação. Ela se tranquilizou, ligou a televisão da sala e colocou em um canal de desenhos. Resolveu ir ao banheiro, passou antes no closet e colocou a pistola no cofre e resolveu urinar.
Saiu do closet, passou pelo quarto e sentiu uma presença observando-a da porta do banheiro, aberta. Tentou gritar, mas nenhum som saiu de sua boca, estava paralisada de medo. Nunca havia visto algo como aquilo. Era muito alto, olhos muito pequenos, sem orelhas, braços longos e muito magro, esquelético. Sabia do que se tratava e caiu de joelhos quando suas pernas falharam. Uma vez, anos atrás, uma mulher que ela defendeu disse ter visto a criatura. Tinha sido levada para um hospício e gritava, urrava e pedia perdão sempre que via uma sombra, qualquer que fosse.
O ceifador a encarava com dois enormes olhos vermelhos. Gritos finalmente saíram de sua garganta quando a criatura deu o primeiro passo em sua direção, tentou se levantar e não conseguiu, gritou de novo, pediu ajuda, implorou perdão. Disse a ele que se arrependia, ofereceu dinheiro, sexo, faria qualquer coisa para sobreviver. Ele então estendeu suas garras na direção de Maristela que gritou e implorou, enquanto sua alma era violentamente arrancada de seu corpo.