Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Estava realmente escura aquela noite! Talvez fossem as nuvens que cismavam em cobrir praticamente todo o céu da cidade, talvez fosse a iluminação deficiente dos últimos anos, afinal era a guerra, se é que podíamos chamar assim, enfim podia ser qualquer coisa. Naquele momento o que eu queria era chegar em casa e isso estava difícil de acontecer, pela distância e pelo perigo.
Desço a alameda o mais rápido que posso, ainda vendo alguns jovens correndo pelas ruas, visivelmente desesperados, tentando chegar em suas casas enquanto os alarmes ecoavam pela cidade.
Uma barreira feita pela polícia da cidade estava à minha frente e fez com que eu parasse repentinamente e me escondesse em um portão fechado. Noto algo errado! Não havia ninguém ali. Se houvesse estaria preso ou coisa pior. Os policiais haviam dado no pé. Se mandaram com medo. Todos sabiam que à noite ninguém era de ninguém.
Saio correndo em direção ao prédio onde moro na área habitacional sul/sudeste na cidade. Corro o mais rápido que posso, as costas doem demais naquele momento. Tinha poucos minutos até que as luzes da cidade se apagassem por completo e reinasse a escuridão. Então portais poderiam se abrir e toda a sorte de coisas poderia acontecer. Nem os Dimmens estariam a salvo. Assim era o multiverso!
Chego na portaria ofegante quase ao mesmo tempo que uma família. Os reconheço imediatamente. Moravam no décimo sexto andar. O terror nos olhos do homem e das crianças era indescritível. Já a mulher, parecia um bloco de gelo.
– Vai subir também? – ela perguntou friamente, olhando os arredores como se vigiasse algo, se esperasse algo.
Eu estava aterrorizado. Suando frio e tentando esconder minha arma para que os dois filhos deles não vissem. Reparei de novo no rosto dela. Seja lá o que for o que ela estivesse esperando teria uma surpresa desagradável, pensei por um par de segundos, porque aquela mulher tinha tudo para ser um dos Dimmens – os soldados dimensionais.
– Sim – respondi ofegante – Vou para o vigésimo quinto andar.
– Eu sei – ela falou quase inaudível, apertando os botões da cabina do elevador. – Calma – disse para a família enquanto saiam atrás dela no décimo sexto andar. Colocou uma das mãos na porta do elevador enquanto a outra segurava algo entre o casaco e as suas costas, e me dirigiu a palavra.
– Cuidado, eles estão chegando.
Eu estava perplexo. Não falei nada. Não tinha tempo, nem vontade. O elevador continuou a subir e começou a me dar calafrios de medo. Terror mesmo. Estava com medo de ficar preso ali dentro. Sozinho! Não fiquei!
A porta do elevador abre e eu corro até a porta do meu apartamento, tiro o cartão do bolso, abro a porta e entro. Respiro fundo ao menos uma dúzia de vezes, olho o cronometro na parede em frente à cama. Faltam trinta e sete segundos para que a energia seja cortada na cidade. Skreet me olha assustado e mia enquanto eu tiro apressado as roupas, amontoando-as na poltrona.
Olho a mesa de cabeceira ao lado da cama e os remédios estavam como os deixei. Pego a caixa aberta e tomo uma ampola com um líquido viscoso amarelo, um tipo de analgésico para a coluna, que teima em doer, e que ao mesmo tempo ajuda a dormir. Me jogo na cama e me cubro. Skreet pula em seguida e tudo fica escuro. Isto é, se pode existir escuridão nos mundos, nos universos dominados pelos Dimmens. E o nosso pobre mundo estava entre seus domínios.
Eu sabia que tinha sido seguido. Ou pelo menos observado. Ataques feitos contra as organizações pró-Dimmens, ou colaboracionistas, são muito malvistas por eles e com sua alta tecnologia eles procuram apagar os autores dos tais ataques.
Eles costumam usar microdrones para vigiar aqueles da população nos quais há interesse. Essa indicação é feita em geral pela polícia política das cidades-estados. Mas no meu caso tenho um pequeno embaralhador que me possibilita uma certa liberdade. Não completa. Apenas relativa. Liberdade é algo do meu passado distante do qual realmente sinto falta.
Para dizer a verdade, nada sai na imprensa oficial, nem nas redes de comunicação. Redes sociais na maior parte dos mundos tomados ou invadidos pelos Dimmens, chame como queira, são extremamente vigiadas.
Começo a ficar sonolento quando percebo que algo ou alguém está dentro do meu apartamento. Não consigo ver direito, seja pelo remédio seja pela tecnologia alternativa dos invasores. Uma luz fina, amarela, quase imperceptível, aparece de lugar nenhum e mira em minha arma na cabeceira. É um escâner, um Dimmen estava em um portal dimensional que terminava ali. O remédio impede meu coração de disparar e permaneço o mais imóvel que posso.
Fosse quem fosse, soube na hora que a arma era autorizada. Deu um passo na direção dela, mas um segundo Dimmen mais dentro do portal dimensional falou algo e ele deu um passo atrás, evitando tocar na arma. Eu estava com os olhos fechados, muito sonado.
O escâner passou por Skreet que levantou a cabeça, mas não deixei que o gato se levantasse. Eu mesmo balancei a cabeça para os lados quando fui escaneado. Abro levemente os olhos e vejo uma sombra azul avermelhada borrada procurando por algo que certamente não estaria ali. Então as sombras azuis-avermelhadas desapareceram. Elas sumiram como surgiram, levando o zumbido fino e eu apenas adormeço.
Eita remédio bom.
***
Acordo com o sol nascendo e com barulho ao longe. Parecem explosões, quase inaudíveis, apenas leves estrondos, e vejo colunas finas de fumaça que sobem a muitos quilômetros de distância. Em algum lugar, algum grupo de humanos insistem na luta contra os Dimmens e seus colaboracionistas, penso. Ou era algo pior, a guerra mesmo.
Há tempos os Dimmens haviam encontrado outra civilização de conquistadores no multiverso. Os Dimmens ao menos eram humanos, essa outra civilização era composta de criaturas de diversos tipos e eu e meu grupo havíamos decidido aproveitar o momento para atacar os Dimmens internamente e tentar voltar para casa. Como todo o sistema deles é interligado, se conseguíssemos capturar um drone, poderíamos começar a acessar o sistema deles.
A verdade é que na noite passada perdi parte da célula que havíamos recém formado, isso é, perdemos dois dos cinco do grupo, e tão cedo não ia me arriscar em outra tentativa de ação para voltar para meu mundo natal.
Tinha voltado para casa só pelo gato, já havia decidido que iria colocar Skreet na caixa de transporte e me mandar dali o mais rápido possível para qualquer lugar. Meio do mato, praia deserta, destino ignorado mesmo, se a cidade não houvesse sido sitiada.
Nunca tinha visto aquilo, os Dimmens colocaram uma redoma de energia que agora cobria a cidade e os habitantes olhavam apavorados.
Não poderia um simples ataque à sede da organização colaboradora cidadã – OCD – da cidade, que nós havíamos feito, ter causado aquilo. Principalmente porque tudo na cidade, ou quase tudo, pertencia a eles e todas as pessoas, ou quase todas, trabalhavam para eles. E o estrago havia sido mínimo, apenas nas portas laterais. O que estava acontecendo? Não havíamos explodido nada. Tinha algo mais acontecendo ali.
Veículos Dimmens cruzavam os céus da cidade para todos os lados. Centenas deles, eu estava impressionado.
Não ia adiantar em nada ficar escondido no apartamento – pensei e olhei o timer no pulso. Certifiquei-me que estava cronometrizada com o do apartamento e fui andar, afinal, tinha meus compromissos.
Atravesso a avenida que separava a área habitacional sul/sudeste de downtown e entro no enorme parque central da cidade por onde o Rio Doce passava. Ando mais algumas centenas de metros chegando quase à margem. Adorava o local, tanto pelo som do rio passando, quanto pela margem cinematográfica do rio correndo. Sento-me em um banco parcialmente ocupado por um jovem casal. Eles estavam abraçados e à primeira vista nem notaram o homem perto deles jogando algumas sementes ao chão para os pássaros que chegavam perto para comer.
– Você também não conseguiu?
A mulher agora em pé olhava no videofone enquanto aparentemente falava com alguém. Deu risadas das respostas da pessoa do outro lado da linha enquanto eu respondia em negativa muito baixo.
– O que vamos fazer agora? Aquele idiota do número 9 atirou no guarda sem motivo. Íamos só nos apropriar de um ou dois drones que eles talvez nem sentissem falta. Ninguém nunca falou em atirar em alguém.
Olho para o homem sentado a meu lado que nervosamente coçava a cabeça.
Continuo em silêncio por um tempo. Os pensamentos corriam rápidos em minha cabeça. É claro que eles sentiriam falta dos drones se os tivéssemos apanhado, mas explodir a porta lateral de entrada era outra coisa. Não estaríamos aqui se tivéssemos feito isso. Além disso, o número 9 tomou a decisão certa. Ele não esperava que houvesse um guarda da OCD lá, nunca havia. O guarda disparou a pistola de plasma quando o viu, o que fez com que o número 9 atirasse também.
– Por que ele não detonou o explosivo?
Prefiro não responder nada. Ao invés disso pergunto:
– Estamos sendo vigiados?
Olho para o lado e vejo o rapaz de olhos fechados, fingindo dormir ou apenas relaxando ao sol. O jovem, que eu conhecia apenas como 6, coloca óculos especiais e escaneia o céu à procura dos microdrones.
– Estão em cima de nós – disse entredentes – quatro deles cobrindo tudo. O que houve com você? – Perguntou diretamente.
– Os Dimmens me seguiram ontem, fizeram uma ‘visita’ em casa e eu não consegui sair. E vocês?
– A casa foi invadida, estava cheia de policiais – continuou 6 – estamos na minha mãe, aqui na cidade. Estamos seguros por enquanto. Se não nos vermos amanhã, sabe que a ‘casa caiu’.
O grupo havia sido formado pelo que eles chamavam de 9. Haviam chegado a conclusão que não deveriam se conhecer pelos nomes e preferencialmente não saber nada uns dos outros. Mas conhecia o 9 há muitos anos. Logo no inicio 6 e 7 começaram a namorar e estavam juntos e o número 8 fugiu antes de tudo começar. Ou seja, o planejamento não deu muito certo.
O rapaz se levantou, tirou os óculos-D do rosto, deixando-o no banco. Abraçou a moça e foram andando devagar e despreocupadamente pela calçada do parque central da cidade. Fico sentado ali olhando enquanto se afastavam até saírem do parque. Chego a ficar em pé para ir embora. Ir para casa. Mas não tinha família. Não mais.
Abro a bolsa a tiracolo, estico o braço e apanho os óculos-D colocando-os na bolsa, e pego um embrulho. Vejo pelo visor do timer adaptado que um dos microdrones automaticamente trocou de posição, começando a descer. Desembrulho o pacote e começo a comer o sanduiche de ‘tem de tudo’ que havia trazido.
Enquanto comia, um dos microdrones se aproximou ousadamente. Era do tamanho de uma mosca e me filmava. Paro de mastigar, engulo e mando um beijo para o guarda que me observava, fosse quem fosse.
– Já te contei como aconteceu essa cagada? – falo com a boca ainda cheia.
Estava falando com o microdrone parado a cerca de um metro e meio à frente e um pouco a direita. Dou um risinho idiota, seguido de um belo sorriso. Ajeito os cabelos esbranquiçados com a mão dando outro belo e maroto sorriso, daqueles que os meninos dão aos pais quando são pegos fazendo traquinagens.
– Desculpe! Tenho que me apresentar melhor pra você – disse sorrindo novamente em direção ao pequeno objeto – estou parecendo um pedinte, não é?
– É a primeira vez que conversamos diretamente, certo? Pode me chamar de João. João Carlos Prates Hidalgo, mas pra você – ficou observando um segundo microdrone maior ficar ao lado do primeiro – pra vocês – apontou para as duas máquinas – é só João.
– Isso começou em outro mundo, no multiverso. Em um Centro de Pesquisas, onde um grupo de colegas meus estudava uma coisa chamada portais dimensionais, universos paralelos ou como chamamos… multiverso. Eram gente séria, com um grande orçamento e uma fonte de energia muito boa.
Olhou para os drones enquanto dava uma última mordida no sanduiche. Os aparelhos pareciam esperar pacientemente que mastigasse e engolisse, sorriu de novo.
– Engraçado como o que foi ficção há apenas 20 anos hoje é a nossa realidade. A interpretação dos muitos mundos, como vocês sabem, isso era inimaginável.
– Bem! Esses meus colegas estudavam a fundo isso e principalmente, um jeito de provar em laboratório a existência de universos infinitos. O multiverso! E depois de décadas fazendo um trabalho sério, eles conseguiram. Abriram uma porta bem pequena, por meio da qual conseguiram observar um outro universo. Um bem parecido com o nosso. Idêntico, para dizer a verdade.
– Não conheço detalhes, soube apenas que a pesquisa tinha muito a ver com energia e frequência. Então variaram essa energia usada nos equipamentos do laboratório, assim como a frequência e descobriram outro universo, depois mais outro.
– Soube que descobriram dezenas deles. Dezenas de possibilidades, mas sempre observando o mesmo mundo, ou seja, o nosso. Eram variações do nosso mundo no multiverso. Alguns eram muito parecidos, com pessoas exatamente iguais a nós, vivendo vidas quase idênticas, com detalhes diferentes, escolhas diferentes, outros completamente distintos. Alguns extremamente perigoso. Para que tenham uma ideia, em um deles insetos gigantes eram a civilização dominante, em um outro universo a civilização dominante era de repteis. Em alguns as civilizações ainda estavam sem evoluir, outros com evolução lenta onde os homens eram apenas caçadores/coletores na natureza. Eles viram muitos.
– Mas em um desses universos, uma civilização muito mais adiantada se destacava pela crueldade e beligerância, eram conquistadores cruéis. Nós devíamos ter encerrado o experimento naquele momento, enquanto, teoricamente, não havíamos sido notados.
– Os Dimmens, como se chamavam, eram humanos como nós só que muito mais adiantados tecnologicamente falando. Sua ciencia os levou a conquistar dezenas de mundos e sistemas solares do seu universo, mas não era apenas isso o que queriam. Como nós, perceberam o multiverso, só que milênios antes de nós.
– Observaram que em outros mundos do multiverso outras civilizações, como a deles, poderia despontar e ameaçar seu modo de vida, suas conquistas. Decidiram então partir para o multiverso e conquistar. Sua imensa tecnologia possibilitou abrir portais gigantescos e atravessá-los em suas máquinas de guerra.
– Fizeram isso centenas de vezes, procurando civilizações que, como eles, houvessem enveredado nessa direção e os conquistaram.
– Então, para nosso azar, nossa pequena experiencia de laboratório foi detectada pelos Dimmens. Obvio o resultado! Quando uma civilização muito mais avançada tecnologicamente entra em contato com outra incipiente, o que acontece?
– Essa pergunta foi para você do microdrone maior. Você é um Dimmen? Não importa. Todos conhecemos o resultado, mas algo deu errado em algum momento, não foi? Seja lá o que for causou a guerra com as criaturas e agora vocês, Dimmens, estão sendo atacados por eles, não é? Por isso a redoma?
Fico observando os microdrones se afastando aos poucos, até que ficam fora do campo de visão. Ainda os procuro com os óculos-D, mas eles haviam ido. Provavelmente não me acharam uma ameaça tão grande assim.
Estava muito quente. Olho para o céu azul, sem nuvens. Nenhum sinal de vento. Caminho até um local onde o Rio Doce era acessível por meio de uma pequena praia de pedras, me agacho e lavo o rosto. Bebo um pouco de água usando as mãos em concha. Limpa! Era uma das muitas vantagens de ter sido conquistados pelos Dimmens. Eles haviam praticamente despoluído aquele planeta. O lado ruim era a guerra.
Saio da praça e vou andando até em casa para ver Skreet. Dou a ração e pego um petisco, colocando ao lado da vasilha. Olho pela janela e fico pensando se vou ou não para o trabalho.
– Não! Hoje não.
Pego o elevador e desço. No 16 entra a minha vizinha “predileta”. Ela está uniformizada e armada. Dou um sorriso e pergunto como foi a noite. Ela não responde, mas esboça um sorriso mínimo.
– Você vai ao OCD? – Ela pergunta sem me olhar.
– Hoje não – respondo diretamente.
– Cuidado com a procuradoria interna. Estão realocando funcionários sem pensar… Ou coisa pior.
Me faz um cumprimento levantando levemente a mão enluvada. Pelas marcas no uniforme, ela era de algum grupo Dimmen de vigilância externa, outro lugar no multiverso. Eram proibidos de atuar nas cidades ou mundos onde residiam.
Cruzo com as pessoas nas ruas da cidade e vejo de tudo em seus olhos, desde o terror até a simples negação. Aqui é apenas o lugar onde vivem. Só isso. Um mundo novo estranho e louco.
Paro no transrodo e fico esperando o primeiro transporte. É um dos transportes terrestres automáticos, entro e a inteligência artificial me escaneia – detesto a luzinha amarela surgida de não sei onde – começo a rir. Uma senhora sentada em um dos bancos sorri de volta. A reconheço imediatamente, ela faz parte do grupo coreano.
– Não vai trabalhar hoje João?
– Bom dia Há-Na – continuo sorrindo – Como foi seu fim de semana?
– Sozinha – ela continuou sorrindo e me olhando.
– Eu também. O Skreet continua me dando trabalho. Mas é bom ele morar comigo.
Ela sorriu. Conheci o marido dela. Ele foi neutralizado pelos Dimmens logo que chegamos. Diferente de mim ele era corajoso e não se adaptou ao novo sistema, muito menos à nova cidade, se manifestou e foi punido.
Os Dimmens, quando nos conquistaram, e olha que foi muito rápido, pelo menos no meu mundo, fizeram os realocamentos logo de cara. Em menos de um ano já haviam realocado centenas de milhões de humanos para outros locais do multiverso. Segundo eles, esses realocamentos eram necessários para promover a integração com o planeta central no que eles chamavam de Universo Di.
Aqui em nossa cidade eles integraram pessoas dos Universos Zo, Tram e Kro e, a menos que você trabalhe em setores essenciais da OCD, nunca saberá de onde as pessoas vieram. Do nosso planeta, da Terra, eles trouxeram pessoas de todos os lugares. Quando passei a trabalhar na OCD descobri que eles dizem que somos do Universo Zo.
Há-Na e eu ficamos conversando e acabei indo para o trabalho mesmo sem o ‘lindo’ uniforme. O dia passou voando, ligado na Inteligência artificial da OCD na maior parte do tempo. Agora só penso em ir pra casa, alimentar o Skreet e deixar ele ir dar uma volta no andar.
***
Já é metade da noite e outra vez não consigo dormir. Pego os explosivos que devíamos ter lançado contra a OCD na noite anterior e coloco de volta na bolsa tiracolo. Preciso me livrar disso, só não sei ainda onde.
Novamente sirenes começam a tocar na cidade, indicando que nossa nova casa não é tão segura assim. Os circuitos de TV internos da cidade as vezes mostram em tempo real para a população o que eles consideram perigo. Dessa vez mostram um grupo de adolescentes em uma quadra de esportes, jogando bola de madrugada. Não sei não, acho que a coisa está mais séria do que eles pretendem mostrar.
Perdi o sono e decido que é melhor fazer alguma coisa do que ficar em casa e saio para andar.
Caminho sem destino pelas ruas da cidade há mais de uma hora e as sirenes continuam tocando. Acho que fui enganado pela rede de segurança da OCD, não deviam ser apenas garotos jogando bola. Um estampido enorme acontece na rua a uns cem metros à minha frente e me escondo atrás de um dos transrodos na avenida. Vejo um grupo de Dimmens, seis deles saindo de um portal recém-formado. O barulho é muito alto e não param de atirar em alguma coisa. Ainda bem que o setor de moradias é longe daqui.
Me levanto para ver melhor e vejo um segundo portal, maior, de coloração diferente. Chego mais perto do segundo portal aberto e o que vejo me amedronta ainda mais.
Os soldados Dimmens estão atirando em duas criaturas monstruosas. Os seres avançam sobre eles e o primeiro soldado é estraçalhado no meio da rua. O segundo soldado consegue se esquivar do que parecem ser lâminas e saltar sobre uma das criaturas e nesse salto sensacional a trespassa de cima para baixo com algo estranho e lindo, meio lâmina, meio plástico, um tipo de material luminescente, eliminando-a.
A primeira criatura neste momento já abocanhou um terceiro Dimmen que atira com seu rifle de plasma e dividiu em dois, com uma lâmina, um quarto Dimmen que parecia paralisado por algum motivo.
Os Dimmens foram neutralizados na hora. Confesso estar impressionado com aquelas coisas. Eram grandes, fortes e feias.
Vejo os outros dois Dimmens correrem e entrarem no portal. É uma fuga? Ou apenas uma distração? A criatura tenta interceptá-los, mas o portal se fecha e eles desaparecem a tempo. Era uma fuga pensada.
Os dois portais não estão mais ali. A criatura parece desorientada por alguns segundos, estava presa ali. Estariam os portais ligados de alguma forma? Mas a luta ainda não terminou.
A criatura consegue apanhar o último deles, o que matou seu companheiro. O Dimmen não para de atirar com um disparador de plasma na armadura da criatura, que visivelmente vai ficando muito danificada. O Dimmen é jogado na minha direção, fazendo seu corpo bater contra o muro de pedras da rua a dois passos de onde estou. Consigo ver os olhos aterrorizados da mulher dentro da armadura, pela lente de proteção quebrada do capacete. Ela tenta se levantar e pegar o disparador de plasma mas, apesar da proteção, percebo que algo se quebrou nela. A criatura também percebe e salta sobre ela.
Eu a puxo com toda a força, fazendo com que a criatura atinja apenas o asfalto duro e frio da noite. Sou notado por ela que arremessa algo contra mim. Abaixo-me a tempo, conseguindo evitar umas cinco ou seis lâminas lançadas que atingem as pedras do muro.
Pego o explosivo, digito meu número na célula e jogo com bolsa e tudo na criatura. Ela pega a bolsa e parece surpresa quando percebe o que é. Mas é tarde demais. A explosão destroi sua cabeça e a neutraliza.
Ainda estou tremendo de medo. Arrasto a Dimmen e a encosto no muro, tiro seu capacete quebrado e vejo seu rosto.
Ela diz algo parecido como família, sorri e toca minha mão. Eu apenas a observo. Ela me lembra alguém. Sento perto enquanto ela tira as luvas e seguro suas mãos.
– Obrigado – ela diz.
Agora consigo compreender. Observo melhor a mulher e vejo a energia voltando na armadura. Ela vai ficar bem.
– Por nada. Seus amigos vão voltar logo e eu preciso ir.
Me ocorre que não devo deixá-la, ela viu meu rosto e me identificará em segundos quando os outros chegarem. Ela vê o disparador de plasma na minha mão, mas olho em seus olhos e digo a ela que não.
Eu não faria isso. Não sei o porquê.
Aponto na direção da avenida e mais um outro portal trans dimensional está abrindo. Diversos aero transportes estão chegando ao mesmo tempo. Coloco a arma em suas mãos, ela parece não entender.
– Fique quieta até eles chegarem, cuidado.
Pego as lâminas que a criatura lançou contra mim, me levanto e vou embora meio escondido na escuridão da madrugada, o mais rápido que posso na direção contrária ao portal. Vejo no chão dezenas de microdrones abatidos quando da abertura do segundo portal e o que restou da criatura depois da explosão. Os Dimmens estão carregando tudo para um dos transportes. Amanhã não haverá nada nessa avenida de diferente, sem dúvida eles não querem que a população saiba o que acontece de verdade.
Em casa pego as lâminas lançadas pela criatura e fico olhando. Elas brilham no escuro e eu não havia percebido, são lindas, de que material seriam feitas? Penso em ficar com elas para mim. Skreet mia longamente e eu abro a porta do apartamento para o passeio matinal dele.
– Tenho um encontro no parque central da cidade – murmuro em frente ao espelho antes de deitar e dormir por um tempo.
***
Manhã fria! Talvez fossem as nuvens escuras que cobriam todo o céu da cidade, talvez fosse a ausência do domo de proteção. Abro a porta do apartamento e vejo Skreet sentado do lado de fora da porta, não sei por que não entrou na porta do pet. Está com cara de zangado. Ele entra e vai comer, depois se esfrega em minhas pernas e vai para nossa cama.
Vou até o parque central da cidade, prestando bastante atenção nos microdrones e nos aerotrans que circulavam os céus do lugar. Dou um sorriso quase que imperceptivelmente. Passo por um transrodo repleto de pessoas e identifico meus conhecidos 6 e 7. Podia apostar que pegariam o primeiro transporte, para qualquer lugar que fosse.
Vou até aquele banco da praça como todos os dias e me sento. Uma mulher uniformizada senta quase que imediatamente. Cabelos soltos e sorriso aberto, ela está com uma faixa no braço esquerdo e parece bem à vontade comigo, percebo isso em seu sorriso.
– Você está melhor? – Pergunto sorrindo também.
Ela me olha diretamente e continua sorrindo.
– Sim – continua olhando o Rio Doce passando a uns dez metros à nossa frente – você foi muito corajoso.
Fico um tempo olhando a mulher. Agora na luz da manhã, os cabelos negros brilhando ao sol presos em um coque, o mesmo sorriso, tenho certeza do porquê ela me parece conhecida.
– Faria qualquer coisa por você. Pelo menos pela sua “eu” do meu mundo.
– Eu sei – ela sorri.
Um aerotrans para a nossa frente
– Você deve ir para seu trabalho agora. Só vim ver você.
Ela se levanta e vai na direção do transporte e entra. Só veio me ver.
Quando eles se vão eu levanto e procuro meu microdrone preferido. Ele está lá, no alto, maior que os outros. Observando. Levanto a mão e aceno. Vou até a prainha, molho o rosto e bebo um pouco de água. Minha rotina diária.
Estranho, mas nada de prisão, nem de ser levado a força para outro lugar…
Na OCD, me designam para um prédio diferente, um andar subterrâneo desta vez. Todos sabem que os andares subterrâneos são dos Dimmens. Ainda não tinha visto aquela parte do complexo. A plataforma, como todas as outras, é muito clara e vejo diversas pessoas ligadas nela pelas toucas neurais.
As inteligências artificiais dos mundos dominados pelos Dimmens se interligam de algum modo pelo multiverso, creio que aí está parte de sua eficiência. A plataforma não é apenas um escâner, sinto como se fatiasse meu cérebro, procurando em minhas memórias por todos os detalhes que eu vivi nos últimos tempos.
Fim do dia, pego um aerotrans, vou para downtown e ando sem rumo por inúmeras ruas. Paro em um restaurante para comer e vejo 6 e 7 ocupadíssimos. Ela está na cozinha envidraçada, ele servindo mesas, peço um sanduiche enorme e como, peço um suco também. Ela passa e aponta para o enorme vídeo na parede do lugar e eu não entendo. Fui lá por achar que eles precisam saber que ainda estou vivo. Acidentalmente encontro a família do 16 andar jantando. Eles parecem me ver pois acenam e sorriem para mim. Apontam para o vídeo também. Minha imagem aparece salvando a Dimmen e explodindo o invasor. Me tratam como um exemplo. Vejo a reportagem mais umas dez vezes antes de levantar e ir embora. Ninguém pergunta dos explosivos? Nem comentam sobre isso? Fico chocado ao perceber que aquilo para eles simplesmente não importa.
***
Acordo com o barulho dos transrodos na avenida da área habitacional sul/sudeste. Vou até a varanda e abro a janela, o vento frio bate em meu rosto enquanto Skreet se esfrega nas minhas pernas querendo sua comida.
Saio do apartamento e do prédio onde cumprimento alguns vizinhos que estão indo trabalhar. Atravesso a avenida e conforme meu ritual diário, entro no enorme parque central da cidade por onde o Rio Doce passa. Vejo 6 e 7 de mãos dadas no banco e hoje vou direto para a prainha onde molho as mãos e bebo a água límpida do Rio Doce enquanto olhos as montanhas nevadas ao longe.
Vejo minha nova amiga sentada na grama tomando sol, tentando ajeitar o braço enfaixado e vou até lá. Ela está linda sem uniforme.
Ouço também o que parecem ser explosões, quase inaudíveis, e vejo colunas finas de fumaça ao longe e me levanto para ver melhor.
– Dimmens – falo baixinho.
Fim
Um conto de Swylmar dos Santos Ferreira em 27 de julho de 2024.
Imagem gerada por inteligencia artificial copilot.