Blog para contos de ficção científica, literatura fantástica e terror
Fechei a porta do apartamento pela última vez, nem tranquei. Não sabia se estava melancólico ou excitado com a viagem. Feliz eu estava, já que iria reencontrar a mulher da minha vida. Era 16 de novembro, justo naquele dia eu completava mais um aniversário e estava na última turma do traslado.
Sempre achei estranho o uso do termo “traslado”, já que a famosa viagem não passava de, literalmente, um passo. Mas apesar de muita coisa errada poder acontecer, e essa desde o começo foi minha preocupação, eu realmente queria encontrar Laila.
“Um passo? – Perguntei certa vez ao recenseador, um dos inúmeros funcionários que cuidavam dos convocados para remoção para o novo mundo.”
“você sabia que na realidade não se trata de dar um passo?”
O homem olhou ao mesmo tempo sorridente e cansado. Parecia ter respondido aquela pergunta milhares de vezes a milhares de pessoas. Deu-me a impressão de estar bastante irritado. Aquelas irritações que surgem tão repentinas quanto desaparecem nos seres humanos e que se não tomam cuidado acabam dizendo bobagem, ou pior ainda fazendo alguma tolice e depois jamais se perdoam. No caso, um simples menear positivo de cabeça seguido de um “sim” quase inaudível como resposta.
Isso foi há muitos anos quando Laila foi convocada para a remoção.
E eu repetia a mesma coisa agora ao fechar a porta do apartamento. Desci os cinco andares das escadas e sai para rua deserta indo lentamente até o local do traslado.
Não era tão longe assim e ao longo dos últimos dez anos as imensas filas de remoção foram se tornando cada vez menores e hoje provavelmente teriam poucas pessoas na fila.
“Parece feriado, nem cachorro tem andado nas ruas” – disse começando a ficar mal-humorado.
Parei em meu café predileto. Estava fechado, é claro, e há muito tempo. Levantei uma das cadeiras empoeiradas que estava jogada no chão e me sentei. Ergui também uma das mesas de ferro e coloquei minha mochila em cima dela e uma pequena sacola com um presente para Laila.
É claro que não encontraria pets nas ruas, eles também haviam sido removidos. Em breve no planeta Terra não haveria mais vida, ou quase nenhuma.
Na rua um casal apressado passou arrastando uma criança que aparentava ter uns sete anos. Me levantei e até mesmo iria falar algo quando o homem pegou a criança no colo e andaram cada vez mais rápido em direção ao local do traslado. Me sentei de novo, olhei para o relógio, ainda faltava muito. Tirei uma garrafa térmica com café da sacola, abri e coloquei um pouco do conteúdo em um pequeno copo que servia de tampa e bebi.
Fazer parte do último grupo significava que, ou tinha feito algo errado ou era um dos pesquisadores do projeto traslado e era essencial minha permanência até o último instante. No meu caso eram as duas coisas.
Apesar de não ser um dos pesquisadores principais, havia participado ativamente nos projetos dos portais e depois nas montagens dos tuneis, principalmente do 18. Isso me facilitaria ser um dos primeiros a ser trasladado, mas eu e um grupo de cientistas discordamos do modo como estavam sendo escolhidas as pessoas para o traslado e então fomos tratados como descontentes, rebeldes mesmo, e deixados para o grupo final.
Assim é a vida! Tomei um gole pequeno do café e senti o vento no rosto. Olhei para o céu e mesmo nublado pude sentir o calor ardente do sol.
Um outro homem veio atravessando a rua. Era Mário um velho conhecido, trabalhamos juntos diversos anos.
“Olá, Adalberto! – Me olhou entristecido – Como chegamos a isso? – Disse ele em tom meramente casual – que merda!”
“Eles não escutaram – falei rindo – beba um café.”
Mário tirou uma pequena caneca do bolso do agasalho, agradeceu enquanto se servia.
“É que você e aquele grupo pareciam loucos.”
O olhei sério por alguns instantes.
“Parecíamos? Tem certeza? Ou éramos apenas um grupo de pessoas que não acreditávamos em bondade demais. Você nunca parou para pensar que foram muitas coincidências?”
Fiquei olhando o homem por alguns instantes. Era uma físico respeitadíssimo. E continuei falando.
“Não existe almoço grátis Mário! – Continuei olhando sério nos olhos do homem à minha frente.”
“Não – disse Mário se levantando e terminando o café. Balançou a caneca e a guardou de novo no bolso.”
“Adalberto, tenha em mente que o que nós acreditamos ser a realidade é apenas uma questão de percepção. Veja a grandeza do nosso trabalho.”
Deu-me um grande abraço. Provavelmente nunca nos veríamos de novo. Deu-me também seu melhor e mais sincero sorriso.
“Boa viagem Adalberto!”
“Boa viagem, Mário!”- Respondi com sinceridade e sorrindo também.
Ele estava certo! Sempre esteve! Tudo é uma questão de ponto de vista! Até mesmo no fim. Fiquei vendo de longe Mário se juntar a um pequeno grupo de pessoas que iam em direção ao local do traslado. A resposta à minha pergunta era fácil e Mario sabia muito bem disso.
“Sim, parecíamos loucos”. Respondi em voz baixa para mim mesmo.
Ele desde o início pertencia ao grande grupo de pessoas que acreditavam nos que estavam do outro lado do portal.
Olhei no antigo relógio de pulso de corda que havia sido do meu pai e vi um grupo de soldados andando apressados pelo outro lado da rua. Ainda havia tempo para reflexões.
Tudo começou há pouco mais de dez anos quando grupos de cientistas, em diversas partes do mundo, descobriram que algo estava errado no espaço exterior e que um corpo espacial, do tamanho do sol, parecia estar em rota de colisão com o nosso sistema solar. A descoberta foi uma verdadeira sorte disseram os astrônomos. Outro grupo achou um absurdo. Segundo seus cálculos, o objeto passaria ao largo do sistema solar.
Houve uma verdadeira guerra entre duas vertentes de cientistas para ver qual possibilidade de acontecer era real e infelizmente a primeira, a da rota de colisão, era a que tinha razão!
Mas nem tudo estava perdido. Cientistas estudavam a possibilidade de migrar parte da população para o outro sistema solar, algum que fosse perto, mas como migrar oito bilhões de pessoas? E o resto da fauna e a flora do planeta? O que fazer?
A resposta veio de um pesquisador solitário que sugeriu transferir todas as pessoas e tudo o que fosse possível para um universo paralelo. A comunidade científica o ignorou e ele foi execrado. Se passaram mais de dois anos até que verificassem que existia a possibilidade de se fazer a migração interdimensional, cuja tecnologia fora proposta por ele e exigiria o esforço de toda a comunidade mundial e o investimento de todos os governos.
A solução não era simples e seriam necessárias quantidades gigantescas de energia escura para isso. Trabalhar com matéria exótica, estreitando uma região pequena entre o espaço e o tempo para abrir uma passagem, um portal entre dimensões. Envolvia conhecimentos sobre dobra no espaço tempo em uma certa região, definida matematicamente, fazendo com que esse tecido do espaço tempo se tornasse mais permeável, permitindo ir de um universo para outro universo específico.
Eles conseguiram e abriram o portal.
A primeira Intrusão Interdimensional feita pela raça humana foi realizada. Encontraram, naquele universo, naquela outra Terra, uma civilização não humana, os Emss. Eram tecnologicamente superiores à nós e se dispuseram a ajudar em nossa fuga alucinada. Mas havia um problema tecnológico importante. Eles haviam abandonado pesquisas nessa área pela alta periculosidade de se mexer com energias tão perigosas. Chegaram a propor que parte do nosso povo fosse para Emm, mas o ar do planeta deles tinha elementos irrespiráveis para nós.
Com o tempo vimos que os Emms estavam no ocaso de sua civilização já há alguns milênios, que haviam colonizado parte significativa da galáxia, entrado em contato com centenas de civilizações. Mas tudo chega a um final e aquele era o deles.
Alguns de nós estranharam a não existência humana na outra Terra daquele universo e eles disseram que nunca a nossa raça surgiu ali. Emss nos informaram de uma outra dimensão para onde poderíamos levar nossa população e segundo eles aquela terceira Terra era idêntica à nossa e sem vida inteligente. Era a solução perfeita.
Mas os grupos de pesquisa que enviamos nas intrusões interdimensionais constataram que existiam criaturas nativas que eram extremamente perigosas. Nós nos transformaríamos rapidamente em parte da cadeia alimentar do lugar. Tínhamos que ver a viabilidade real da terceira Terra.
Se decidíssemos ir para Terra 2, os Emss nos ajudariam a refinar nossa tecnologia para aquele tipo de viagem.
Eles vieram para o nosso universo, para a nossa Terra. Isso possibilitou que encontrássemos portais dimensionais naturais que nem sabíamos existir e que, então, construíssemos outros dezoito portais para evacuação. Mas estes portais tinham que ser em um padrão extremamente específico, uma determinada frequência, que levassem àquele mundo específico. E eles nos ajudariam a achar o padrão, a frequência. Para eles demos os nomes aos quais os Emms os chamavam: Tuneis.
Seriam a salvação.
Mas havia outra possibilidade. Uma que talvez atendesse as duas espécies e demandasse um tempo infinitamente menor e menos perigosa.
Quatro policiais param à minha frente me tirando do devaneio e um deles me pergunta:
“Que horas será o seu traslado senhor?”
Eu levanto da cadeira e olho o homem nos olhos.
“Estou no último grupo”.
Dou um sorriso irônico antes de me sentar outra vez e acrescento.
“Provavelmente”.
Ainda tento lembrar quando começou a tentativa de convencimento aos fujões. Milhares de pessoas fugiam para locais distantes ou apenas se recusavam ao traslado. Às vezes famílias inteiras. Claro que não deu certo!
Ao longo dos anos em que os portais foram mantidos abertos, bilhões se submeteram ao traslado e agora era a minha vez. O que aconteceria quando eu chegasse lá? Laila estaria me esperando?
O prédio construído para suportar o Túnel 18 era gigantesco. Outrora, milhares de pessoas faziam o traslado diariamente. Uma quantidade de energia absurda era necessária para mantê-los abertos. Atualmente ficavam abertos apenas alguns minutos durante poucas horas do dia. Quase todos já haviam ido. Dez anos era bastante tempo.
Claro que continuei trabalhando no projeto dos tuneis todo aquele tempo e que ajudei no que pude, inclusive, algumas vezes junto às equipes que tinham contato com os Emms.
Eu estava errado também sobre o corpo espacial, ele era realmente do tamanho do sol e estava em rota de colisão com o nosso sistema solar. Arrasaria ao menos cinco planetas em sua trajetória de devastação e era certo que ao menos a Terra e Jupiter seriam dois deles.
Pego a mochila e a a sacola com o presente e vou seguindo junto com um grupo de pessoas para o túnel, são poucas quadras de distância.
Lembro de quando tentei falar com Laila, poucos meses depois que ela fez o traslado. No início diziam ser possível a comunicação quando o túnel estava aberto e alguns afirmavam ter falado com suas famílias, mas eu, que trabalhava lá, nunca consegui.
Com o passar do tempo passei a ter acesso a muitas informações, algumas de altíssimo escalão, conforme meus superiores eram trasladados. Mas tive acesso também a alguns rumores. Dentre estes últimos um dizia respeito a um acordo entre os líderes mundiais da humanidade e o líder principal dos Emms, quando ele esteve aqui. Dizia algo sobre a salvação da espécie dele, do mundo deles.
Mas como poderíamos salvá-los, pensei eu naquela época. A civilização deles é ao menos dez mil anos mais adiantada tecnologicamente que a nossa? Alguns anos depois soube que o acordo havia sido feito no princípio. A grande questão é o que estava no acordo. O acordo entre os líderes nos dois mundos nos universos paralelos salvaria as duas espécies da extinção, diziam. Entretanto nós humanos não conseguíamos viver no planeta deles por muito tempo, mas uma simples modificação genética poderia tornar crianças humanas capazes disso. Era um Paradoxo ético e tecnológico também. E eles, os líderes, o fizeram. Agora ali, à espera da minha vez de fazer o traslado, nada que aconteceu anteriormente parecia fazer sentido.
O traslado era um salto solitário seja para onde fosse. A mulher à minha frente tinha pressa. Não compreendia por que cada um de nós tinha sua vez, sua hora específica. Entrou na máquina quase que correndo. O recenseador chegou a rir, ela se posicionou no local demarcado e ainda reclamou dizendo que a mãe estava à sua espera. Finalmente ficou quieta, não demonstrando hesitação nem mesmo enquanto seu corpo desaparecia em um anel que emitia uma luz branca leitosa e descia acoplado à parede, os três metros de altura por dois de diâmetro e voltava ao topo, tudo em menos de cinco segundos.
Chegou minha vez. Senti medo, um calafrio percorreu minha espinha. E se eu fosse jogado em espaço profundo? Poucos segundos de vida? Mas ver Laila, mesmo depois de tanto tempo, me dava coragem suficiente para ir. Ouvi o técnico falar meu nome, olhei para ele e vi um sorriso.
“Fique no círculo”, disse ele.
Dei meia dúzia de passos até o círculo e acomodei a mochila e o presente junto a meus pés. Escutei o zumbido e vi lentamente a luz branca leitosa descer em minha direção. Pensei em Laila. Sorri.
****
A sala de recepção estava meio alvoroçada no momento. Ele deu trabalho ao nascer, mas está bem. O cientista chefe do projeto acolhimento já havia feito todo o procedimento necessário e estava pronto para entregá-lo à mãe. Ela era a quinta geração de híbridos Emms-humanos.
“Este é um dos últimos bebês Sra. Zixss ” falou sorrindo para a jovem mãe, “sabe o nome dele?”
A mulher sorria com o menino nos braços e meneava positivamente a cabeça.
“Adalberto.”
FIM
Um conto de Swylmar S Ferreira Em 22 de agosto de 2023.
Imagem meramente ilustrativa retirada de pinterest