Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Minha cabeça dói de repente, ainda tento focar no projeto aberto nas telas do computador à minha frente, mas a visão já está turva pelo cansaço. São assim todos os dias. Salvo tudo, inclusive no pendrive, coisa antiga, como diz meu sócio que acaba de entrar na sala. Pisco os olhos diversas vezes, tiro os óculos e os coloco sobre a mesa, entulhada de coisas.
“Vou para casa”, ele diz sorridente.
“Eu também, Jon. Vou só terminar aqui. Cansei por hoje”.
Me dá um abraço e me avisa que é para eu ir ao aniversário da filha dele.
Gostei desse dia, apesar de ter começado estranho. Lembrava de pouca coisa antes do cachorro, um doberman, lambendo meu rosto e uma mulher de saia vermelha rodada e um homem careca estranho que devia estar segurando o cão, me ajudarem a levantar e a sentar no carro.
“Tem certeza de que está bem, senhor?” Perguntou ela.
“Sim, senhora. Obrigado. Foi apenas uma tontura.”
“Sorte a sua IA perceber que estava passando mal e entrar em contato com a nossa para prestarmos socorro”.
Lembrei que Ix parou o carro e lançou o sinal de alarme de saúde, fazendo com que outros autos encostassem. Não podia contar isso a ninguém. Jon ia morrer de rir se soubesse que acordei deitado no mato, na beira da estrada e com um cão me lambendo a cara.
Olho o relógio na parede enquanto Jon diz algo ininteligível, sai sorrindo e fecha a porta do escritório. Olho para a impressora 3D e para uma das três telas do meu computador e clico no botão verde. Vai levar quase a noite toda para imprimir a peça.
Não sei se me acostumo com isso, penso enquanto desligo as luzes do andar onde fica nosso escritório.
Vou até o elevador que parece esperar, entro e desço. Não há ninguém no saguão do prédio, saio e caminho os poucos metros que me separam do estacionamento e quando me aproximo escuto a IA do carro me cumprimentar.
“Olá, Roger. Como foi seu dia?”
“Olá, Ix”, respondo mesmo que de má vontade. “O dia foi ótimo. Vamos pra casa”.
O carro automático de um modelo híbrido, hidrogênio, combustão e eletricidade, pilotado pela IA, sai do estacionamento e lentamente chega na avenida que levará direto na minha casa.
Sei que moro longe, passa mais de uma hora até chegar. Sinto falta de algo.
“Claro, a cidade parece não ter crescido para este lado. Estranho”.
Ao chegar, reparo na casa, parece menor que ontem, mas o telhado continua o mesmo, verde. Que droga está acontecendo. Estou estranhando minha casa? A porta imponente abre e uma criança, uma menina de uns sete anos vem correndo em minha direção. Seu sorriso é tão intenso, tão lindo que eu me agacho e a abraço. Ele me beija o rosto umas dez vezes e continua sorrindo. Me sinto imensamente feliz.
Pego-a no braço esquerdo e vejo a mulher a uns três passos a minha frente. Ela me beija a boca e pergunta o porquê cheguei tarde.
“A janta está quase pronta amor. Ix já providenciou tudo e eu mesma fiz o suco de acerola. Fiz do jeito que você gosta, já que Ix não consegue”.
Ela continua falando e percebo que ela é minha esposa. Uma foto em nosso quarto mostra nós três com os nomes escritos na parte de baixo: Laura, Rose e Roger.
Tomo banho, acho minhas roupas em um armário grande, me visto e desço. Jantamos e depois vamos para uma varanda protegida. Rose fica brincando na sala e vendo algo na TV, ou ao menos parece uma TV. Eu e Laura ficamos na varanda enquanto uma chuva cai do lado de fora. A tela impede que insetos entrem no ambiente e me dá sensação de conforto e proteção.
Laura me conta detalhes de seu dia, suas reuniões. Ela trabalha em casa e suas reuniões são por meio do holo projetor em uma sala virtual. Está muito satisfeita com os resultados e diz o número de créditos que angariamos hoje.
Levo Rose para o quarto dela e a coloco na cama.
“Boa noite, papai”.
Adorei ouvir isso.
“Boa noite, Rose”,
Ainda fico olhando enquanto ela adormece. Me deu uma sensação maravilhosa. Uma sensação de paz.
“Venha amor”. Laura me chama para o nosso quarto.
Acordo com um som estranho, de sinos. É o despertador. Ix me avisa que é hora de me levantar e ir ao trabalho. Hoje teremos mais clientes que preferem reuniões pessoais.
Tomo banho, bebo um café rápido enquanto Laura e Rose ainda não despertaram e saio.
Entro no carro e Ix define o trajeto e a velocidade. Saímos. Ix me atualiza sobre o projeto que devo repassar aos clientes. Vai ser fácil, afinal fui eu quem fiz.
Mesmo sendo apenas um passageiro nestes novos carros, gosto de sentar em frente ao controle manual e observar a estrada. A natureza me distrai enquanto Ix me repassa a agenda do dia e os projetos a serem terminados hoje ou nos próximos dias. Algo chama minha atenção. Um brilho estranho no horizonte na estrada à frente e que parece vir em minha direção.
“Não deve ser nada” – comento em voz alta. Alguns segundos se passam e o brilho fica mais intenso e eu pergunto: “o que é aquilo Ix?”
“Parece nevoeiro, Roger”.
“Parece?” Pergunto.
Fico observando enquanto nos aproximamos rapidamente e somos engolidos pelo nevoeiro. Não consigo enxergar um metro à frente ou dos lados, nunca tinha visto nada igual, além disso o que pareciam o piscar de centenas de pequenas luzes me apavora.
“Ix, oque está acontecendo”? – Pergunto quase aos gritos.
“Roger… Roger… Roger… “
Agora Ix apresentava defeito. Não acreditei. IAs não apresentam defeitos assim.
Um facho de luz quase me deixa cego e coloco as duas mãos para proteger meus olhos, um ruído fino e dolorido se inicia e eu fico tonto. Percebo que o carro está tentando desacelerar sozinho. Tento achar o botão de pânico que me repassaria o controle manual e me lembro que nesses autos novos não têm mais esse tipo de comando, tudo é a IA, tudo é Ix. O facho de luz está cada vez mais intenso, seria um caminhão-transporte? O ruído está me deixando louco. Sinto um solavanco extremamente forte e algo em meu cérebro faz com que eu diga “bateu”.
– 2 –
“Senhor… senhor…”
Consigo levantar a cabeça com certo esforço e olho para fora do carro. Umas quatro pessoas estão me olhando. Parecem preocupadas.
“O senhor está bem?” pergunta a mulher de saia vermelha enquanto um homem com cabelos dreads e camiseta rosa abria a porta do meu carro e me ajudava a sair.
“Eu estava passando e vi seu carro parado”, disse ele, com um sorriso no rosto.
As outras pessoas se aproximaram e eu percebi um alívio geral ao constatarem que eu estava bem.
“Eu já estava ligando para os bombeiros para virem aqui. O senhor precisa de ajuda? Perguntou a mulher de saia vermelha.
“Não”
Todos me olhavam fixamente.
“Obrigado”
Fiquei observando enquanto entravam em seus carros e seguiam seus caminhos. Menos a mulher de saia vermelha que insistiu em ficar até eu entrar no carro e ir.
“Ix, vamos para o escritório”.
“Ix? Ix? Ix?”. Nada. O comando manual do carro estava acionado. Olhei o botão do start e acionei o veículo.
“Escritório”, falei.
Imediatamente o carro começou a andar pegando a estrada e indo em direção à cidade. “Algo aconteceu com Ix”, falei alto enquanto ia para o escritório.
A cor do prédio pareceu diferente, mais clara. A entrada do edifício também, o lugar parecia mais bem tratado, como se a manutenção fosse muito bem-feita. As reuniões, três delas foram rápidas e eficientes, só estranhei não ver Jon a manhã inteira.
Resolvi ir à sala dele. Bati e entrei.
Ele me olhou com cara de poucos amigos e eu perguntei “O que foi?”
Jon continuou me olhando como se não acreditasse que eu estava falando com ele. Fiquei sem jeito, mas continuei.
“Quando é o aniversário da sua filha?”
Ele afastou a cadeira da mesa e se levantou, olhando para algo atrás de mim.
“Que filha Roger?” Deu um sorriso sarcástico e continuou “Enlouqueceu?” Reparei um certo deboche enquanto se aproximou de mim e me olhou nos olhos, um olhar que, não sei o porquê, sustentei.
“Mesmo que eu tivesse família, nunca te convidaria para nada. Não somos amigos. Nunca fomos.”
Eu até pensei em perguntar o que estava acontecendo, mas algo dentro de mim fez com que eu ficasse quieto enquanto ele continuava falando.
“Você não gosta de mim e eu não gosto de você, certo? Sempre foi assim. Nós dois preferimos assim. Se você não fosse o sócio majoritário…”
Não disse nada, afinal, como li certa vez, ficar em silêncio é o primeiro passo para a sabedoria. Fui para minha sala, abri o cofre e li pela enésima vez o contrato. Voltei a sala de Jon e ele não estava mais lá. Mergulhei no trabalho, como sempre, pois as contas não se pagam sozinhas.
Rita entra na minha sala de repente parecendo bastante assustada.
“O resto do pessoal já foi embora, Roger. É melhor irmos também.
“Por quê? Pergunto surpreso”. Não tinha dispensado ninguém.
“Ainda não viu a tv?” Falou ela quase não acreditando em minha pergunta. Deu um tchauzinho com as mãos e se foi.
Liguei a tv enquanto me alongava na cadeira e vi que a situação mundial estava caótica. Guerras em diversos pontos do mundo e ameaças nucleares de lado a lado, levando a sociedade mundial à beira do caos. A economia praticamente destruída. A ancora da TV informava que milhões de pessoas haviam morrido nos últimos dias e que a última tentativa de paz havia fracassado fragorosamente. Tentei outro canal e as notícias eram as mesmas. Fiquei pasmo com aquilo.
É melhor ir pra casa pensei. Salvei meus trabalhos e desliguei o computador, olhei todo o escritório antes de sair e definitivamente, parecia maior que ontem. Não tinha mais ninguém. Peguei o elevador e fui direto para o estacionamento, entrei no carro, dei partida e fui para casa.
Me pareceu que levou menos tempo para chegar e que a casa estava menor, mas ainda tinha telhados verdes e a bela porta imponente. Entro e automaticamente deixo meus sapatos no armário ao lado da porta, vou para o quarto, tomo banho e visto roupas mais confortáveis. Chego na sala e vejo uma mulher de pijamas vermelhos. É loira e alta. Quase mais alta que eu, quase bonita. Ela se levanta e me beija na boca.
Eu a olho e sinto em minha alma que ela é a minha mulher.
“Você viu a merda que tá acontecendo, Roger?” Vai a geladeira, pega uma garrafa de suco de laranja, coloca em dois copos e volta para o meu lado, esticando o braço e me dando um dos copos. “Essas porras estão ficando doidos?”
“Parece que sim, Re.”
Me sento em uma poltrona e ela se senta no meu colo e me dá um beijo molhado. Olho para as mãos dela e para as minhas. As alianças são iguais. Jantamos uma sopa que ela preparou e ficamos conversando longamente à mesa. Ela levanta e me chama para nos deitarmos. Passo pelo descanso de tela no computador e vejo: Roger e Renata. Fico meio confuso.
Fazemos amor uma vez, duas, até ela e eu adormecermos. Acordo abruptamente pensando em Rose. Tem algo errado comigo? Foi um sonho a noite de ontem? Ou a de hoje? A mesma casa, a mesma empresa, mesmas pessoas, mas Renata e Laura são completamente diferentes. Ou não?
Tento sobrepor os rostos delas, mas não consigo, apenas o de Renata me vem a mente, eu a olho ao meu lado na cama e adormeço.
Acordo e vou tomar banho. Me visto, vou a cozinha e percebo a mesa posta para dois lugares. Somos só nós dois, nos dedicamos um ao outro, é assim agora e sempre o foi. Renata colocou nosso café, acho o sorriso dela lindo. Ganho outro beijo molhado na boca e digo que vou sair.
“O mundo tá uma doidera Roger. Tem certeza de que não quer faltar hoje e ficar comigo? Ela levanta e leva as xicaras até a pia e coça as nádegas. Olha para mim e sorri. “Tô com medo de ficar sozinha, amor.”
Eu a abraço e lhe digo no ouvido que mais tarde estarei em casa. Ela sorri.
Vou para o trabalho, entro no carro e falo: escritório e o carro vai em direção à cidade. Estou quase relaxando, observando a paisagem quando vejo algo estranho a minha frente. O que seria?
Em segundos percebo um nevoeiro, repleto de luzes. Ouço gritos e me apavoro. Um zumbido alto me traz de volta à realidade. O carro está dentro do nevoeiro e um facho de luz me cega completamente e por instantes lembranças estranhas me vem à mente, Rose e Laura, Renata. Sinto náuseas, percebo que estou desmaiando. Talvez seja pressão baixa, suponho.
“Parar o carro”.
– 3 –
Acordo com uma mulher de saia vermelha apertada e blusa branca perguntando se estou bem. O homem ao lado dela parece preocupado.
“Posso levá-lo ao hospital se o sr. quiser, Dr. Roger.”
“Não precisa Carlos. Foi só a minha pressão.” Respondo meio enjoado ainda.
Estou sentado atrás em um carro grande e estamos parados à beira da estrada com centenas de outros carros passando. A mulher de saia vermelha justa entra ao meu lado e me olha assustada. Coloca água em um copo e estende para mim. Percebo que a conheço de algum lugar, que a conheço bem.
Fico meio retraído pensando uma série de bobagens de reuniões, lugares. Olho a mulher, mas definitivamente não é Renata. Nem Laura, e mais uma vez um monte de lembranças me vem a mente.
“Chegamos” diz o homem.
Quando percebo, a mulher de saia vermelha e justa já saiu e me espera em pé ao lado ao carro.
Temos duas reuniões importantes hoje. Diz ela sem me olhar, me dando a impressão de sermos íntimos.
“Obrigado Sandra!”
Mas que droga! Onde estaria Ix, penso sem falar nada.
“Assim você me mata do coração, Roger.” Diz ela quando estamos a sós no elevador. Tira um lenço também vermelho da bolsa, molha na língua e passa em minha boca. Cuidado nesta reunião!
Antes de eu entrar ela me acompanha até a sala e a cada passo me atualiza sobre os acontecimentos políticos sociais que aconteceram no mundo. Tudo normal.
“Tem alguma guerra em algum lugar Sandra?
“Guerra?” Ela me olha nos olhos estranhando a pergunta. “Não! Tem certeza de que está bem?… Vou entrar contigo.”
Ainda fico alguns segundos do lado de fora da sala, algo me parece estranho, como se eu não devesse estar ali.
Sandra continua: “O que o sr. acha? Retiramos algum investimento pela manhã ou o sr. prefere ver o que acontece nas bolsas agora a tarde?”
“Vamos esperar”
Ela para na porta da sala de reuniões, espera alguns segundos e entra. Conheço aqueles rostos. Cada um deles. Sei suas histórias de vida e familiares, sei até onde posso confiar em cada um.
“Onde está Jon?”
Todos me olham, estranhamente e vejo que Sandra, a mulher de saia vermelha justa se aproxima de mim e com seu rosto e voz impassíveis responde.
“Quem, senhor?”
Foi o suficiente para eu entender que deveria me manter calado o máximo possível. As reuniões duraram quase o dia inteiro com decisões que, segundo eles, apenas eu poderia tomar. Saio da sala e vou para uma outra, mais espartana, ao lado. Minha sala. Entro no sistema computacional da empresa e vou direto na ficha da direção. Depois nas fichas dos empregados. Nada. Nenhum Jon.
Sandra entra com mais trabalho, mais tomadas de decisões e assim vamos até a noite. Me arrumo em frente ao espelho e saio da sala, minha secretária está em pé com a bolsa em uma mão e o casaco em outra. Descemos juntos de elevador e ela salta no andar de estacionamentos 1. Eu continuo mais um andar até o estacionamento 2, onde Sandra está me esperando. Ela parece ter mais de uma atribuição. O motorista está ao lado do carro e abre aporta para eu entrar e vejo que Sandra já está colocando o cinto de segurança. Vamos em silêncio para casa.
Pelo menos quatro homens me esperam na porta da casa. Comprimento um deles.
“Olá, Rui”
“Olá, sr. Roger”, ele responde.
O lugar é o mesmo, mas a casa parece gigantesca. Tem três andares dessa vez, diversas janelas e sacadas, mas a porta imponente continua ali, assim como o telhado verde.
Olho para trás e Sandra e o motorista parecem esperar algo, um sinal talvez.
“Obrigado e até amanhã”.
Vejo ambos acenarem e ir em direção aos seus carros. Fico observando-os até desaparecerem na estrada. Olho para Rui.
“Eu gosto de telhados verdes?”
“Senhor?” Rui pareceu não entender a pergunta simples.
Dou apenas um breve sorriso e subo as escadas para o segundo andar e entro em um dos quartos, o que me pareceu ser o meu.
Percebo que minha companheira neste lugar é a solidão. Desço e janto sozinho, apesar de ter pelo menos mais umas seis pessoas na casa. Olho a sala de jantar, o escritório e não tem nada relativo a uma família, a uma mulher, e uma lembrança peculiar me vem a mente. Sempre fui solitário.
Vou para o quarto e batem na porta. Uma senhora idosa entra com um carrinho de serviço onde eu vejo uma série de copos com líquidos, remédios e vitaminas diferentes.
Tenho pesadelos a noite toda, um nevoeiro intenso e algo grita meu nome. Tento correr, mas em meio a nevoa cegante, não tenho para onde ir. Droga, como fui sair do carro. Para que?
Acordo no final da madrugada, desço as escadas e vou correr pela propriedade. Um dos seguranças já está me esperando e vestido com um jogging, outro vem atras com uma bicicleta. É o preço que se paga pelo status social, penso.
Volto para casa uma hora depois. Tomo banho, vejo as notícias na TV, o que assusta alguns funcionários da casa. Escuto comentários dizendo que eu nunca tinha feito aquilo antes. Olho em uma série de canais para ver se tem guerras, ou convulsões sociais e onde. Nada que realmente interesse.
Depois de tomar café me visto e saio para ir para o escritório. Carlos a postos, carro a postos e Sandra, dessa vez com um belo vestido branco colado ao corpo, com listras finas vermelhas. Ela sorri para mim e eu reparo que ela não usa anéis nas mãos. Pergunto se ela já tomou café da manhã e ela acena positivamente com a cabeça. Entramos no carro e saímos para o trabalho.
Sandra vai me atualizando sobre a empresa. Então ouvimos Carlos, o motorista, dizer que entramos em um nevoeiro muito denso.
Me preocupo, algo me diz que já passei por algo parecido antes, olho para Sandra que parece assustada. Instintivamente ela pega minha mão e me olha. Eu a abraço e em um instante percebo que estou com medo também. Um facho de luz bem à nossa frente cega todos nós, é quando o carro para. Sandra sai automaticamente pela porta aberta, e eu não vejo o motorista. Abro minha porta e saio também, estou com o coração disparado e respiração ofegante.
“Que droga de nevoeiro” falo alto, sem perceber que estou só.
“Sandra”, chamo sem qualquer resposta. “Carlos”, chamo o motorista. Nada. Uma série de luzes piscantes me envolvem e algo grotesco parece chamar meu nome. Não seria apenas o vento? Penso todo arrepiado.
Continuo caminhando mais a frente, afinal não teria chegado aonde cheguei se deixasse que o medo tomasse conta em momentos difíceis. Tropeço em algo. Me abaixo um pouco e vejo Sandra desmaiada, Carlos também está deitado no chão uns passos a frente. Não posso deixá-los ali, no mato. Tento erguê-la e mesmo com dificuldade, consigo, depois volto para buscar o Carlos. Tenho que levá-los de volta ao carro onde tem certa segurança.
Então, outra vez, a luz me cega os olhos e sinto um impacto forte em meus ombros, um peso que nunca vi igual, faz com que eu desmaie.
– 4 –
Acordo ensopado de suor e vejo uma mulher de cabelos ruivos em um vestido vermelho, batendo no vidro da porta do meu carro e abro a porta com dificuldade.
“Oi Silvia.” Falo assustado.
“Oi Roger, que susto você me deu, cara. Pensei que estava morto.”
“Credo. Pensei que gostasse de mim.”
“E eu gosto”, disse ela retirando uma pequena toalha de mãos da bolsa e estendendo para mim. “Você dormia de boca aberta e com a cara encostada no vidro. Tomei o maior susto”, falou ao mesmo tempo em que me beliscava o braço.
“Não dormiu essa noite?” Ela me olha desconfiada.
Entramos no prédio velho e subimos as escadas, chegamos na sala do trabalho, tem mais doze funcionários além do chefe. Jon me olha apavorado e diz para eu ligar o computador rápido, pois o chefe está de olho. Tem uma pilha de tarefas que eu começo a fazer. Partes de projetos que eu e Jon fazemos com facilidade.
“Tá trabalhando rápido demais, Roger. Daqui a pouco vão querer que todos nós acompanhemos sua produção.” Jon me olhava preocupado.
“Não sei como não ficou rico trabalhando desse jeito”, falou Paulo, um outro colega. Mas a minha atenção estava agora voltada para o trabalho e nem tirei o intervalo do almoço para compensar o atraso.
No fim do expediente, enquanto alguns colegas ainda em seus postos de trabalho riam um pouco e outros já saiam, eu apenas fechei os projetos. Fiquei de olhos fechados um tempo e depois fui para o carro.
Nem lembro de como comprei o carrinho, mas fico contente de tê-lo. Em geral dou carona para Jon que fica na metade do caminho, mas hoje ele saiu antes e já pegou o transporte. Entro no carro, pego a chave e coloco na ignição e viro. Escuto o motor engasgar umas três vezes antes de partir. Sei que é sempre assim, procurei uns cinco mecânicos e todos disseram a mesma coisa, é um milagre que ainda funcione. Que saudade de Ix!
O engarrafamento está terrível, penso que devia ter saído no horário de todos. Vou perder mais uma hora no trânsito, melhor assim pois tenho tempo de passar no mercado e comprar alguma coisa para hoje. Lá dentro encontro Silvia, também comprando alguma coisa. Eu pego uns três pacotes de sopa e uma sopa pronta e mais algumas coisas que estão dentro do meu orçamento. Percebo que Silvia está feliz em minha companhia e vejo como está bonita no vestido vermelho. Ela quase todos os dias está de vermelho. Depois de pagar, no estacionamento eu me despeço e vou para casa.
Olho o conjunto de prédios e me contento por chegar em casa, a única coisa que estranho é a cor verde do lugar, mas comprei para meu apartamento uma bela porta que o distingue de todos os outros. Entro e ligo a TV, fico sentado em uma poltrona velha e um tanto puída, ouvindo as notícias do dia e não parecem nada promissoras. Os ancoras falam de três guerras existentes mundo afora e meu coração se enche de medo de sobrar para meu País.
Depois de tomar a sopa pronta, falo com Jon no telefone e ouço a gritaria dos quatro filhos dele, principalmente da menina mais nova. Ligo em seguida para Paulo, mas ele está tão bêbado que mal consegue conversar, e depois telefono para Silvia que está muito ocupada chorando e discutindo com o marido. Desligo e vou andar, apesar da eterna dor nos calcanhares.
Aproveito o parque ao lado do conjunto habitacional e no retorno passo na barraca de cachorros-quentes e compro um completo para mim, para a manhã seguinte. Foi o que o dinheiro deu para comprar.
Chego no apto, o 642, tomo um banho quente bem gostoso e demorado e coloco o relógio para despertar, deito em minha cama e apago.
Como em quase todas as noites tenho pesadelos. Alguns comuns, mas outros horríveis. Nesta noite foi sobre algo que se escondia em um nevoeiro, entidades estranhas em forma de luzes piscando que convivem com seres humanos. Ouço quando gritam meu nome e apesar de não conseguir vê-las sei que estão perto e que são capazes de coisas horríveis, inclusive de destruir qualquer ser vivo sem pensar. De início, em meus pesadelos, pensei se tratar de criaturas selvagens e desprovidas de intelecto, mas conforme os pesadelos continuavam, vi que se tratava de seres muito inteligentes para as quais o espaço-tempo era irrelevante, que habitavam locais interdimensionais, locais em que poucos homens já estiveram e nenhum deles jamais voltou. Criaturas que se incorporavam aos seres humanos se alimentando de seus corpos e de suas energias vitais, muitas vezes assumindo o lugar dessas pessoas. Aquele nevoeiro parecia camuflar um rasgo em uma intercessão de realidades, feitas de matéria exótica, e que coexistiam com a minha, realidades ou dimensões paralelas.
O dia claro me acorda, ainda é cedo pois o despertador não tocou. Tomo banho e vou para o trabalho. No corredor do prédio, lembranças do pesadelo estão vividas, mas que diacho, como sei aquilo tudo?
Desço pelo elevador que está sempre rangendo, entro no carro e pego a estrada. Não demora muito ouço um barulho estranho, um zumbido, ando mais um pouco até ver o nevoeiro. Paro o carro a beira da estrada, saio e fico observando o nevoeiro se aproximar e algo dentro de mim parece se inquietar. Algo sussurra em meus ouvidos.
“Por que telhados verdes?”
O nevoeiro tomou conta de tudo agora, não enxergo meio metro a minha frente, então luzes piscantes começam a aparecer e algo chama o meu nome. Fico em silêncio, afinal estou com muito medo. Parecem querer conversar comigo.
“Por que sempre portas diferentes?”
Estou irritado com aquilo e grito para se calarem. Alguém grita o nome de uma mulher e sussurram em meu ouvido.
“Por que gosta de mulheres que vestem vermelho?”
Diversos carros começam a parar com versões parecidas, mas diferentes de mim. Decido não responder. Fecho os olhos esperando o nevoeiro e as luzes passarem, sinto a vida se esvaindo em mim, mesmo assim a criatura tenta uma última vez me perguntar.
“Por que…? “
Fim
Um conto de Swylmar S. Ferreira. Em 06 de janeiro de 2025.
Imagem construída por IA.