Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
A madrugada fria e a garoa que caia na Praça da República, faziam com que Bartolomeu sentisse os ossos congelando. Não se lembrava de ter visto um tempo tão frio na cidade nos últimos anos, puxou o agasalho de nylon o mais que podia chegando a colocar algumas folhas de jornal por entre a camiseta e o agasalho em uma vã tentativa de se esquentar. O frio doía.
Às três da manhã as ruas estavam desertas, raramente via alguém se movimentando. Às vezes algum malandro passava em busca de uma vítima desatenta ou um carro de polícia garantindo a segurança dos que trabalhavam à noite.
Mas aquela noite era diferente, escura, a lua no céu mostrava-se como um fio fino de prata, quando podia ser vista entre as pesadas nuvens cinzentas que trouxeram o frio dos últimos dias.
Dormia nas ruas há dez anos ou mais. Desde que perdera Laura, sua vida se desestabilizou, abandonou o emprego, se afastou dos poucos amigos que tinha, separou-se da família. Uma tristeza profunda tomou conta dele, por fim a depressão.
Aumentou o passo quando a chuva se intensificou, chegando ao lugar que procurava. Sentou-se de costas para uma parede ainda seca protegida por uma marquise da chuva e dos ventos.
Viu um grupo de sem tetos chegar quase correndo, conhecia todos, uns dez, inclusive três garotos perdidos para o crack. Perguntaram se podiam ficar ali com ele que concordou. A segurança que tinham residia na companhia uns dos outros. Se ajeitaram em cobertores velhos e rasgados que cheiravam mal. Um dos garotos começou a chorar, ele já tinha ouvido aquele tipo de som antes. Era fome!
Chegou à conclusão que não podia ficar ali, levantou-se e seguiu pelas ruas próximas e escuras até visualizar um velho casarão cujas portas estavam arrebentadas e servia como covil para bandidos e abrigo para aqueles, que como ele, eram esquecidos pela sociedade.
Bartolomeu passou a mão no braço esquerdo sentindo a pequena barra de aço que o protegia há anos, depois retirou uma foto velha e amassada do bolso interno do agasalho e com a luminosidade de uma pequena chama fornecida por um isqueiro, olhou novamente para o rosto da mulher que um dia amou.
Mesmo depois de anos, a lembrança lhe era vívida. Foi em uma noite parecida com esta que ele a perdeu, ela trabalhava em uma gráfica ali perto, seu carro teve um defeito e ela inadvertidamente o abandonou se aventurando na madrugada, cruzando aquela região a pé.
Seu corpo foi achado dois dias depois em um prédio abandonado, destroçado, semidevorado, sem sangue. A imprensa noticiou por dois dias, depois perdeu o interesse. Nunca acharam o assassino. Nos anos vindouros outros haviam perecido como ela, mas como era habitual, ninguém se importou.
Bartolomeu saiu do prédio, colocou o capuz na cabeça e foi solitário andando pelas ruas mal iluminadas e vazias em direção a velha Praça, quando poucos metros à sua frente viu uma mulher parada na chuva. Bem vestida, em um casaco de couro comprido fechado até a gola, luvas e botas negras altas, tinha apenas um chapéu preto protegendo-lhe os cabelos loiros. Ele continuou andando, cabeça baixa e se afastou um pouco do trajeto para que a mulher não sentisse medo. Ao passar por ela, sentiu seu olhar a observá-lo. Olhou de volta em um reflexo, ao cruzar os olhos percebeu que neles havia muitos sentimentos, menos o medo. Andou pouco mais de uma centena de metros, virou-se e observou a rua por onde passou vendo que a mulher o seguia.
Sorriu.
Antes de chegar à esquina, um vulto a frente saiu das sombras com os braços abertos, segurando um saco de papel. Bartolomeu parou e ficou olhando a figura. Era um homem alto, mais de um metro e noventa. Mesmo com sobretudo e o chapéu coco, viu se tratar de um homem forte, ainda assim menor que ele. Escutou a mulher se aproximando por trás e se posicionou de lado para os dois. A descrição batia com aquela que os moradores de rua lhe tinham feito.
Seria hoje, pensou. Depois de tantos anos? Um leve tremor alcançou-lhe as mãos e a garganta.
O homem de chapéu coco sorria, seus olhos transmitiam serenidade, quase como se fosse um convite para relaxar. Sua mão direita balançava levemente o pacote grande no alto, oferecendo o seu conteúdo.
– Tenho comida, amigo – disse com um sorriso largo nos lábios – um sanduíche, sinta o aroma. Não quer comer?
A mulher agora segurava o chapéu em uma das mãos enluvadas e passou lentamente por ele, sorrindo. Seus olhos verdes claros fitavam-no com interesse. Lembrava-se daquele olhar em outro rosto, era um convite para o sexo.
– Gostou dela, homem alto? Tome-a, faça sexo até se fartar – disse o homem de chapéu coco sorrindo. – Tem medo?
Bartolomeu viu que a mulher se afastou uns dois passos enquanto o homem lhe jogava o pacote de papel.
– Esperei por vocês muito tempo – falou Bartolomeu em tom de voz baixa – encontro marcado!
Vai ser agora, Bartolomeu pensou quando um arrepio percorreu-lhe o corpo. Olhou rápido para o homem de chapéu coco, a tempo de ver seus olhos se tornarem amarelos e mesmo sob o agasalho percebeu seu tórax se alongar e inchar, enquanto sua outra mão apanhava, na cintura, um facão grande atacando-o com violência. Nesse mesmo instante a mulher jogou um objeto contra a única lâmpada que trazia luminosidade à rua. Bartolomeu soube que agora estava a mercê de um único poste no início da quadra.
Só teve tempo de levantar o braço protegido pela barra de aço. O tinir de metal contra metal foi ouvido longe e Bartolomeu quase se desequilibrou tamanha a violência do golpe. Sacou uma faca de metal negro e olhou novamente o homem, um segundo golpe quase lhe arrancou o braço, mas ele se desviou e enterrou a lâmina no ombro esquerdo do outro. O homem de chapéu coco gritou, como um rugido.
A mulher loira ao ouvir o grito de seu companheiro se desesperou e saltou sobre Bartolomeu, suas mãos agora eram garras poderosas e de sua boca sensual agora brotavam dentes grandes e pontiagudos que avançavam em sua direção. Tinha que agir rápido senão ia morrer. Deixou seu corpo cair para trás na medida em que a criatura caia sobre ele. Sacou da cintura, uma faca de madeira de teca de vinte centímetros, e quanto mais a mulher se forçava contra ele, mais a arma enterrava-lhe no peito.
Por um segundo ela o olhou sem compreender o que acontecia, estava completamente surpresa. Bartolomeu percebeu seu lindo rosto voltando ao normal, voltando a ser a mulher maravilhosa que viu a alguns minutos. Percebeu que ela falaria algo, mas apenas soltou ar pela boca enquanto se afogava no próprio sangue.
Vendo a cena, o homem de chapéu coco gritou de fúria e recuperando o facão, jogou-o na direção de Bartolomeu que no último segundo, se esquivou. Revidou imediatamente, pegou na cintura outra faca de teca e arremessou, acertando o coração do adversário.
Bartolomeu ficou observando o rosto do homem voltar ao normal, era humano de novo. Ele balbuciou algo, uma pergunta.
– Por quê?
Bartolomeu ajoelhou-se ao lado dele em seus últimos momentos, tirou a velha foto do bolso do agasalho e lhe mostrou.
– Por Laura.
Imagem meramente ilustrativa retirada de http://www.deviantart.com/art/Drifted-304130978
Oi, pessoal!
Estou passando aqui para convidá-los a participar do Prêmio ABIPTI de Literatura – Contos de Ficção Científica. As inscrições estão abertas e vão até o dia 25 de Setembro de 2020.
O concurso é online e a votação do público é em tempo real.
Vão premiar os três melhores textos com notebook, tablet e smartphone. E, ainda, os textos serão publicados no livro Contos Brasileiros de Ficção Científica.
Acesse literatura.premioabipti.com.br, leiam o regulamento e inscrevam-se!
Boa Sorte a todos!
Swylmar! Gostei muito do conto. Parabéns.
Andre Bosi
Muito grato Andre Bosi.
Este conto perambulou pela minha cabeça muito tempo até que o escrevi.
Depois ficou encaixotado até que o publiquei.
Agradeço novamente meu caro.
Estou no aguardo de outro conto seu para publicação.
Forte abraço
Swylmar
Swylmar! Gostei do conto. Parabéns.
Andre Bosi
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