Fantasticontos, escritos e literários

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Um dia é do Caçador e o outro também


O frio estava cortante naquela tarde e eu respirava até mesmo com dificuldade.

“Lugar miserável!” – falei alto enquanto tremia.

 Olhei em frente e, como sempre, fiquei ao mesmo tempo rancoroso e deslumbrado, se isso for possível, com a paisagem local. Deslumbrado pela beleza selvagem e crua daquele mundo, rancoroso por ter perdido tudo ali. 

Ver a paisagem subártica, pelo menos é assim que chamamos em meu mundo, daquelas montanhas e vales altos, as árvores de troncos esverdeados nunca me pareceram tão belas quanto neste momento.

Suas longas e finas folhas faziam com que eu me lembrasse dos coqueiros que dançavam ao som do mar na beira dos mares calmos, perto de onde eu vivi. Aquela época passada, agora, neste exato momento, pareceu-me uma outra vida.

Continuei andando e ziguezagueando por entre arbustos, afundando as pernas naquela neve que se misturava com uma espécie de areia fofa, formando um quase  charque, estranho e fétido, de matéria em decomposição.

O sensor acoplado ao braço na vestimenta mostrou a aproximação do kil e acelerei meus passos o mais que pude, mas percebi que não ia conseguir chegar no habitat que era o meu refúgio nos últimos meses.

“Muito longe!” – falo alto outra vez.

Puxei a viseira do capacete para frente e usei o modo de aproximação. Ele tinha uma coleira de proteção contra disparos. Um repulsor comum, mas eficiente contra minhas armas de plasma. Coloquei a mão em outra arma, a de propulsão magnética, e lembrei que tinha poucos dardos. Chamar meu drone aéreo de proteção também não daria tempo. O Kil se aproximava cada vez mais, percebi que teria que abatê-lo.

“Uma pena.” Pensei!

Imediatamente lembrei de Liziane. Alta, morena, inteligente e atraente, era a capitão da nave para a qual eu tinha sido voluntário. Ela havia nos mostrado como eliminar aqueles “bichinhos”.

“Cuidado com os pets”, ela falava sempre.

Havia três tipos de pets que os Omurks usavam contra nós, mas certamente os Kils eram os mais violentos e perigosos. Parei rapidamente para analisar minha situação, sorte minha é que os kils eram caçadores solitários.

Tinha que voltar até a carcaça do “P”, que estava à cerca de uns mil metros para trás, pensei. Seria rápido pois era em descida.

Cheguei bufando. O “P” lembrava muito um pangolin do nosso mundo, por isso o chamávamos de “P”, só que dez vezes maior e era carnívoro. Ele tinha sido abatido há muito tempo pelos kils. Arranquei uma das escamas da carcaça do P e fiquei esperando o Kil se aproximar.

Lembrei outra vez de Liziane, acho que continuo apaixonado. Eu só estou aqui por causa dela. Eu a tinha visto algumas vezes na estação SB-9, nos confins do sistema solar. Ela era linda e ficava muito bem na vestimenta militar, tanto que resolvi tentar uma aproximação. E na minha cabeça tola, o melhor seria tentar na nave dela. E assim fiz, me alistei na companhia!

Descobri tarde demais que era uma nave de pesquisa e colonização. Isso significava que a viagem seria para uma área fora do nosso território no espaço.

E aqui estou eu. Deveria estar feliz, pois sobreviver à um pouso forçado não é toda hora, nem qualquer um que consegue isso e meu grupo conseguiu.

Terminei de arrancar a escama da carcaça do P e corri para um grupo de arbustos e fiquei esperando. Peguei um injetor de explosivos na mochila, um dos que usaríamos para a instalação da colônia, se fosse preciso, afinal, eu era do grupo de demolição da major Karen.

Me preparei e quando o Kil estava na posição certa, entrei na escama e me soltei montanha abaixo, uns 30 metros no máximo. Cravei o injetor com explosivos líquidos na barriga do P. Eu sabia que a mistura de pele dura e escamas, que formavam as placas de proteção natural dele não resistiria a entrada da lâmina que injetava o explosivo. O Kil urrou de dor e ainda conseguiu me acertar de raspão na cabeça com uma das quatro patas dianteiras. Segundos depois ouvi o estrondo.

Se não fosse o capacete de proteção eu também estaria morto.

Levantei-me ainda zonzo e no íntimo agradeci a Liziane. Os pets haviam sido domesticados com colares de obediência. Eu sabia que tinha que sair dali, pois os Zigs, o terceiro tipo de pets, os carniceiros, logo apareceriam.

“Praga miserável esses Zigs”  – disse enquanto observava de longe eles destroçando e devorando a carcaça do outro pet. Exatamente como fizeram com Rohan, um dos membros da tripulação que estava comigo no módulo de fuga.

Os humanos têm certa semelhança com os Omurks orgânicos, exceto pelas quatro pernas e o tronco mais alongado. Pareciam centauros com pernas humanas e dois grandes braços.

Subi lentamente a montanha gélida levando a escama do “P”, até um platô onde havia um grupo de vegetação muito densa. Ali, por entre a vegetação e perto de um grupo de pedras eu havia colocado o habitat que tirei do modulo de fuga e o havia coberto de escamas de diversos “P” que agora o cobriam totalmente.

Entrei, me sentei em um dos tocos de arvore que havia encontrado em lugares diferentes daquelas montanhas e tirei parte da roupa. Completamente fechado o habitat mantinha uma temperatura agradável. O gerador de alimentos estava funcional e eu implementei os códigos para comida, verifiquei se havia sache de produtos orgânico, fiquei feliz de encontrar mais alguns no módulo de fuga dias antes, e acionei o start. Comi o que o aparelho gerou sem nem mesmo saber o que havia pedido. Deitei-me em um dos cantos do habitat e apaguei. Tive sonhos estranhos com a major Karen, Rohan, Li Feng e o LT Kratos. Sonhos de morte e dor.

Acordei com o zumbido inconfundível do que chamávamos plataforma aérea móvel (PAMs) dos Omurks circulando os céus da montanha. Estão estranhamente perto. Será que já esqueceram que derrubamos quatro delas? Não! Não faz tanto tempo assim.

Saio da habitat e fico olhando a PAM se afastando em direção ao pico da montanha gelada.

“Essa é das grandes”.

Falo alto, quase que com um sorriso nos lábios. Vou na direção do que restou dos módulos de fuga que o meu grupo ocupou quando fugimos da nossa nave, a Lentrance, e vejo que passaram por ali na PAM.

“Sem pegadas dessa vez, não desceram.”

Volto para o habitat ainda a tempo de ouvir o alarme sonoro que a última parte da minha nave, ainda em órbita, disparou, avisando que mais uma, das inúmeras tempestades de micro e mini asteroides, irá cair em breve no planeta. Não havia uma lua que servisse de proteção.

 Vou até onde enterrei o tenente Kratos, e faço uma oração. Foi o único tripulante da Lentrance que consegui enterrar. Pego um punhado daquela areia gelada gosmenta e coloco simbolicamente onde descansa o meu amigo.

Volto a distância que me separa do habitat e pego os meus apetrechos habituais, mochila, binóculos, analisador, os armamentos e um pouco da comida que pedi ao gerador de alimentos, é claro.

Decidi fazer algo que não faço a muito tempo. Observar a cidadela dos Omurks.

Se eles vieram até aqui em cima, significa que sentiram falta do “pet” deles. Significa também que o colar de obediência do “bichinho” parou de enviar os sinais, provavelmente devido à explosão. Foi a primeira vez que usei aquele material direto em um pet.

Estranho como são as coisas. Neste mundo miserável, começamos sendo a caça e nos transformamos em caçadores.

“Meus pais me ensinaram que sempre devo retribuir uma visita.” – Falo alto comigo mesmo e sorrindo.

Já é quase noite quando chego na base da montanha da Karen. A montanha tem esse nome pois foi ali que o kil a pegou e depois os Zigs terminaram o serviço.

Lembro que Li Feng foi atrás dela, mas nos disse depois que não encontrou nada, não restou nada da loirinha sorridente. Paro por um par de minutos pensando na tripulação.

Ali, na base da montanha, tenho acesso a terra marrom escura daquele lugar, coloco a mochila no chão e aciono o start fazendo com que um mini habitat camuflado comece a aparecer ao meu redor, e conforme vai se montando, me deito na terra macia. Devo estar a uns seis quilômetros de distância da cidadela Omurks, uns cem metros acima, uma excelente posição. Montei o binóculo e trouxe o cabo até o visor, sentei e fiquei observando os sobreviventes deles, do choque das astronaves.

Depois que fiquei só, comecei a pensar em como eles conseguiram pousar quase intactos, enquanto a “Lentrance” se desfez com o choque quando ainda estávamos em órbita. Sobrevivemos apenas em dois módulos. Talvez fosse porque ela era antiga, pensei, mas certamente não estava caindo aos pedaços.

E a minha tripulação?

Sempre às turras.

Os desentendimentos constantes, algumas vezes pensei que não gostávamos uns dos outros. A major Karen, Li Feng  e o Kratos eram os responsáveis pelo grupo de colonos em estado de êxtase, enquanto que eu, Liziane e Rohan éramos a tripulação da Lentrance, se é que podíamos considerar essa divisão.

Sentado ali, olhando para cidadela e seus moradores, reconheço que se adaptaram melhor que nós naquele ambiente. De certo modo, até gosto de vê-los, isso não me deixa esquecer.

Naquele dia, na Lentrance,  Karen e Liziane estavam na sala de comando e eu tinha ido comer no refeitório. Me sentei, comi e estiquei as pernas em outro móvel quando o alarme soou loucamente. De início achei que havíamos batido em alguma coisa e fui correndo pelos corredores apertados até o comando. Elas estavam atônitas e antes mesmo de eu perguntar o que estava acontecendo Karen olhou nos meus olhos e disse: “Estamos sendo atacados.”

Jamais esquecerei a perplexidade em seus olhos, que eu compreendi muito bem. Como afinal, na vastidão do espaço profundo, uma espécie que encontramos poucas vezes e com a qual tínhamos até um bom relacionamento comercial estava nos atacando?

Descobri muito tempo depois que não foi bem assim. Eram disparos de alerta e o que nos atingiu de verdade foram asteroides que se deslocavam muito rápido, que nosso sistema falhou em detectar.

A IA da Lentrance assumiu o comando e nos levou para o planeta com maior probabilidade de suportar vida. Então algo inesperado aconteceu. Ao tentar se desviar de uma parte da Lentrance que havia se soltado, a nave Omurks não conseguiu se esquivar e se chocou conosco. O choque das astronaves destruiu o habitat onde colonos estavam hibernando e praticamente dividiu a Lentrance em três. Foi tudo muito rápido. Não conseguimos protegê-los.

Liziane avisou para que entrássemos nos módulos de fuga, e saímos da Lentrance. A IA do nosso módulo de fuga conseguiu fazer um pouso relativamente seguro próximo do outro módulo. Ainda consegui ver uma das partes da Lentrance se despedaçar nos céus esverdeados e se transformar em pequenas bolas de fogo, misturando-se com dezenas ou centenas de pedaços do asteroide.

Não soubemos, por algum tempo, que fim haviam tomado os Omurks até que nos encontramos neste planeta. Nove pequenos continentes e dois grandes em um mundo aquático e eles vieram justamente para onde nós estávamos. Pensei que já tinham ido embora depois de alguns reparos, mas a nave deles me parece que não consegue sair da órbita.

Os outros tripulantes se foram a tempos, Karen morta por kils, Liziane e Li Feng pelos disparos dos Omurks, Kratos teve um ataque cardíaco enquanto fugíamos de um Kil e Rohan atacado pelos Zigs. Aquilo me enfureceu por muito tempo e comecei a caçá-los também.

Naquela época eles descobriram que um dia pertencia ao caçador e o outro também.

Eliminei quase todos os pets deles, assim como todos os artificiais ou maquinóides, como os Omurks os chamam. Ataquei diversas PAMs com Omurks maquinóides e até mesmo alguns orgânicos. Mas são tempos passados, hoje a vigília é mútua. Pego um pouco da terra marrom e sinto seu odor fétido.

 A última parte da Lentrance, ainda em orbita, avisa que está sendo atingida por uma chuva maciça de asteroides de todos os tamanhos. Seu aviso me parece mais um pedido de socorro, a Inteligência artificial não tem o que fazer, nem eu. Saio do habitat e vejo o céu. Olho para a cidadela, ao mesmo tempo em que escuto os asteroides descendo do céu esverdeado, sem nuvens, em uma chuva de chamas.

Vejo os Omurks tentando decolar a astronave que vai sendo atingida por pedras pequenas e depois por maiores e maiores ainda, até tombar na terra. Vejo também alguns deles conseguindo fugir para o lago gigantesco nas PAMs que ainda restavam.

A chuva de asteroides agora toma todo o céu. Olho ao redor e penso se vale a pena eu tentar correr, procurar algum abrigo. Então eu o vejo entrando na atmosfera com um estrondo enlouquecedor, causando onda de choque e se aproximado do lado do planeta onde estou.

“É gigantesco!” – falo quase que gritando, tamanha a excitação, o medo.

Me sento em uma pedra quase plana e por segundos vejo criaturas de todos os tipos e tamanhos em fuga. Alguns dos quais nunca vi.

Tenho apenas alguns segundos e sinto que devo expressar meus sentimentos sobre tudo o que existe ali.

“Lugar miserável.”

Fim

Um conto de Swylmar dos Santos Ferreira                               em   03 de julho de 2025.

Imagem meramente ilustrativa gerada por IA

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A saga de um andarilho pelas estrelas

DIVULGAÇÃO A pedido do autor Dan Balan. Sinopse do livro. Utopia pós-moderna, “A saga de um andarilho pelas estrelas” conta a história de um homem que abandona a Terra e viaja pelas estrelas, onde conhece civilizações extraordinárias. Mas o universo guarda infinitas surpresas e alguns planetas podem ser muito perigosos. O enredo é repleto de momentos cômicos e desconcertantes que acabam por inspirar reflexões sobre a vida e a existência. O livro é escrito em prosa em dez capítulos. Oito sonetos também acompanham a narrativa. (Editora Multifoco) Disponível no site da Livraria Cultura, Livraria da Travessa, Editora Multifoco. Andarilho da estrela cintilante Por onde vai sozinho em pensamento, Fugindo dessa terra de tormento, Sem paradeiro certo, triste errante? E procurar o que no firmamento, Que aqui não encontrou sonho distante Nenhum outro arrojado viajante? Volta! Nada se perde com o tempo... “Felicidade quis, sim, encontrar Nesse vasto universo, de numerosas, Infinitas estrelas, não hei de errar! Mas ilusão desfez-se em nebulosas, Tão longe descobri tarde demais: Meu amor deste lugar partiu jamais!”

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Bom dia.
Aproveito este espaço para divulgar o livro da escritora Melissa Tobias: A Realidade de Madhu.

- Sinopse -

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Madhu é uma Semente Estelar e terá que semear a Terra para gerar uma Nova Realidade que substituirá a ilusória realidade criada por Lúcifer. Porém, a missão não será fácil, já que Marduk, a personificação de Lúcifer na Via Láctea, com a ajuda de seus fiéis sentinelas reptilianos, farão de tudo para não deixar a Nova Realidade florescer.
Madhu terá que tomar uma difícil decisão. E aprenderá a usar seu poder sombrio em benefício da Luz.

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